Tudo o que eu consegui pensar, ao ouvir os latidos foi: "Tomara que Tilico e Ricardo tenham escapado". O pensamento chega a me surpreender, como havia me importado com alguém que mal conhecia? Por que Tilico e Ricardo eram tão importantes para mim? Por anos, eu me importei com um número de pessoas restrito a dez.
Jaci Jaterê se remexe abaixo de mim. O deus soca meu rosto, me empurrando para trás enquanto corre na direção de seu cajado. Eu estava distraído e não consegui aparar o golpe. Agora eu estava perdido, não poderia lutar contra dois deuses sozinho. Minha cabeça já estava zunindo pelos poderes que usei.
O som de latidos se aproxima lentamente, fazendo meu sangue gelar. Uma sombra invade o lugar, partindo da luz da lua... Mas a silhueta da sombra acaba por me fazer rir. O grande e temido Ao Ao era um carneiro! Que cachimbo da paz Tau e Kerana fumaram quando inventaram essa porcaria de deus? Um carneiro canibal que late! Vejam só!
—Você está rindo de meu irmão?— diz Jaci Jaterê, batendo em meu rosto com seu cajado. Sinto um pequeno corte na bochecha, que aos poucos começa a sangrar— você e seus amigos pagarão por essa insolência! Eu já aguentei vocês por tempo demais.
Jaci Jaterê caminha até a cela aberta mais próxima a ele, a cela onde se encontravam Maíra, Caimana e Savana. Lentamente, ele olha para cada uma delas, até acabar decidindo. Ele puxa Caimana pelos cabelos, a arrastando até o corredor entre as salas com um sorriso no rosto. Parecia um homem das cavernas arrastando a futura esposa para sua nova casa. Seria irônico se não fosse trágico.
Caimana começa a acordar, abrindo seus olhos lentamente, enquanto o deus a solar de forma brusca, a fazendo cair com lágrimas nos olhos. Ela murmura alguma coisa, estendendo os braços para ele, mas ele a chuta com força, com uma expressão de extremo desprezo no olhar. Não podia ficar mais horrorizado.
—Ao Ao, pegue a sua primeira presa— diz o deus, cruzando os braços, enquanto a sombra se tornava maior conforme Ao Ao entrava na caverna.—Devore essa puta. A filha da Lua desonrada, manchada pelo sêmen de todos os semideuses do Andurá.
Meu sangue ferve. Só eu podia falar aquelas coisas para Caimana, ele não tinha o direito de dizer tudo aquilo e chutar minha amiga. Cerro os dentes e os punhos de uma só vez, enquanto o carneiro se aproxima de Caimana, pronto para devorá-la. Precisava fazer algo, bem rápido.
Estendo minha mão direita para o cajado de Jaci Jaterê, que aos poucos é coberto por uma grossa camada de areia negra, que partia das próprias mãos do deus. Faço um gesto brusco com minha mão, fazendo com que o cajado voe das mãos do deus, chegando até mim.
Me coloco a frente de Caimana, girando o cajado entre os dedos. Quando Ao Ao se aproxima, golpeio o deus com o cajado. Aplico tanta força que o carneiro acaba por cair. Sorrio, triunfante, enquanto os dois deuses me olhavam surpreso. Sabia que não estavam me atacando com força, por ser protegido de Jurupari, mas ainda assim, a sensação era ótima.
—Toca em um fio de cabelo da Caimana, Shawn o carneiro— desafio— experimente fazer isso, uma só vez e vai precisar devorar humanos usando um canudinho. Eu ainda quebro a vareta magica de Jaci Jaterê na sua cabeça... Acho que seu irmão não ia gostar muito disso, não é?
Ao Ao rosna para mim, como se me desafiasse. Caimana segura meu pé, como se me alertasse para parar de lutar. Eu não podia contra aqueles dois. Começo a tremer enquanto meu olhar oscilava de um para o outro. Não tinha chance de fugir com meus amigos de lá, eu estava perdido.
O deus se lança sobre mim, tentando morder meu rosto. A força e a velocidade do deus me fazem cair no chão, enquanto ele subia em mim, com uma expressão assassina no rosto. Em sua boca havia uma fileira de dentes afiados, como os dentes de uma piranha, pronto para me abocanhar.
—AAAH— grito, colocando o cajado do deus em frente a meu rosto, de forma defensiva. Ao Ao começa a morder o cajado com força, tentando quebrá-lo para chegar até meu rosto, enquanto o deus gritava para que o irmão parasse, fazendo birra.
Pensei que aquele seria o meu fim... Até que Jaci Jaterê tocou as costas o irmão. Ao Ao pareceu se acalmar lentamente, enquanto bocejava. O carneiro recuou um pouco, se sentando no chão, enquanto eu olhava para ele imóvel, aliviado por estar vivo.
Jaci Jaterê toma o cajado de minhas mãos, irritado. Não reagi, sabia que seria pior se eu reagisse. Ao Ao não era um deus com auto controle como os outros... Se Jaci Jaterê o soltasse sobre mim, eu estaria morto, não havia mais volta. Naquele momento eu desejei que ele fosse o Saci inofensivo das lendas.
Jaci Jaterê pega Caimana pelo cabelo novamente, mesmo com os protestos da garota, que chorava. Ele a joga na cela onde eu havia estado anteriormente... Então ele anda até mim, me puxando pelo braço e me jogando na mesma cela.
Com apenas um gesto de seu cajado, todas as portas das celas voltaram para seus lugares, como seu eu nunca as tivesse aberto. Então o deus sorri para mim, girando o cajado. Ele estava feliz por ver que eu finamente havia compreendido sua força.
—Você gosta tanto dessa puta— disse Jaci Jaterê— então fique com ela. Faça o que quiser com ela, mas tenha consciência, de que não importa o que fizer, não vai ser o primeiro a ter feito.
O deus anda até seu irmão, Ao Ao, encostando seu cajado nele. Logo em seguida, ele estala os dedos, desaparecendo, como se nunca estivesse estado lá. Me deixando quieto em minha cela, pensativo e deprimido. Aquele era o fim afinal?
Olho para o lado, vendo Caimana se levantar furiosa, ela anda até mim, com os olhos ardendo. Me abaixo, pensando que ela me bateria, mas Caimana apenas se aproxima, abrindo os braços e me abraçando rapidamente e com força, enquanto chorava e soluçava.
—Eu fui terrível com você— diz ela— Eu te disse coisas horríveis e você me salvou. Eu... Eu... Muito obrigado Jonathan. Não sei o que posso te dizer para compensar o que eu fiz... Itá me enganou, ele me iludiu, me fez pensar que você... Oh Jonathan, nós estávamos...
Foi então que minha ficha finalmente caiu. As peças do tabuleiro se encaixavam lentamente. "As filhas da lua são atraídas por mim" dissera o deus. Caimana estava apaixonada por ele. Caimana estava apaixonada por Jaci Jaterê. Ele a enganou para colocar todos os semideuses do Andurá contra mim.
—Caimana, me escuta— digo, a abraçando com mais força— Não foi sua culpa, eu não te culpo por isso. Vocês estavam namorando, não estavam?
Caimana assente, chorando e soluçando ainda mais.
—S-sim— ela disse— Ele me falou que deveríamos manter isso em segredo. Disse que conselheiros não poderiam namorar, mas que faríamos isso por amor... Que fugiríamos juntos depois que o problema com os deuses estivesse resolvido. Ele me disse para fazer parecer que nós não tínhamos relação, que eu deveria ficar com outros... Eu perdi minha inocência com ele. Então veio você. Ele te odiava tanto... Não consegui deixar de tomar as dores dele.
—Caimana— digo, olhando no fundo dos olhos dela—Não deixe esse projeto de Ken dizer o que você é e o que você deixa de ser. Faça o que eu fiz no Andurá: Seja quem você é e obrigue todos a te engolir.
Permanecemos abraçados por um tempo, enquanto Caimana chorava. Eu não entendia exatamente o porquê de me importar com Caimana. Mas eu me importava. Deuses, como eu me importava!
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Crônicas da Floresta- Livro 1- A Árvore Flamejante
FantasyNate não é o herói da profecia. Nate não está destinado a grandes feitos, ele apenas estava na hora errada e no lugar errado, isso mudou a sua vida para sempre. Jonathan Eperua Carvalho sempre foi um garoto esquisito, mas não do tipo clichê, que sof...