Uma droga de dor

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Carmilla sentia dor do peso do cobertor, do atrito do lençol, até o calor da lareira pressionava sua pele, ardência das feridas em toda a sua extensão. O mais leve suspiro movimentava as costelas ainda soltas. Bafejando o aroma metálico do próprio sangue, a vampira abriu os olhos com o cabelo grudado de suor perto da boca, a visão embaçada revirando ao erguer o corpo.

- Epa, epa, pode deitar – Disse uma voz acompanhada de um borrão ruivo segurando os ombros da renegada sobre o leito.

Ela forçou a vista para tentar enxergar, mas a pancada do combate à mantinha quase cega, ouvindo mais um pouco da voz, percebeu que se tratava de Norma no quarto. Os sentidos da morena estavam dez vezes mais aguçados para a dor, era quase impossível piscar sem que todos os músculos protestassem.

- La-Laura – A vampira tossiu na primeira silaba, toda a goela parecia queimada, o torso chiou ardendo abaixo de dois quilos de curativos.

- Relaxe que, o que havia para ser feito foi feito Mircalla, mas tente não falar, você engoliu muita água congelante – Disse Norma ao se sentar na beira da cama, ela segurou a mão sobre o curativo abaixo das costelas – Odeio quando ela usa isso, machuca muito.

A vampira renegada recordou do instante em que, a carrasco espetou-lhe a lâmina. Carmilla buscou o teimoso ferimento, aparentando estar cheio de areia – que dor.

- Para, tirei o que deu, o resto vai ter de diluir no seu sangue, pode demorar umas semanas – Dizia Norma soltando as mãos da paciente a entender o estado de seu corpo acabado – Eu sempre digo pra não usar aquela maldita adaga de bronze, mas fui eu que dei pra ela, que ideia mais burra – Riu a promotora com os pensamentos – Ora não fique assim, pense, afinal você ainda vai conhecer muita gente Mircalla.

Se isso fosse de alguma serventia, a imortalidade condenada-a viver para sempre nesse mundo – e nem era o que ela queria – suportava a visão enturvada do teto de madeira junto à visão do dossel enrolado com cortinas esverdeadas, claro que devido ao seu estado tudo era um amontoado de borrões.

- Laura... – Pigarreou virando-se e, Carmilla estremeceu com o olhar de Norma que, impregnaram a renegada com o pior de seus pensamentos.

- Não importa mais agora, a sentença foi dada e executada, a juíza do terceiro tribunal não muda de ideia e tão pouco perde tempo na execução das penas – Comentava a promotora e, conhecida de longa data da juíza antes mesmo de ser chamada de vossa excelência – Fomos o mais breve que podíamos, mas foi Mina quem cuidou da sua namorada.

Depois da fala a renegada só pode pensar no instante em que o comitê romeno adentrou a hospedaria. Um por um caindo, assassinados pelo terceiro tribunal. Perry devia ter sido morta na cozinha, sobre a mesa com uma faca de cozinha no peito. LaF com o crânio esmagado na parede e atirada por uma janela. Danny? Essa deve ter dado trabalho, mas teria sido morta pelo próprio machado. Guto devia ter sido amarrado num saco e jogado dentro do lago congelado, ou largado na linha do trem. Agora Laura, só de pensar o estômago de Carmilla revirou mesmo sem nada para ser revirado.

Lembrou-se do pesadelo, imaginou a loira apontando uma colher de pau e um cabide para a juíza, mas a cena cômica não era o bastante contra o amargo fim relatado de antemão. Mina devia ter drenado a loira enquanto arrancava seu coração, seu coração tão terno e quente, nas mãos daquela sádica.

- Mircalla, estou saindo para me reunir com o restante do tribunal, não preciso pedir que fique aqui, voltarei mais tarde, deseja algo? – Norma perguntou parada sobre a soleira, sem uma resposta que sabia que não viria, a promotora puxou a maçaneta, deixando a renegada sozinha no quarto.

Algo? Sim; alguém; a única a abrandar a dor, Carmilla virou o rosto, voltando a mirar o teto após a porta fechar, não se entendia, tantas outras vidas passaram por ela, por seus olhos, por suas mãos, por seus dentes, por que essa vida que, por tão pouco conheceu, tanto nela mexeu? Pensou no toque, no abraço, no calor, essa vida havia chagado ao batimento de seu peito. Como? Era a pergunta, pois fora a muitos anos quando Ell fizera seu coração bater indiferente ao vampirismo. Seria muita loucura compara-las, de muitos jeitos eram diferentes, mas de outros eram semelhantes, o toque, a maneira como mexiam com a cabeça e o coração da vampira.

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