A volta

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Carm POV

Cada volta, cada curva, cada túnel, cada minuto mais, e a paisagem mudava, lagos, montanhas verdes, com a ponta branca no alto, como a transição de um filme velho e clichê, com aquele sacolejar do carro e a sensação de movimento. O curioso é ser o trem a se mexer, e não seus passageiros, que na doce ilusão de estarem seguindo o caminho, não se percebem sendo na verdade levados.

Carm olhava pela janela sem muito esperar, quantas vezes viajara dessa mesma forma? Vezes demais para contar. Balançando pela estrada, ou pelos trilhos, como se sua vida fosse ser arrastada, pulando de lá para cá, e tumultuada ao ponto de poder perguntar o porquê de as coisas acontecerem como aconteceram, junto a isso a inevitável, e incomoda pergunta: e se tivesse sido diferente?

Pertinente questão, lastimável questão o "e se?"

A vampira perdeu a conta de quantas vezes já se questionara isso, e o quanto de ansiedade que recebera em resposta. O "e se" para trás, te deixar triste e ansiosa com uma possibilidade nula, pois é passado, e ainda sim isso pesa, até piorando o que já passara de uma maneira; e o "e se" para frente, que rende uma interminável insônia a noite, e de quebra um tormento no dia, que não lhe permite concentrar-se em nada.

A morena se via um tanto dividida, entre se preocupar com o que já havia se passado, e o que ainda havia de passar. Parece besta, mas acredite quando digo que estes dois caminhos mais parecem um, pois ambos tiram sua paz. E nesse dilema se via Carmilla.

Anos e anos de mentira acumulada, vidas e costumes empurrados goela abaixo.

O mordomo a interrompeu enchendo sua taça pela metade, do mais fino vinho branco existente naquele vagão.

Vagão esse reservado e atulhado de tudo o que o dinheiro público pudesse comprar. Cortesia de certa governadora em mandar sua ex/amante/amiga para casa da maneira mais confortável possível. O vagão inteiro, decorado como uma grande sala de estar, havendo um banheiro particular na ponta perto da entrada, uma cozinha ao fundo, e quatro mordomos para plantar bananeira se você ordenasse.

Almofadas em detalhes dourados sobre o par de sofás bege e fofos. Paredes revestidas do mesmo mogno da mesa o qual sustentava seu drink. Pequenos lustres de cristal, e lamparinas de vidro fosco, permitindo um ambiente cheio de penumbras, e nenhuma sombra.

Mas havia uma sombra, e Carm sabia que luz alguma daquele vagão iluminaria tal localidade. Há certas partes os quais não se arruma ou resolve com mero feixe de luz sobre, expondo o algo, por vezes excomungado pala alcunha de problema. Chamar-se de problema, apontar defeito, chutar a sombra, como se tal feito fosse factível.

Como se vence sobre algo que não é derrota, como se aponta erro, se nem se sabe o dito certo?

A garota se encolheu no sofá, colocando os pés descalços sobre as almofadas, deu mais um gole no vinho, o gosto azedo se fez forte, e aos poucos um calorzinho abrolhou os olhos.

Mais um trago, mas no ajudaria a secar a vista?

O peito dela apertava de um jeito que somente se sente, um amargor que só quem já sentiu, poderia entender, lá no fundo, um lugar que a luz não chega, um algo sem nome, que só está ali, sentindo, e muitas das vezes sofrendo por sentir, sem poder gritar, ou se explicar.

Pedacinho mais infeliz esse, como sentir dor de estomago, dói, e não tem como pôr a mão do lado de dentro. Só dá para fazer careta, tomar remédio, que se espera estancar a dor, agora curar o machucado lá, vish! São dias, semanas, meses de um tratamento para toda vida, parar de comer espinhos, e tentar ser amável com seu estomago, comendo coisas que ele pode dar conta sem se ferir.

One More NightOnde histórias criam vida. Descubra agora