As noites da guerra

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A noite permanecia na mais sublime calmaria que o pé da montanha poderia oferecer. As luzes alaranjadas das lamparinas, penduradas nas vigas do curto telhado que, adornava a frente do prédio da pensão. O chão que dava leves guinchadas a paços lentos, e trovoadas a pisadas de elefante.

Laura mirava atentamente aquela figura escura. Estranha. Nem tanto. Mas com certeza, intrigante. Não que ela nunca tenha presenciado outros na mesma situação, com a testa na mesa e as magoas afogadas nas garrafas.
Certamente um homem teria passado batido. Porém uma mulher cercada por bebida, usando botas bem firmes no lugar de sapatos finos. Calças atrevidamente masculinas. Isso não passaria despercebido pelos olhos da loira.

Afoita ela perguntou a Perry quem era aquela.

- Não sei. Passou aqui bem mais cedo pegou cinco sanduiches e saiu. Voltou um pouco antes de escurecer toda suja de terra e lama. Nem dava pra ver o rosto dela. A mandei para o banheiro. Assim que voltou começou a beber...muito - Perry omitiu a parte de ter limpado toda a sujeira no assoalho. Lama, folhas, uma gosma verde que, a dona da casa julgou ser vômito.

A mulher que prendia os olhos da loira acordou, empurrou algumas garrafas e, fez um sinal abanando a mão para baixo, chamando. Laura se forçou a andar sem despregar os olhar dela. Parou encostando a cintura na beirada da mesa olhando rosto coberto por uma franja bem escura.

- Por favor... – Soou a voz rouca e sonolenta - ...poderia me trazer mais uma dessas... – apontou entre duas garrafas.

- Mas já não bebeu o bastante? – Respondeu Laura que, nem se quer trabalhava lá. Mas seu coração a fez enternecer diante de alguém tão fragilizada pelo álcool.

- ...não bebi, não é... – A cabeça pesou para frente - ...nem de longe...bastante... – Carmilla mirou o rosto de Laura - ...você tem...um cheiro... – Esgueirou a mão até a barriga da blusa da galega - ...tão bom... – Disse mordendo o lábio inferior e apertando a blusa da outra entre os dedos.

Laura mirou aqueles olhos negros, antes deles se fecharem atrás da cortina de cabelo, e a dona deles adormecer se inclinando no banco. Laura suspirou sem saber muito bem o que havia acontecido.

Abriu-se a porta ao lado das bebidas, atrás do balcão.

- Será que poderia não trazer essas coisas aqui – Perry franziu a testa.

- Ta bom, muda a pensão de lugar – Respondeu Lafontaine carregando uma pata de urso – Ah! Já me viu fazer coisa pior, mas olha que, dessa vez nem fui eu – LaF estendeu a mão segurando uma pata de urso esfolada.

- Por isso eu disse pra não trazer essas coisas aqui, tá sujando tudo de sangue – Disse ela apanhando um pano atrás do balcão.

A discussão das duas chamou a atenção de Laura. Algo sobre uma trilha de destruição, animais, arvores e até o chão. Estraçalhados. LaF não parava de tentar argumentar por cima das falas da "senhorita piso escovado".

- Como é que é, conta isso direito – Laura entrou no meio do bate boca. Uma salientava o chão limpo. Outra tentava contar sobre o grande e assustador rastro de trasgo. E a terceira sustentava a superfula ideia de uma incrível história de aventura para o jornal local – umas três folhas escritas a mão para algum bêbado pensar que é papel higiênico – mas a jornalista só se afobava mais.

- Não estou dizendo que não, mas devia ser muito forte – LaF mostrava a pata de urso.

- Forte. O que mais? – A loira já puxava um caderninho surrado dos bolsos e, uma caneta com a ponta mastigada – Conte-me mais – Perry se calou sobre o pinga pinga no chão, o entusiasmo delas era como o de crianças ao desenterrar uma tampinha de garrafa na terra. Bem sabia da curiosidade de Laura que, fora atiçada ainda mais com o pai a guardando abaixo das asas de falcão. E Lafontaine, bom, haviam crescido juntas, os pais sempre a deixavam aos cuidados de sua avó dona da pensão e; sempre; sempre demoravam muito a voltar das viagens de negócios.

- Esta bem crianças, porque não vamos para a cozinha – Falou já empurrando as duas.

Laura sentou na cadeira oposta a porta do salão, LaF na cabeceira, e Perry estava com as mãos em uma concha bem comprida ao lado do fogão. A aspirante a jornalista não parava de anotar tudo o que a veterinária de plantão dizia. A dona da pensão lhes serviu um prato de sopa de batatas com um pouco de pão. E se não fosse o aroma e a fome, as duas caçadoras de tesouros teriam passado o resto da noite falando.

- Cuidado que esta muito quente – O aviso de Perry chegou meio tarde para Laura que, já abanava a língua fora da boca, LaF ergueu uma sobrancelha para Perry, segurando a risada.

- Cala a boca LaF.

- Eu nem-estou-rin-rindo – Não deu para disfarçar. E uma cascata de risos teria desembocado sobre a mesa. Porém um som agudo calou qualquer coisa ou pessoa sobre toda a cidade.

Ao longe tocaram as sirenes de aviso.

- Já apaguei as luzes de fora! – Entrou Danny quase derrubando a porta dos fundos e a trancando logo em seguida.

- Vou acordar os hospedes! – Gritou Perry correndo para o corredor seguida de LaF que, apagava as luzes do lugar.

Danny e Laura também. Elas passaram por mais dois quartos, avisando para se protegerem. Quando quase no fim do corredor. A loira saiu correndo de volta para o salão mesmo sob os protestos de Danny. O alarme ainda soava, então havia tempo, seus joelhos tremeram de pensar o que viria a seguir ao termino do barulho de aviso.

Correu para a porta, passando o ferrolho. Seus olhos se voltaram para a mesa do canto e, assim que tocou Carmilla o alarme parou. Um vazio inundou seu peito ao som daquele zunido de aviões. Ela agarrou a vampira se jogando com ela para baixo da mesa.

Bombardeiros.

Arquejando, o peito bombeando o medo, ela fechou os olhos cheios de água, apertando a cabeça entre as mãos e, ordenando inutilmente que, seu cérebro expulsasse as lembranças dos estrondos em sua mente em pânico. Ganidos amedrontados se faziam ouvir no salão escuro. Quando então sentiu um par de mãos lhe subir as costas, seu tronco ser envolto em algo quente e macio.

- ... seu cheiro é muito bom... – A respiração de Carmilla aquecia o pescoço de Laura que, tentava processar tudo.

- Ah! Você esta ai! – Berrou Danny na boca do corredor. A lenhadora agarrou as duas pela gola, as arrastando para trás do balcão – O que você estava pensando? – Ela sentou de frente para a entusiasta – Era pra se proteger, e... – Danny viu Laura tremer encolhida ao som dos aviões. A amazona abaixou os ombros, se assentou ao lado da outra, e a puxou para que descansasse – Ta tudo bem, vai passar. Vai ficar tudo bem, não se preocupe – Ela apertou o machado entre os dedos enquanto acalmava a amiga com a mão livre.

Era uma calma noite de inverno. Só mais uma.

One More NightOnde histórias criam vida. Descubra agora