Capítulo 32-Nem tudo que eu digo é verdade.

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Tum dum. Tum dum. Tum dum. Tum dum. Tum dum.

Não consigo abrir os olhos e muito menos me mover.

Mas eu escuto o batuque do tambores, o som dos chocalhos e das flautas e as vozes cantando numa língua estranha, sinto o cheiro agridoce das ervas no lugar...Trixie me ensinou a reconhecer. Alfazema, alecrim, babosa,calêndula, confrei,louro, malva, erva-cidreira, macela-do-campo...

Não consigo sentir o meu corpo, nem uma misera célula corresponde aos meus estímulos voluntários. Sinto-me tão esgotada  e irremediavelmente cansada que pareço não ter forças nem pra estar pensando isso agora.

Isso é pior do que qualquer ressaca que eu já tive na vida.

Meus olhos se abrem. A força que faço para conseguir subir minimamente as minhas pálpebras faz com que um gemido de dor escape pelos meus lábios entreabertos. É como uma tosse, um engasgo. Abri o suficiente para ver só um pouquinho, os olhos estreitados e a visão limitada pelo pincel de cílios. Tudo que vejo é um filete do teto de palha...

As  vozes se intensificam. Cantam em coro junto com o vai e vem da música instrumental, consigo abrir um pouco mais os olhos,não tudo mas o suficiente pra ver que estou cercada. Estou no meio de um círculo formado por homens e mulheres idosos. Índios. Reconheceria as vestimentas de couro, as penas e as marcas pintadas nos corpos em qualquer lugar. Em conjunto eles dançam ao meu redor arrastando os pés pelo chão de terra, levantando poeira.

-Ête be mã bo me tebe mã bo etê ma bo ete mã bo Bo medipê Bo medipê Bo medipê naiê noaiê O ma ta as tã  Te me  te a bo ta as tã Te me tebe a bo Bokumuré Bokumuré nahi noiaê nahi...

AI MEU DEUS EU MORRI E NO CÉU SÓ TEM LOUCO.

A música para de repente tão rápido como se não tivesse estado ali antes. As vozes cessam e sinto os infinitos pares de olhos me observando. Quero me levantar e sair correndo dali. Odeio essa sensação. Odeio quando todos esperam que eu faça alguma coisa, quando ficam me observando esperando que eu haja.

No entanto tudo que eu consigo fazer é levantar o minimamente o pescoço o faz uma dor tão grande se espalhar pela minha espinha irradiando pelas minhas veias que volto para trás batendo a cabeça no chão e arfando descontroladamente.

Os pés voltam a bater no chão e as vozes voltam a cantar o mesmo cântico ritmado de antes. Mãos tocam a lateral dos meus braços e meus ombros me içando pra cima mantendo-me sentada, com um apoio nas costas. Faço uma careta de dor.

-Tragam água. – a voz estridente de Tiger Lily soa como um trovão em meio a oca e todas as vozes se cessam. Passos vão e vem. Não percebi mas estava esse tempo todo com a boca entreaberta deixando escapar sons desajeitados, lânguidos, indecifráveis, animalescos. Eu estava o tempo todo tentando dizer mas as palavras não vinham.

Quase não percebo quando Yakecam se aproxima com um recipiente cheio de água, muito menos quando ele se dobra sobre mim recostando o mesmo sobre os meus lábios. Estou num estado meio dormindo meio acordada em que ficamos eternamente nos perguntando se tudo o que está acontecendo é real ou um sonho.

É real. É real e eu sei disso porque o toque fresco da água contra os meus lábios rachados parece me acender como chama. Meus braços se elevam sem ligar para a dor e eu tomo o recipiente das mãos dele entornando-o o líquido gelado para dentro da minha boca. Saboreio o frescor sentindo a água apaziguar os meus nervos. É como se o meu interior fosse feito de carvão em brasa e a água viesse como um belo presente de deus esfriando todo o meu corpo com direito a "tssssss" e tudo mais.

A água acaba e eu largo o recipiente e solto uma espécie de rosnado em protesto pedindo por mais. Yakecam o pega do chão e enche-o novamente de água, entregando-o a mim que o abraço como se fosse o bem mais precioso envolvendo o mesmo em minhas mãos e bebendo ferozmente do líquido com paradas apenas para pigarrear e tomar fôlego. Esse processo se repete mais umas sete vezes até que me encontro completamente saciada.

Me Leve Para A Terra Do Nunca ( EM REVISÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora