capítulo 01

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Eu estava a caminho do trabalho, tratando de cuidar da minha própria vida,
quando avistei James espreitando no escuro. Claro que, na hora, não sabia que
era James. Pensei que fosse um cara qualquer, alto e esquisitão, sem coisa
melhor pra fazer do que assustar mocinhas à noite. Ou isso ou ele realmente
pretendia dar o pulo do gato e me agarrar. Certamente seria muito mais perigoso
pra ele do que pra mim. Seja qual for o caso, a primeira sensação que tive ao vê-
lo escorado na porta da Maybelline’s Collectibles foi uma irritação tremenda. Ele
não estava fumando, não estava olhando pras bolsas de miçanga vagabundas na
vitrine nem estava fazendo nada além de me observar caminhando rua abaixo.
Uma pequena parte de mim gostou de estar sendo observada. É triste quando
uma garota de dezoito anos não tem suas pernas admiradas.
Ainda assim. Ele não poderia ser educado e atravessar a rua só pra deixar
claro que não era nenhum estuprador ou coisa assim? Será que a mãe dele não
tinha ensinado um pouco de bons modos noturnos? Um dos motivos pelos quais
adorava meu emprego na padaria Sunshine era que quase nunca encontrava
ninguém no caminho pro trabalho. Jackson, cidadezinha do Mississipi, sabe, não
chega a ser Nova York. A maioria das pessoas já estavam enfiadas debaixo das
suas cobertas até meia-noite. Por isso, de madrugada, eu até me sentia segura
sem meu traje de couro. Toda noite saía do meu apartamento subsidiado pelo
governo vestindo short e camiseta. Foi um verão longo de tão quente, e ir a pé pro
trabalho foi a única maneira que encontrei de sentir pelo menos um vestígio de
vento no rosto.
Mas então, pela primeira vez desde que tinha começado naquele emprego,
fazia uns três meses, tive que bolar um jeito de desviar das pessoas pra evitar o
contato com minha pele. Quanto mais me aproximava da escada que descia pra
cozinha da padaria, mais claro ficava que El Creepo não pretendia sair do meu
caminho. Foi assim que resolvi chamá-lo, El Creepo, mesmo depois de me
aproximar e notar que ele parecia ser bem gostosinho.
Imaginei que fosse só uns anos mais velho do que eu. Tinha cabelos longos e
escuros. Não fazia a barba havia alguns dias. Estava escuro demais pra ter
certeza, mas tive um pressentimento de que seus olhos eram azuis, um azul
penetrante.
Como se não bastasse, ainda vestia um sobretudo de couro. Agora por que
diabos alguém além de mim usaria alguma coisa de couro em pleno agosto no
Mississipi?
Mas eu não estava nem aí. Mesmo que El Creepo não fosse um estuprador
ou um assaltante, e mesmo que ele fosse estupidamente boa pinta, a entrada da
padaria ficava bem ao lado da vitrine da Maybelline’s. Eu não podia correr o risco
de ele tentar me pegar pelo braço ou tropeçar e segurar em mim pra se
equilibrar. Resolvi então eu mesma atravessar a rua, andei uns seis metros já do
outro lado e atravessei de novo. Tive de voltar alguns passos no sentido contrário
pra chegar à padaria. El Creepo tinha mudado de posição, aparentemente pra
poder continuar me observando, e eu o encarei de volta de uma forma tal que,
assim eu esperava, dissesse que apenas tinha feito o que ele devia ter feito.
Atravessado a rua, só isso. Juntei todas as minhas forças pra não mostrar o dedo
do meio, pois além da presença dele significar que eu não arriscaria mais vestir
short e camiseta mesmo àquela hora da noite, também significava que eu não
poderia mais ficar de bobeira no topo da escadaria olhando as quinquilharias na
vitrine da Maybelline’s, coisa que eu costumava fazer antes de vir pro trabalho.
Eu não tinha dinheiro pra comprar nada da Maybelline’s, mesmo. E não era
do tipo que perdia tempo sonhando com o que não podia ter. Essa era uma das
manias que eu tinha pegado de Cody. Então, não havia o menor problema de ficar
sem minhas espiadas diárias na vitrine. Às vezes eu ficava tão cansada de tudo que
era melhor assim.
Já no andar de baixo da padaria Sunshine, coloquei minha rede de cabelo e os
fones de ouvido do iPod e comecei a trabalhar. Aquele turno noite adentro
(organizando todos os bolos, donuts e pães que estariam à venda logo cedinho
quando a padaria abrisse) era meu terceiro emprego desde que tinha me mudado
de Caldecott pra Jackson, e o primeiro de que realmente cheguei a gostar. Se eu
não podia encostar nas pessoas, pelo menos poderia alimentá-las. A dona, Wendy
Lee Beauchamp, mantinha todas as receitas numa grande pasta, e tudo que eu
tinha a fazer pra assegurar que tudo saísse corretamente era segui-las à risca.
Assim que terminei de botar toda a comida no forno, entrei no banheirinho
minúsculo dos funcionários. No dia em que fui contratada, Wendy Lee disse que
eu teria de manter o banheiro limpo. Com isso, imaginei que ela quisesse dizer
mantê-lo organizado e não deixar minhas coisas largadas por aí. Porque, né, pra
que você iria querer que a mesma pessoa que cozinhasse sua comida também
limpasse o banheiro? Mas, nos últimos tempos, ficou impossível não notar os anéis
de sujeira na pia e no vaso, e comecei a suspeitar que eu mesma acabaria tendo
de esfregar aquilo tudo. Como se não houvesse nada melhor a fazer do que viver o
presente, tratei de simplesmente pegar um frasco amassado de desinfetante.
Quando enfim terminei, vesti minha calça de couro e minha blusa de gola
rolê preta, minhas luvas por último. Como tinha esquentado muito, troquei as
luvas de couro por um par de algodão, brancas. Do tipo que se usa pra ir a uma
festa chique. Minhas mangas cobriam bem meus braços, mas como era o local
mais provável pra que alguém tentasse encostar em mim, eu também usava uma
jaqueta de couro. Quanto ao preto, bem, a cor não fazia diferença alguma no
quesito proteção, a não ser pelo fato de que o preto assustava as pessoas e elas
acabavam preferindo não encostar em mim. O mesmo acontecia com as mechas
brancas no meu cabelo longo e marrom, as que apareceram depois do que
aconteceu com Cody.

Até que Wendy Lee desse as caras, ainda me sobravam dez minutos pra levar
todos os quitutes que eu tinha assado até o balcão, então coloquei de volta meu
iPod, aumentei o som em “Jesus, take the wheel” e passei a esfregar o chão do
banheiro.
— ANNA MARIE. ANNA MARIE!
Quando enfim escutei Wendy Lee me chamando, imaginei que ela já
estivesse gritando fazia um bom tempo, pois se aproximou com seu braço
esticado como se quisesse bater no meu ombro. Dei um pulo pro lado tão
repentino que acabei trombando contra a prateleira com todos os papéis
higiênicos e papéis toalha. Tudo caiu chovendo sobre minha cabeça e por todo o
chão, até ninguém poder ver o quanto eu tinha deixado aquilo tudo tão limpinho.
Assim que tirei os fones de ouvido, notei que o fogão com os pães estava uma
fumaceira só, feito uma chaminé.
— Droga.
Mesmo agitada daquele jeito, eu procurava policiar meu linguajar perto de
Wendy, que se considerava uma mulher temente a Deus. Em vez de correr pro
forno com os pães (aqueles já eram caso perdido, mesmo), fui em direção ao dos
bolos. Eles pareciam um pouquinho tostados por cima, mas de um jeito até bom,
dourado e crocante.
Por outro lado, os pães estavam carbonizados. Wendy Lee os tirou do forno
ela mesma. Era daquelas mulheres que se enfeitavam todas: cabelo pintado e
escovado, sobrancelhas delineadas, unhas feitas, maquiagem pesada como uma
máscara. Um fio de cabelo fora do lugar e pronto, ela estaria toda desgrenhada.
Naquele momento, pelo menos três fios estavam esvoaçando, sem contar que ela
estava com uma mancha preta na bochecha por causa dos pães carbonizados.
— Pelo amor de Deus, Anna Marie — Wendy Lee disse. Agora, além de ter
queimado os pães, eu tinha feito com que ela usasse o santo nome de Deus em
vão. — O que diabos eu vou vender hoje de manhã?
Ela respirou fundo pra tentar se acalmar, e notei que eu não iria gostar do que
ela falaria a seguir. E estava certa. Fiquei parada, ouvindo-a narrar uma lista de
motivos pelos quais eu não estava dando certo na padaria Sunshine.
— Não quero te magoar, Anne Marie, mas a forma como você se veste é
bem peculiar.
— Mas ninguém nunca nem me vê! Eu trabalho no subsolo de madrugada.
— As pessoas te veem saindo pela manhã, querida. Elas ficam imaginando
por que a pessoa que assa os bolos está toda empacotada em roupas de couro em
pleno verão.
Ela disse que alguém tinha me visto na frente da Maybelline’s e ficou
preocupado achando que eu estava saqueando o lugar, o que não deu pra
acreditar.
Quem diabos me viu olhando vitrines à uma da manhã? Imediatamente
suspeitei de El Creepo. Pode ser que aquela noite tivesse sido a primeira vez que
eu o vi, mas não o contrário. Ela continuou falando:
— Bom, não quero acusar ninguém. Mas, desde que você começou a
trabalhar aqui, já dei pela falta de dinheiro na gaveta do troco umas três vezes.
— Mas eu nunca nem sequer subi. Eu juro, Wendy Lee.

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