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de sol que ele tinha deixado dentro de mim, mas sem sucesso. Não surtiam efeito
no mundo exterior.
— E os cristais? Você não pode fazer alguma coisa com eles?
— Não sem a luz do sol.
A luz do sol... A passos dali ou talvez dentro dos limites da minha própria pele:
bem poderia estar a um milhão de quilômetros, não faria diferença. Pensei no
anel de ouro no bolso do sobretudo de Touch, e me bateu um pico de euforia.
Com certeza aquela era uma situação na qual precisávamos nos agarrar a nosso
último recurso.
— Não — Touch disse. — Não vai funcionar. Ele só viaja através do tempo,
não do espaço. Acabaríamos bem aqui mesmo na gruta, no escuro, em outro
tempo. — Aquilo me surpreendeu, o quanto ele parecia estar calmo.
— Mas não pode ser. Você é do Novo México. Só que acabou em Jackson, no
Mississipi.
— Antes de usar o anel da primeira vez, eu peguei um barco e naveguei para
o leste.
— Por quê? — Dentro da minha cabeça, as coisas já tinham chegado a um
estágio bem tenso. Mesmo que Touch puxasse aquele anel dourado de dentro do
bolso e se valesse dele, nada mais aconteceria senão apenas aterrissarmos na
escuridão daquela mesma caverna, só que em outro tempo. Dez mil anos de
volta? Ainda ali, dentro das grutas. Dez mil anos adiante? Ainda ali, ainda nas
mesmas grutas, só que com o bônus de estar embaixo d’água.
Touch não respondeu minha pergunta e, de qualquer jeito, a coisa mais
importante era descobrir uma maneira de sair dessa.
— E se você levasse a gente de volta no tempo há tipo quinze minutos, quando
a lanterna ainda estava funcionando?
Mesmo na escuridão, deu pra senti-lo sacudindo a cabeça a centímetros de
distância de mim.
— Não funciona desse jeito. O tempo para as pilhas — ele disse essa última
palavra num tom de puro desgosto, e nem dá pra dizer que eu o condeno. — O
tempo para a lanterna ainda está se movendo para frente, no mesmo ritmo. Nós
voltaríamos quinze minutos com uma lanterna descarregada.
Dei um passo em direção ao seu cheiro, à sua respiração. Seus braços me
envolveram. Por um segundo me senti um pouco mais calma, mas
imediatamente depois senti uma nova pontada de pânico. E se nessa escuridão o
rosto dele roçasse no meu?
Touch não precisava de luz pra ler minha mente.
— Shhh — ele sussurrou, como se pudesse ver claramente o pânico à sua
frente. — Isso não importa agora.
— Com toda certeza importa sim. Você acha que eu quero ficar aqui
esperando pra morrer do lado de um cadáver? Se isso acontecer, quero pelo
menos estar acompanhada. — Senti um frio na espinha até os ossos só de dizer
aquilo. É claro que se ele desse conta de não tocar no meu rosto, a única parte
em mim que não estava coberta por roupas, eu morreria antes dele. Eu era
menor e mais magra. A inanição e a desidratação me pegariam primeiro.
— Veja bem — Touch disse. — Não vamos perder as esperanças. Há sempre

— Veja bem — Touch disse. — Não vamos perder as esperanças. Há sempre
a chance de que outros mochileiros venham explorar as grutas.
Concordei, torcendo pra que ele pudesse sentir e ouvir o movimento da
minha cabeça balançando, porque eu não conseguia nem falar direito.
— Ou um guarda florestal — eu disse. — Um guarda poderia encontrar
nossas coisas lá em cima e descer pra procurar a gente.
— Então vamos esperar. Vamos esperar e ficar de ouvidos atentos. Vamos
beber água e comer a comida que ainda nos resta.
— E se ninguém vier...
— Nós vamos morrer — ele disse, com essa simplicidade toda.
Ficamos ali parados por um minuto, os dois morrendo profunda e
dolorosamente de culpa. Quanto a mim, senti que tinha sido tão cuidadosa em
não tocá-lo, em mantê-lo tão seguro, pra depois acabar matando o cara de uma
forma diferente, com um tipo diferente de descuido.
Os braços dele ainda estavam firmes em volta de mim. Encostei meu rosto no
seu sobretudo de couro. Se eu ficasse ali, quietinha, encostada nele, não tinha
como machucá-lo. Fazia tanto calor dentro daquelas grutas, apesar da umidade
que vinha das paredes, mas eu ainda não me atrevia a tirar uma camada sequer
de roupa. Tentei imaginar como seria se tudo o que eu desejava se tornasse
realidade, e outra espeleologista (uma esperta, com duas lanternas e pilhas
extras) fosse nos resgatar. Não tínhamos visto ninguém no caminho até lá, então
eu não estava com tanta esperança assim. Mas se esse pedido se realizasse,
talvez meu outro pedido também acabasse sendo atendido, e Touch me levaria
com ele pra casa, pro seu tempo, meu próprio planeta. Lá, daqui a dez mil anos,
eu me sentiria sempre assim, com esse calor todo, suada, mesmo andando por aí
completamente nua. Quem diria que em todo esse tempo usando couro no verão,
eu estava mesmo era treinando pro que um dia viria a ser meu maior desejo.
Sem dizer nada, nós dois caímos ao mesmo tempo naquele chão arenoso.
Como eu disse, os olhos não conseguem realmente enxergar no escuro total (não
só escuridão, mas trevas). Parte de mim já tinha começado a se acostumar com
isso. É incrível com o que uma pessoa pode se acostumar! Conseguimos meio
que nos esgueirar de volta à posição inicial, até que Touch caiu no chão e escorou
suas costas numa parede da caverna, e eu me apoiei nele, mantendo minha
cabeça bem abaixada e pressionando meu rosto contra ele, sentindo aquele seu
cheiro tão familiar.
— Ei, como é que é isso, afinal? Viver num planeta onde faz 50 graus?
Touch suspirou, e eu me encostei ainda mais nele, sentindo todo o movimento
do seu peito. Ele estremeceu de leve, como se já estivesse com frio por tempo
demais.
— É maravilhoso. De fato, eu nunca tinha dado valor de verdade ao quanto
isso é maravilhoso até me dar conta de que nunca mais poderia voltar.
Então, ali naquela escuridão, sem saber se iríamos sobreviver ou acabar
morrendo, mas bastante seguros de que a segunda opção era mais provável,
Touch foi em frente e me contou tudo.
A história que ele me contou se passava num tempo bem distante do presente.
Não em dez mil anos, mas quase. Mal sei se conto isso no passado ou no futuro.
Mas como foi no passado que escutei de Touch, acho que vou me basear nisso.
Quinhentos anos antes de Touch nascer, o mundo meio que era como o nosso
mundo, ou talvez ainda pior. A água já tinha, fazia muito tempo, inundado a maior
parte da Terra. Havia pouquíssimo chão, o que significavam recursos escassos.
Como dá pra imaginar, como o mundo se tornou essencialmente mar, o oceano
passou a ser a principal fonte de extração dos alimentos. O povo só comia peixe e
algas marinhas. Algumas plantações eram cultivadas no solo, mas o clima era
muito árido e só chovia de estação em estação. De algum modo ficou acertado
muito antes que apenas algumas famílias em cada continente ficariam no
controle (eram três a essa altura, até onde pude entender: versões menores da
América, África e Ásia). Essas famílias viviam em áreas enormes e todos os luxos
futuros pertenciam a elas.
E o resto da população? Trabalhava pras famílias dominantes, passando a
maior parte das suas vidas no mar, em barcos, e debaixo do sol escaldante,
pescando e cultivando algas marinhas, ou mergulhando atrás de mariscos. Só
voltavam à terra firme pra entregar as mercadorias às famílias dominantes, que
basicamente sentavam suas bundas nas poltronas e ficavam esperando pelas
encomendas. Os mais sortudos, os plebeus (acho que hoje daria pra chamar de
classe média) viviam em terra firme e trabalhavam pra classe dominante em seus
castelos, servindo todo mundo e tal. Mas a maioria da população estava lá no
oceano, onde a vida era difícil e curta demais. A vida em terra firme era um ócio
total, um luxo só, pelo menos pras pessoas no comando, então era tudo
superinjusto, e acho que assim as coisas ficaram por milhares e milhares de anos.
Touch disse pensar que, em parte, essa provavelmente seria a razão pela qual
eles não sabiam muito sobre nós, sobre as pessoas que tinham existido antes deles,
e não só porque a gente tinha conseguido, no fim das contas, não deixar vestígio
algum. A sociedade era tão corrupta e tão centrada em satisfazer pouquíssimos
indivíduos que nunca ninguém parou muito pra pensar sobre o passado.
E então, uns quinhentos anos antes de Touch nascer, surgiu uma ideia num
barco de pesca. Todas aquelas pessoas recebiam redes de pesca praticamente
quando começavam a dar seus primeiros passos. Elas cresciam embaixo do sol
mais quente que você possa imaginar, com muito pouco espaço pra todo mundo e
sem outra opção senão pescar e navegar até morrer, geralmente muito jovens. Só
que nesse barco, em especial, as pessoas começaram a falar. Touch não
conseguia pensar numa tradução pro nome do barco (a palavra, na língua dele,
soava como o zumbido mais bizarro e fantasmagórico do mundo, ecoando pelas
grutas de Horseshoe Mesa), então decidi chamá-lo de Lincoln. Havia todas essas
pessoas trabalhando no Lincoln, nunca vestindo muitas roupas, vivendo apenas dos
restos que sobravam das suas entregas pro pessoal rico dos três continentes que
ainda existiam. E eles passaram a observar (a concluir) que as pessoas no
controle não conseguiam realizar uma mísera tarefa que fosse por si mesmas. E
assim, em vez de fazerem suas entregas, começaram a navegar pelo mar,
encontrando-se com outros barcos pesqueiros e convencendo as pessoas (que
ultrapassavam as famílias dominantes em milhares) de que não havia necessidade
de continuar vivendo dessa maneira só porque sempre tinha sido assim.
Eclodiram as primeiras revoltas. Ao longo dos cem anos seguintes, as classes
dominantes foram derrubadas. Foi uma longa e sangrenta revolução, mas, quando
chegou ao fim, um novo governo ascendeu. Só que em nada parecido com o
governo que nós mesmos tínhamos hoje. Era apenas um mundo onde todos
trabalhavam em conjunto, todo mundo tinha apenas o que precisava e ninguém
tinha nada a mais do que os outros. Quando as pessoas completavam dezoito
anos, tinham de trabalhar nos barcos pesqueiros por quatro anos. Depois, podiam
voltar pra casa e usufruir do que bem entendessem. O mundo inteiro funcionava
colaborativamente, com todas as pessoas escolhendo o que fariam da vida (o que
faziam de melhor) e empregando suas ações a favor do bem de todos.
O que Touch fazia de melhor, o que mais gostava de fazer, era construir
aqueles dispositivos, que pra mim pareciam mágica (tipo o tradutor, a bola azul e
o anel de ouro), mas no seu mundo eram considerados apenas tecnologia de
ponta. Quando ele voltou pra casa após servir em seu período nos barcos de
pesca, passou a trabalhar na produção de novas invenções, viajando dum jeito que
nunca tinham visto.
— Eu sei o que aconteceu depois — eu disse, interrompendo Touch. —
Foram as famílias, né? As famílias primitivas. Eles queriam que as coisas
voltassem a ser como eram antes. Não queriam que as coisas fossem
compartilhadas. Queriam tudo só pra elas mesmas.
— Isso mesmo — Touch disse em meio ao negrume. — Foi exatamente isso.
— Então, Alabaster... Ela deve ser descendente deles, dos aristocratas
originais?
— Isso mesmo — ele disse de novo. — Ela é.
Ficamos ali sentados, quietos por um tempo, e pensei sobre como a natureza
humana nunca mudaria. Nem mesmo em Arcádia. Uma imagem diferente do
planeta Terra vinha se formando na minha cabeça, e eu já não estava mais
pensando nele como um amontoado de diferentes mares e blocos de terra, mas
um único oceano gigantesco. Na verdade, a Terra não passava disso mesmo, um
oceano em ascensão, e todo e qualquer solo ainda intacto era passageiro. Não
importava de fato o que tinha sido feito do nosso mundo, mesmo que eu soubesse
que estávamos a caminho de sermos mergulhados embaixo d’água. Até mesmo
no mundo de Touch... Era uma questão de tempo até que o nível do oceano
resolvesse subir um pouco mais e condenar todo mundo de uma vez. Pode até
parecer deprimente, mas, pra ser bem sincera, aquilo tudo me confortava, porque
afinal eu estava ali sentada, quietinha, só esperando pra morrer, e se desistir de
mundos inteiros não importava tanto assim, o que poderia importar menos que
duas pessoas presas dentro de uma série de grutas subterrâneas?
— A questão é — Touch começou a dizer, mas logo o interrompi.
— Eu sei o que você vai me dizer. Alabaster não é a única herdeira dessa
história. Você também é. Não é?
Touch não disse nada. Só balançou a cabeça. Deu pra sentir seu queixo
cutucando o topo da minha cabeça, então só enterrei meu rosto ainda mais no seu
peito, pra protegê-lo.

X- Men: OToque Da VampiraOnde histórias criam vida. Descubra agora