capítulo 02

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Tia Carrie sempre dizia que eu era o diabo. Eu não acreditava muito nisso.
Mas já não podia mais ter certeza. Na verdade, é mentira que ela sempre dizia
isso. As primeiras lembranças que tenho dela são muito embaralhadas com as
que tenho de mamãe. As duas eram como unha e carne, com flores no cabelo,
gargalhando nos campos de grama alta perto do pântano Bayou Pelage. Levavam-
me pra caminhar pelo Bayou e eu ficava sentada na margem enquanto elas
remexiam a água escura e densa atrás de orquídeas terrestres, nenhuma das duas
com o menor medo de jacarés ou cobras. Naquela época, Tia Carrie era hippie,
bendita seja, igual a mamãe. Elas até se pareciam, tinham cabelos loiros, olhos
azuis e sorrisos iluminados. Nada como eu, obscura e frágil. Devo ter puxado meu
pai. Não posso dizer que me lembro dele, nunca cheguei nem a ver uma foto. A
única coisa que sei com certeza é que o nome dele era Conrad. Uma vez,
pesquisei na internet e descobri que significa “corajoso”, então é assim que
sempre penso nele. Corajoso.
Depois que minha mãe morreu, Tia Carrie mudou. Abandonou a
comunidade e voltamos pra fazenda da família. Não foi fácil pra ela. Quando fugi,
ela estava prestes a se isolar do resto do estado do Mississipi. Quando me sinto um
tanto caridosa, gosto até de pensar que ela estava apenas com medo que eu
ficasse como minha mãe, cabeça aberta e selvagem demais até que, um belo dia,
caísse no mundo. Sempre me manteve por perto, sempre de olho, e nunca teve
medo de usar o cinto quando achou necessário.
— Anna Marie — ela dizia —, vai pegar um cinto já. Vou te bater até o diabo
sair do teu corpo.
Acho que ela não bateu forte o bastante.
Na manhã seguinte à noite em que dei os vales a James, acordei com uma
sensação estranha no bom sentido, meio natalina. Mas só durou o tempo de dar
três passos pelo quarto e olhar o frigobar pra ficar preocupada de novo. Quando
abri a porta, tudo o que vi foi só o que não tinha. Não tinha café, ovos, nem nada
além de um pouquinho de leite com um fio de espuma azeda. Bati a porta do
frigobar e sentei na cadeira desnivelada que tinha encontrado ao lado de uma
lixeira. Minha janela estava escancarada, mas nada nem parecido com uma brisa
fresca entrava, só um bafo quente tão denso que eu poderia até ter armazenado
um pouco dentro de um pote e cultivado cogumelos.
Pelas ruas, todo tipo de pessoa andava pra cima e pra baixo vestindo trajes de
verão. Jovens mães seguravam as mãos de seus filhos. Mulheres de meia idade caminhavam de salto alto e saias enrugadas, como se estivessem indo ao encontro
de alguém. Imaginei-as chegando a um restaurante e dando um enorme abraço
na amiga antes de se sentarem e pedirem ovos feitos com uma receita chique
qualquer. A mãe de Cody costumava fazer ovos cozidos com molho de vinagre. A
Sra. Robbins gostava de mim. Aliás, ela foi a última pessoa no mundo a me dar
um beijo na bochecha. Atravessamos a porta da cozinha, ela me beijou e disse:
— Já tomou café da manhã, Anna Marie? — Ela sabia que eu diria que não
mesmo já tendo tomado, amava aqueles ovos com vinagre que ela fazia. O
melhor era a torrada, ensopada na gema, no vinagre, na manteiga, tudo
misturado. Eu sempre fechava os olhos quando dava a primeira mordida.
Ainda de pé ao lado da janela, senti meu estômago embrulhar de fome. Tinha
vales-alimentação dentro da minha carteira, não muitos já que tinha dado alguns
pra James, mas o suficiente pra durar o resto da semana se levasse apenas massa
e uma dúzia de ovos. Por outro lado, eu podia simplesmente ficar no apartamento.
Parar de comer de uma vez por todas. Imaginei quantos dias demoraria pra que
uma pessoa morresse de fome. De uma coisa eu tinha certeza: ninguém bateria
em minha porta até que fosse cobrar o aluguel, o que seria dali a duas semanas, e
eu não tinha ideia de como juntaria aquele dinheiro. E se eu simplesmente
desistisse de uma vez? Assim, quem sabe, o perigo que eu representava aos
outros, a todos, morreria junto comigo.
Um pequeno suspiro se formou em minha garganta e explodiu pela boca.
Sacudi a cabeça e me afastei da janela pra que ninguém me visse. Eu precisava
de comida. Eu precisava de dinheiro. Eu teria de ir até a biblioteca e olhar os
classificados atrás de emprego. Então comecei a vestir as roupas quentes que eu
tanto odiava, mas que mantinham o mundo a salvo de mim.
O que leva uma pessoa a sobreviver quando ela não tem mais nada pelo que
viver?
Já na biblioteca Eudora Welty, senti-me aliviada ao ver que o movimento
estava fraco e vários computadores estavam disponíveis. Nos classificados,
encontrei propostas de emprego no Jaco’s Tacos e no Mermaid Café, mas ambos
durante o dia. Quando morava em Caldecott County, tinha trabalhado no verão,
depois da escola, como garçonete no Bette’s Diner, e me lembrei da frequência
com que as pessoas estendiam a mão pra me cutucar ou até mesmo pra agarrar
meu pulso. Obviamente isso não daria certo.
Cliquei no site de registros de Caldecott County e digitei “Cody Robbins” no
campo de pesquisa. Três artigos antigos apareceram. Eu já tinha lido todos eles.
Certamente os jornais iriam noticiar caso ele tivesse acordado; não havia muitas
grandes novidades naquela cidadezinha pacata às margens de um curso d’água
pantanoso. Aliás, era bem provável que a maior notícia surgida por lá tenha sido
quando Cody Robbins (o melhor lançador do time de beisebol da escola) caiu à
beira do rio Mississipi e jamais levantou.
Naquele dia fatal, após ter comido os ovos que sua mãe tinha feito pra mim,
Cody e eu fomos passear. Não era longe de sua casa até o rio Mississipi; eu e ele
já tínhamos feito o percurso algumas vezes antes. Não que ele fosse meu
namorado. Pelo menos não exatamente, mesmo ele tendo me dado um anel de
presente com minha a pedra correspondente ao mês de meu nascimento, uma
pequena ametista, no Natal anterior. Nós dois andávamos juntos desde que
éramos pequeninos. Todo mundo (Tia Carrie, Sr. e Sra. Robbins, até mesmo
Cody e eu) pensava em nós dois como colegas. O que não quer dizer que eu não
fosse apaixonada por ele havia um bom tempo.
Cody e eu andamos em direção ao rio, longe da vista da casa dele e de todos
dentro dela. Longe da vista de todos em Caldecott County. Apenas nós dois, num
dia perfeito de outono, com o sol brilhando alto no céu, um sopro quase
imperceptível de frio pairando no ar. Conversávamos sobre coisas bobas como
beisebol, os gatinhos que a gata da Tia Carrie tinha parido na noite anterior e o
novo corte de cabelo de Shelby Zimmerman. Depois de um tempo, acabamos
parando embaixo de uma árvore de Tupelo, com suas folhas vermelhas
balançando sobre nossas cabeças e nos cobrindo de modo que, se alguém
estivesse olhando em nossa direção, veria apenas dois pares de pernas, um de
calça jeans e o outro por baixo de uma saia curtinha de babados floridos.
Cody era tão grandalhão que até mesmo uma garota alta como eu tinha de
ficar na ponta dos pés pra alcançar sua boca. Pus minhas mãos em seus ombros e
dei um belo beijo nele, dos clássicos. Ele não pareceu nem um pouco surpreso, e
certamente não tinha nada a reclamar. Só colocou suas mãos na minha cintura e
me beijou de volta, e por um bom minuto contado no relógio, talvez até mais. O
mundo todo estava perfeito. E, de repente, o mundo estava na maior imperfeição
que jamais poderia estar e, até onde dava pra ver, nunca iria melhorar.
***
Durante todo o caminho até o hospital fiquei observando no espelho meu
reflexo com aquelas novas mechas brancas no cabelo.
— Deve ter sido pelo choque — a Sra. Robbins disse no mesmo instante em
que as notou.
Eu não estava nem aí pro meu cabelo, apenas rezava pra que não fosse culpa
minha. Que fosse tudo uma grande coincidência e que ele tivesse começado a ter
uma convulsão bem na hora em que estávamos nos beijando. Mas mesmo
enquanto rezava, parte de mim sabia. Eu também pude sentir um tipo de
convulsão, Cody todinho saindo de si e sendo lançado direto em meu corpo.
Naquele exato momento logo antes de Cody desabar no chão, a sensação era tão
intensa que eu mal pude notá-lo caindo. Bastou um segundo pra que eu o sugasse
por inteiro feito um lobo chupando os ossos de um veado. Gulosa. Quando voltei
ao meu estado normal e saí correndo até a casa dele pra pedir ajuda, não corria
com minha própria velocidade, mas com a de Cody. Era capaz de lembrar de
milhares de bases de beisebol por baixo dos meus pés e o barulho das minhas
chuteiras escorregando até a base final.
— Aconteceu algo fora do comum — o médico me perguntou quando
chegamos ao hospital — logo antes de ele cair?
Eu não conseguia falar nada, mas sacudi a cabeça. Sacudi com força. Eles
confiaram na minha palavra. Por que não confiariam? Sempre fui uma boa
menina. O doutor saiu correndo atrás de Cody assim que o levaram pelo
corredor. Eu não podia ir junto, mas a mãe dele sim. Afundei na cadeira na sala
de espera e me lembrei de ter ido àquele mesmo hospital quando eu tinha sete
anos de idade pra retirar minhas amídalas, e do tanto de sorvete de pistache que
tinham me deixado comer. Só que eu odiava sorvete de pistache e ainda tinha
minhas amídalas. O que diabos estava acontecendo?
O diabo. Do jeitinho que Tia Carrie costumava dizer. Eu era o diabo.
Só havia uma forma de descobrir com certeza se tinha sido eu quem fez
aquilo com Cody. Então saí escondida do hospital e peguei um ônibus até o centro
da cidade, depois corri por cerca de sete quilômetros de volta à fazenda da nossa
família, calçando chinelos. Ao chegar lá, o sol já estava se pondo. Pude ver as
luzes acesas na cozinha e Tia Carrie preparando o jantar. Dei a volta no estaleiro,
subi até o mezanino onde Arisca, a gata caolha, estava deitada cuidando de sua
ninhada recém-nascida.
Ajoelhada na palha, fiquei observando os gatinhos. Onze filhotinhos. Quem
sabe uma mãe com menos experiência pudesse estar com medo de perder
algum deles, mas os filhos, netos, bisnetos e tataranetos de Arisca estavam por
toda parte em Caldecott County. Eu não tive dúvidas de que ela daria conta de
cuidar de cada um de seus novos filhotes. Mesmo assim, escolhi o menor de
todos. Levantei-o pelo couro do pescoço pra longe de seus irmãos e irmãs e do
calor da sua mãe. O gatinho era preto. Esperneava em minha mão, mas nada
aconteceu com ele, nada mesmo. Apenas abriu a boca e miou.
Por um instante, senti uma onda de felicidade. Não fui eu! Não tinha
machucado Cody. Foi só uma coincidência ter sido depois do nosso beijo. Mas
logo notei que o pelo do gatinho o protegia do contato direto com minha pele. Não
estávamos nos tocando, não literalmente. Então, respirei fundo e ergui o gato até a
altura do meu rosto. Seus olhinhos estavam enrugados de tão fechados, e eu sabia
que ele ainda não podia escutar nada também. Mesmo assim, sussurrei:
— Desculpa, gatinho. Espero de coração que eu esteja errada — e pressionei
meu nariz contra seu focinho miúdo e molhado.
Não demorou nem perto do que foi com Cody. O filhote era tão miudinho.
Alguns poucos segundos se passaram e o esperneio se tornou convulsão. Deitei o
gatinho na palha. Era tarde demais. Ele estava estirado, imóvel, minúsculo e duro
como pedra, morto.
Senti um arrepio passar por todo meu corpo. Tentei piscar, mas meus olhos
estavam completamente selados. Estava cega feito um morcego, ou feito um
gatinho recém-nascido. Ah, foi o mínimo de castigo que meu ser diabólico
merecia. Um sentimento de pesar e exaustão tomou conta de mim. Cobri o gato
com um pouco de palha e fui pro canto do mezanino, encolhida embaixo do
beiral do telhado. Quando acordei, já era de manhã e meus olhos se abriram
normalmente. A luz se esparramava dentro do estaleiro pelas rachaduras. Talvez,
se tivesse acordado na minha cama, eu pudesse ter imaginado que tudo tinha sido
um sonho. Mas não aqui, não com palha no cabelo e vendo Arisca furiosa
acariciando seu pobre filhote morto. Passei por entre os dois gatos e desci a

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