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azul, ainda me sentindo feito uma abóbora vazia pronta pra ser esculpida. Era
como se alguém tivesse me programado e então eu pudesse seguir no piloto
automático, feito um robô. Atravessei o estacionamento. Abri a porta da
camionete. Subi ao volante. Enfiei a chave na ignição.
Mas assim que fechei a porta, algo me arrebatou. Toda a cabine cheirava a
cedro e eucalipto, a canela e gengibre. Tinha o cheiro de Touch e não apenas o
dele, mas nosso cheiro, o cheiro de toda essa viagem que tínhamos feito juntos.
Sim, eu precisava girar a chave na ignição. Eu precisava rumar meu carro ao
sul, ao México, e passar pela fronteira e esperar Touch. Ele tinha dito que a
eletricidade tornava mais fácil rastrear as pessoas, então eu iria pra maior cidade
que pudesse encontrar. Pô, eu tinha uma chave de fenda que fazia bombas de
gasolina jorrarem combustível e caixas eletrônicos cuspirem dinheiro. Então era
bem capaz de que, quando chegasse ao México, eu me hospedasse num daqueles
grandes resorts. Ficaria o dia inteiro à beira da piscina, tomando minhas piña
coladas até que, de repente, Touch apareceria, todo agasalhado, ao pé da minha
cadeira de praia.
Mas e se ele não aparecesse? Quem poderia dizer tudo o que eles deviam
estar fazendo com ele, daqui a dez mil anos?
Não havia nada a fazer. Senti uma coisa subindo pela garganta, algo que não
acontecia, não totalmente, havia muito tempo. E fiz o que não tinha feito quando
Cody caiu em coma ou quando Wendy Lee me despediu da padaria. Encostei
minha cabeça no volante e chorei, chorei e chorei.
Até que finalmente escutei alguém batendo no carro. Levantei a cabeça.
Meus olhos estavam tão inchados que eu mal podia enxergar. Enxuguei as
lágrimas, soltei um longo suspiro e abri a janela.
Era uma senhora de meia-idade com cabelos curtos tingidos de loiro e rugas
ao redor dos olhos, daquelas que aparecem de tanto dar risadas. Mas ela não
estava rindo. Parecia muito triste. Por um instante cheguei a me perguntar o que
estaria errado com ela, e me dei conta de que ela estava triste por mim.
— Você está bem, minha querida? — ela perguntou, com muito cuidado e
realmente preocupada.
— Sim, senhora. Obrigada. Eu estou bem.
Ela inclinou a cabeça e deu um discreto sorriso.
— Você tem certeza? Ficaria feliz em pagar uma xícara de café, se você
precisar de alguém pra conversar.
Respirei tão fundo que até estremeci. Provavelmente ela era só mais uma
carola fanática, querendo me mostrar Jesus e o caminho até Deus. Ou uma
empresária do sexo que aliciava jovens vulneráveis para uma vida miserável. Ela
ficou ali parada com seu jeitão de mãe, seu jeans largo e sua camiseta rosa,
esperando algum tipo de resposta. E eu sabia que ela não era nenhuma dessas
coisas, só uma senhora simpática, provavelmente com uma filha da minha idade.
— Isso é bem legal da sua parte. De verdade. Só você ter oferecido já me fez
sentir melhor.
— Que bom, minha querida. Mas a oferta é sincera. Deixe que eu pague
uma xícara de café.
— Obrigada. Agradeço sua gentileza. Mas tenho que ir.

— Você tem certeza?
Fiz que, sim, com a cabeça e ela então disse, meio relutante:
— Tudo bem, minha querida. Dirija com cuidado, ok?
— Pode deixar — prometi. E saí do estacionamento do restaurante, mas não
de Gila Bend. Porque aquela simpática senhora acabou me lembrando de algo
importante. Eu ainda tinha uma última coisa a fazer antes de deixar os Estados
Unidos.
Queridos Sr. e Sra. Robbins,
Eu estava sentada à frente de um computador na Biblioteca Pública
de Gila Bend, com os olhos fixos no cursor. Havia apenas cinco
computadores naquela salinha fria de teto baixo. Imaginei o tanto que
Touch não estaria tremendo todo se estivesse lá ao meu lado. Antes de
começar a carta aos pais de Cody, procurei na internet por notícias dele.
E a verdade era que eu não precisava procurar porque, no fundo do meu
coração, eu sabia que ele ainda estava dormindo em seu coma. Dava pra
sentir isso nos meus ossos, como se estivessem repletos da medula de
Cody, junto com todas as suas lembranças. Foi a internet que tinha me
dito sobre Wendy Lee ter acordado, e não algum sentido especial dentro
de mim. Mas Cody e eu tínhamos sido tão mais próximos e nosso contato
tinha durado por tanto mais tempo... Eu tinha certeza de que sentiria de
imediato caso ele algum dia abrisse os olhos, não importa onde eu
estivesse.
Queridos Sr. e Sra. Robbins,
Era uma carta perigosa de escrever. Àquela altura, provavelmente,
alguém no Mississipi já devia ter conectado os fatos entre Cody e Wendy
Lee. Fiquei imaginando o que eles andariam dizendo de mim lá em
Caldecott County. Que tipo de fofoca estaria correndo por lá sobre o que
eu tinha feito com Cody? Será que Tia Carrie tinha acreditado? Será que
ela tinha se enforcado na igreja como punição por seu fracasso em tirar o
diabo do meu corpo? Será que ela chegou a me procurar quando
desapareci? Eu me lembrei de como ela costumava entrar no meu quarto
de madrugada, nas pontas dos pés, e tirar o cabelo do meu rosto enquanto
pensava que eu estivesse dormindo. Talvez ela ainda tenha entrado lá
algumas noites, só pra se sentar na minha cama e ficar olhando pra
grande mancha quadrada, mais branca do que o resto da parede, onde
meu mapa ficava. Mas o que me dava motivos pra acreditar que ela
deixaria o quarto do jeito que estava? Era bem capaz que ela tivesse
criado uma pequena sala de costura só pra ela ou coisa assim.
De alguma forma, assim como eu sabia que Cody dormia na sua
cama de hospital, também sabia que meu quarto estaria esperando por
mim, exatamente como eu o tinha deixado, se algum dia eu quisesse
voltar, o que acabei não fazendo. Não podia. Não depois de tudo em que

X- Men: OToque Da VampiraOnde histórias criam vida. Descubra agora