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— Nossa, isso é terrível — reagi. E emendei: — Espero sinceramente que ela
fique bem e logo. — Na esperança de que ele traduzisse como “Me diz logo o
que ela tem de errado”.
Aquele sujeito, Curtis era seu nome (podia escutar a voz de Wendy Lee
cacarejando toda afetada, “Ai, Curtis!”), não precisava de tecnologias fúteis e
ultrapassadas como a bolinha vermelha de James pra ler nas entrelinhas.
— Os médicos ainda não sabem dizer se ela vai acordar. Mas eles também
não sabem dizer se ela pode morrer, então a gente está depositando toda nossa fé
em qualquer milagre, por mínimo que seja.
Pensei que não fosse ser capaz de dormir nem por um segundo, mas foi só
rastejar pra debaixo dos lençóis, já de volta ao hotel, que o sono me pegou como
se alguém tivesse me puxado pra fora d’água. A tarde já estava mais ou menos
pela metade e a última coisa que cheguei a ver foi a luz alaranjada por trás das
cortinas espessas e douradas do hotel.
Horas depois, quando acordei gritando, o quarto estava completamente
escuro. Eu estava tendo aquele sonho. Aquele bom e velho sonho que me
acompanhava havia milhares de noites. Não fosse pelo fato de que, dessa vez, não
era Cody que estava nele, e sim James.
Nós dois estávamos em mar aberto, velejando sem rumo.
— Eu poderia jurar que isso é o oceano — James disse, e eu retruquei com
um “não, é apenas um lago de água salgada”.
No meu sonho, lembrava do que tinha aprendido na escola, que aquele era o
Lago Michigan, e que apenas parte da água era salina, exatamente como o mar.
James sorriu pra mim como se eu fosse a criatura mais inteligente de todos os
planetas. Sorriu pra mim como se eu fosse sagaz e linda e muito irresistível. Sorri
de volta, esperando que meu sorriso lhe transmitisse as mesmas coisas que o dele
tinha conseguido. Ele estendeu a mão pra tocar meu rosto. Sabia que devia
impedi-lo. Mas eu queria tanto sentir a palma da sua mão encostada na minha
bochecha...
Sua mão foi na minha direção, carinhosamente preparada pra me acariciar.
Eu sabia bem que não podia deixar que aquilo acontecesse. A plenos pulmões,
gritei “NÃO!” (tanto no meu sonho quanto, acredito, no quarto do hotel). Quando
abri os olhos, alguém do outro lado da parede estava dando socos pra demonstrar
bem todo seu incômodo. Mas eu não conseguia parar de gritar, mesmo sabendo
que não tinha passado de um sonho.
Meus olhos já tinham quase se adaptado à escuridão. E então vi James,
pulando da sua cama pra minha. Eu era capaz de sentir meus cabelos
esparramados sobre meus ombros descobertos.
— Não!
Gritei de novo, dessa vez na vida real, por motivos reais. Mas James estava
preparado. Estava com o lençol do hotel em suas mãos e o estendeu sobre mim.
Cobriu meus cabelos e meus ombros, e protegeu suas mãos quando ele me
envolveu nos braços, me agarrou e me deu um beijo na testa através daquela lã
sintética que não parava de pinicar.

Dava pra sentir seu queixo no topo da minha cabeça. Seus braços eram tão
fortes quanto eu sempre tinha imaginado. James se recostou na cabeceira da
cama e eu encostei minha cabeça no seu peito, ainda com seus braços ao meu
redor.
— James — eu enfim disse após um bom tempo. — Esse nome, James. É
um nome americano. Um nome do planeta Terra. Não pode ser seu verdadeiro
nome.
— Não — ele confirmou. Dava pra sentir seus lábios se mexendo contra o
cobertor de lã sobre minha cabeça.
— Bem... então qual é o seu nome de verdade?
— Você não conseguiria pronunciar. Nossa língua é muito diferente da sua.
Não quis discutir com ele, mas realmente queria escutar seu nome, seu
nome de verdade. Queria conhecê-lo de uma maneira que eu nunca tinha
conhecido ninguém neste mundo. Depois de alguns minutos de silêncio, ele deve
ter sido capaz de imaginar bem o quanto eu queria saber qual era o seu nome,
porque acabou soltando um som que se pareceu um pouco com uma música e
um pouco com um assobio bem baixinho.
— Isso foi lindo — eu disse com toda a sinceridade do mundo. Aquele som
tinha feito meu coração doer um pouco com sua beleza, e também porque me
dei conta de que nunca seria capaz de chegar nem perto de reproduzi-lo. — Ele
significa alguma coisa?
— Significa, sim. Mas você não acreditaria em mim caso eu lhe contasse.
— Tente.
— Quer dizer toque.
— Toque?
— Sim, do verbo “tocar”; “touch” em inglês e francês.
— Fala sério.
Ele ficou me olhando meio perplexo, então sorriu. Com toda certeza estava
sentindo falta do seu tradutor.
— Falando sério — concordou.
Caí de costas por cima do seu peito com o cobertor bem firme em torno de
mim. Não podia pegar no sono daquele jeito, seria perigoso demais. Ao mesmo
tempo, também não podia largar do pé dele assim tão fácil.
Toque. Touch. Eu lutava pra que meus olhos permanecessem abertos de
modo que eu pudesse fazer aquele momento durar só mais pouquinho. Sabia que
nunca mais o chamaria por outro nome. Não demorou pra que ele caísse no sono
e, preocupada que eu acabasse fazendo o mesmo, dei um pulo e tratei de
engatinhar até a outra cama, onde ele estava dormindo antes. Pressionei meu
rosto com força contra o travesseiro, inalando sua fragrância como se fosse
oxigênio e sentindo o calor que ele tinha deixado pra trás como se fosse a maior
manifestação do desejo.
Já era quase de manhã quando passamos pela saída de La Porte, e quase não
havia carro algum na estrada. Touch assumiu o volante. Ao pegar a 80 West, o
porta-luvas se abriu e o manual de instrução caiu lá de dentro, junto com um
envelope cheio de fotografias. Passei os olhos por todas elas, todas de algum tipo
de festa de um escritório. Havia inúmeras fotos de uma pessoa em particular,
uma morena sorridente que parecia ter uns trinta anos. Imaginei que fosse a dona
do carro, mas quando examinei os documentos do veículo, vi que pertencia a um
tal de “Franklin Faxon”. Era um nome engraçado. Pra mim, pelo menos. Franklin
Faxon devia ter uma queda por aquela garota das fotos. Ela bem podia ser sua
namorada, mas alguma coisa no sorriso dela, em como ela sorria pra câmera,
parecendo estar lisonjeada mas não totalmente confortável com a situação, meio
que me passou a impressão de que ela não era, nem nunca seria, a namorada
dele. Agora, ainda por cima, seu carro tinha sido roubado. Como ele deve ter se
sentido quando voltou pro hotel e descobriu que o carro não estava mais lá? Ainda
que tivéssemos roubado num caso de vida ou morte, eu me sentia terrivelmente
triste por Franklin Faxon, e culpada também. O carro estava limpíssimo, com
tudo em seu devido lugar. Tudo ali gritava “homem prevenido”.
Touch e eu ficamos conversando sobre o assunto por um tempo. De acordo
com o registro, Franklin morava em Napoleon, em Ohio. Talvez ele estivesse em
Altoona a trabalho ou indo visitar alguém. Decidimos que iríamos desviar até Ohio
e deixar o carro em algum lugar da cidade, pra depois lhe enviar um cartão postal
dizendo a localização. Por fim, arranjaríamos outro carro, que também teríamos
que roubar, mas dessa vez levaríamos de alguma concessionária.
— Mas isso também seria roubo — Touch disse.
— É, pode ser, mas estaremos roubando de uma grande corporação. Não
vamos roubar de uma revendedora pequena, vamos direto no peixe grande.
Deixei Touch por dentro de tudo sobre as grandes corporações e como os
empresários malvados só queriam saber de lucrar em cima do mesmo povo que
trabalhava pra eles ou do povo que comprava as coisas deles. Ele fez sinal com a
cabeça como se tivesse entendido por experiência própria.
— Existe alguma coisa parecida com isso lá de onde você veio? — Apesar de
ter digerido até rápido a ideia, eu ainda não conseguia dizer “no seu planeta”.
— Se você tivesse me perguntado isso algumas semanas atrás, eu teria dito
que não. Mas agora...
Ele deixou que sua voz fosse sumindo aos poucos, como se, por alguma
razão, a resposta tivesse mudado pra sim.
Continuava sendo incrível, depois de todos esses anos da minha vida
desejando viajar por aí e conhecer novos lugares, ver tudo passando por mim feito
um borrão de asfalto e pasto verde. Chegamos a Napoleon lá pro fim da tarde e
deixamos o carro de Franklin Faxon no estacionamento de um Walmart. Aí
saímos andando pela rua principal, bastante movimentada, até encontrarmos um
hotel onde nos hospedamos. Nenhum dos dois estava com fome, mas ambos nos
sentíamos meio agitados, então fomos dar uma caminhada ao longo de um
extenso e lindo rio. Até então, todas as cidades em que paramos tinham alguma
coisa legal (como esse rio ou aquela lagoa em La Porte), mas nada do que vi
tinha me pegado realmente de jeito ou era tão diferente assim de tudo o que eu
conhecia antes.

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