E, sinceramente, o que importava um mundo que não tinha nada a ver
comigo? Arcádia. Nada mais do que uma palavra. Um conceito. Um ideal
inalcançável.
Daqui a dez mil anos, todas as costas e planícies de todos os países vão estar
debaixo d’água. Eu não estou falando só da Califórnia e da Flórida submersas nos
oceanos. Estou falando que não vai sobrar nada além das Montanhas Rochosas e
o deserto em torno delas, e talvez mais uns três estados dignos de nota. A mesma
situação vai se dar em todos os outros continentes, com exceção daqueles
(Europa, Austrália e Antártida) que serão totalmente submersos. Tudo o mais que
restar será apenas uma fração do que costumava ser, flutuando no meio de um
único e grande mar azul-esverdeado. Eles não terão diferentes nomes pra
diferentes oceanos. Será um nome só, O Mar, que ocupará a maior parte do
planeta, fazendo com que a terra firme não passe de uma reflexão tardia.
Mas me mostrar o mapa não foi a primeira coisa que o pai de Touch fez
quando veio falar comigo no meu quarto. Antes ele perguntou meu nome.
— Você não sabe?
— O que você acha?
— Eu acho que você sabe.
Ficamos ali por um breve momento, um encarando o outro, até que eu
resolvi ceder. O que provavelmente não era um bom sinal.
— Meu nome é Vampira.
— Esse é o nome que Touch lhe deu.
— É o único nome que eu tenho.
— Muito bem, Vampira. Você pode me chamar de Rei.
— Rei?
Ele sorriu, como se minha aversão à ideia fosse a coisa mais engraçada do
mundo.
— É o único nome que eu tenho — retrucou, com um ar ligeiramente severo.
Então ele me mostrou o mapa do que o mundo tinha se tornado.
Com os olhos fixos na imagem, senti uma tristeza profunda por tudo o que
aquilo tinha sido. Mas tentei não transparecer isso ao Rei. Odiava o jeito como ele
me olhava à espera de uma reação ou uma emoção qualquer. Recordei o que
Alabaster tinha dito sobre como meu rosto entregava o jogo, e dei um duro
danado pra permanecer com a cara virada pra frente. Ficava me relembrando a
todo momento que, submerso ou não pela água do mar, nada dura por dez mil
anos. Tudo o que eu conhecia já teria desaparecido pra sempre àquela altura, de
um jeito ou de outro.
Mas sem sequer deixar um rastro que seja da nossa existência? Quer dizer, é
só pensar em tudo o que nossos próprios arqueólogos encontraram. Fósseis de
dinossauros, ossos de pessoas que viveram centenas de milhares de anos atrás. As
aldeias Anasazi, como aquela aonde Touch tinha me levado, não podiam
simplesmente desaparecer assim. Do que se deduz que, aparentemente, mesmo
debaixo d’água, somos capazes de destruir todas as nossas grandes cidades e
todas as nossas pequenas cidades também, e assim essa nova civilização não
sabia nem que já tínhamos existido. Não até que Touch tropeçasse em nós por
acaso. Foi nossa ganância, eu tinha certeza. Nossa ganância e nossa cegueira nos
varreram da face da Terra sem deixar o menor rastro. E agora aquelas pessoas (a
família de Touch) queriam varrer Arcádia do mapa e seguir pelo mesmo
caminho.
Enfim. Dava pra entender bem por que Touch não tinha sido capaz de ler
meu atlas de Rand McNally. O mapa que o Rei me mostrou era como a
fotografia que Alabaster carregava, de Touch com seu filho. Pairando no meio da
sala, havia um imenso holograma do oceano, com a possibilidade de zoom em
qualquer ponto. Quando o pai de Touch moveu o mapa mais ao leste, pra longe do
que tinha restado da América do Norte e rumo ao que costumava ser a Europa,
tentei imaginar o Mississipi no fundo do oceano. Nada de igarapés, nada de
jacarés, nenhum rio. Será que os pinheiros e as árvores de Tupelo ainda estariam
oscilando por baixo d’água? Era uma imagem das mais esperançosas, mas claro
que as árvores precisam de muito mais luz solar do que jamais chegará ao fundo
do oceano.
— Então, veja bem — o Rei continuou —, tudo o que você conhecia ficou
para trás. O que lhe resta é o aqui e o agora, neste mundo. Nosso mundo. Seu
futuro, nosso presente. E nossa intenção é transformá-lo em um lugar onde você
gostaria de ficar.
Estávamos sentados no meu quarto (o quarto de hóspedes na casa de
Alabaster e Touch, o lugar onde eles já tinham sido uma família). Eu numa
poltrona. O Rei num banquinho que ele tinha levado. Acho que ele era educado
demais pra sentar na cama onde eu dormia. Tinha deixado a porta do banheiro
escancarada pra que eu pudesse ver de longe, através da janela, a casa onde eles
mantinham Touch. Onde mantinham Touch... ou onde ele estava hospedado?
Ainda não dava pra dizer ao certo. Ainda não tinham me deixado vê-lo, muito
menos falar com ele.
O Rei continuava lá, sentado no seu banquinho, todo empacotado numa
parca. Alguém bateu na porta e ele assoviou em resposta. Um sujeito com um
casaco branco e grosso entrou carregando uma espécie de mesa/tabuleiro e o
colocou na minha frente. Finalmente. Já estava ficando preocupada que eles não
me servissem nada pra comer. A essa altura eu já estava com tanta fome que não
me importaria nem se eles tivessem envenenado a comida.
Os utensílios eram diferentes dos nossos, uns pauzinhos que se conectavam
nas extremidades. Levei um tempo pra entender como funcionavam. Logo na
primeira mordida, entendi por que Touch não tinha se impressionado tanto com a
nossa cozinha. Era uma espécie de peixe branco e eu nem tenho certeza se
estava cozido, mas simplesmente derreteu na minha boca, a mordida mais
deliciosa e fresquinha de qualquer coisa que eu já tivesse experimentado. O
mesmo valia pra salada, nada cozido, somente verduras limpas e verdes como eu
nunca tinha visto antes, um pouco doce e, ao mesmo tempo, ligeiramente picante.
Céus.
— Deixa eu te fazer uma pergunta — disse ao Rei, depois de algumas tantas
mordidas, quando a fome enfim diminuiu um pouco.
— Você pode perguntar o que quiser.
— Por que você não usa uma roupa tipo essa? — apontei pro macacão verde
que eu ainda estava vestindo, que me manteria confortável caso eu resolvesse sair
do meu quarto tão especial e geladinho. — Em vez de ficar todo agasalhado, digo.
— Ah. Esse é um dos problemas deste mundo, do nosso tempo. O material
utilizado no traje que você está vestindo ainda é um protótipo. Assim como o anel
de ouro de Touch. Ele o construiu se valendo de recursos que pertencem à
Arcádia. Mas como ainda está em fase de desenvolvimento, a distribuição é
regulada. Foi ele quem desenvolveu o material de sua roupa também. Alabaster
tinha o suficiente apenas para costurar esse macacão para você.
— Mas por que alguém mais precisaria de um? Se todos estão confortáveis
com o clima? Pelo que parece, ninguém que não venha a esse quarto precisa de
uma roupa feita desse material.
— É exatamente meu ponto — o Rei disse, jogando as mãos pra cima e
sorrindo de um jeito que talvez fosse pra eu pensar que tinha sua aprovação. —
Todo esse falatório, essa burocracia, essa preocupação demasiada com
igualdade. Isso tudo vai contra o senso comum.
Minha cabeça começou a doer um pouco.
— Eu preciso ver Touch.
— E assim será.
— Quando?
— Na hora certa.
Ele se levantou. Sério, ele se parecia tanto com Touch (e, ao mesmo tempo,
não se parecia nada) que meu coração chegou a doer. O que, suponho, tinha sido
o objetivo. Pra me deixar ainda mais sozinha naquele quarto, presa e insegura, e
amaciar minha carne com a promessa de Touch como recompensa.
— Tem algo que eu gostaria que você visse primeiro — prosseguiu —, antes
de ver Touch.
— O quê?
— O lugar onde você vai viver. Caso escolha ficar aqui conosco.
— Escute, “escolha” me parece uma palavra um tanto engraçada de se usar,
quando você me deixa trancada num quarto e Touch em outro.
— Touch não está trancado em quarto algum.
— Isso é mentira.
— Ele pode ir e vir como bem entender.
— Se isso fosse verdade, ele estaria aqui comigo.
— Não se esqueça de que ele é casado.
Droga. Ele estendeu a mão. Não usava luvas, mas eu tinha as do macacão
que Touch tinha feito para mim, como se ele tivesse lembrado das blusas que
tinha sido obrigada a vestir ao longo da nossa viagem.
— Venha comigo, Vampira. Há muito mais para lhe mostrar.
Foi bem diferente de viajar pelo tempo. Mais rápido, com uma sensação
maior de frio no estômago. Acho que não cheguei a fechar os olhos, mas assim
que chegamos tive a nítida impressão de abri-los.
O Rei e eu estávamos numa ampla colina, toda gramada. Muito além
vislumbrei o oceano, com suas ondas de metros e metros de altura e extensão.
Um pouco mais perto, no entanto, pude avistar a casa mais incrível do mundo.
Sua arquitetura não se parecia nada com a da casa de Touch, pelo contrário, seus
ângulos e espirais ascendiam aos céus. Cada detalhe parecia brilhar, e tive a
impressão de que os cristais ao sol também alimentavam sua energia.
— Essa é uma das casas que nossos antepassados construíram. Claro que
recebeu algumas melhorias ao longo dos anos. E espero que, em breve, seja sua.
Ele enlaçou seu braço no meu e fomos caminhando em direção ao castelo.
Não havia um fosso, guardas ou qualquer coisa do tipo. Em vez disso, wildebears
montavam guarda. A princípio parecia que eles estavam apenas andando,
nenhum método em particular, mas ao nos aproximarmos pude ver que um
cruzava o caminho do outro, rosnando. Seria preciso um forasteiro muito valente
pra ao menos tentar passar por eles.
— Vá em frente. Veja o que acontece quando chega mais perto.
A cicatriz no meu ombro coçou um pouco, alertando pra que eu não fizesse
isso. Mas senti uma espécie de parentesco com aqueles animais, por mais
amedrontadores que fossem. Mesmo que o Rei não tivesse me dito nada, eu
acabaria fazendo o que fiz em seguida. Dei um passo à frente e estendi minha
mão. Os grunhidos dos wildebears ficaram mansos no mesmo instante e eles
recuaram, abrindo passagem.
— Eles a reconhecem como uma de nós. Venha.
O Rei me pegou pelo braço como se quisesse me escoltar até o palácio.
Vendo aqueles wildebears, no entanto, acabei me lembrando de uma coisinha. A
força dentro de mim. Puxei meu braço de volta.
— Eu não dou a mínima pra esse palácio. Se você acha que vai me
conquistar com esses seus castelinhos, pode tirar o cavalinho da chuva.
— Escute.
O sol brilhava tão forte e luminoso que ficava difícil vê-lo, como olhar através
de névoa densa.
— Já estou farta de ficar ouvindo. O que você quer de mim? Porque eu só
quero uma coisa de você, e é o Touch. Leve-me até ele ou traz logo ele pra mim.
— Vampira. Touch chegou a lhe dizer por que foi ao seu mundo? Até seu
tempo?
— Claro que sim — eu disse, embora na verdade a pergunta tenha me
pegado um tanto de surpresa. Isso sempre tinha me incomodado, a imprecisão de
Touch nesse ponto específico. — Ele foi por sua culpa. Porque ele tinha que
escapar e impedir que vocês derrubassem Arcádia.
— Arcádia já caiu.
— Eu não acredito em você.
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X- Men: OToque Da Vampira
Teen FictionEu não criei nada, sou grande fã da vampira assim como vocês, e a Marvel lanco esse livro e eu sou obrigada a compatilhalo com vocês.