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escada. O carro de Tia Carrie não estava lá, provavelmente ela tinha saído a
minha procura. Por sorte, teria tempo suficiente pra juntar tudo o que eu pudesse
levar.
Vesti uma calça jeans, uma blusa de gola rolê e um par de luvas de lã. Juntei
todas as roupas que couberam em minha velha mochila verde e arranquei um
mapa da parede. Peguei todos os centavos das minhas economias de garçonete,
guardadas entre as tábuas soltas debaixo da minha cama, e fui até o banheiro
pegar minha escova de dentes.
Bem, um gato que não chegou a viver nem dois dias completos não tinha
muitas lembranças que eu pudesse absorver, e quase não tinha habilidade
alguma. Mas quando olhei pro espelho em cima da pia, mal pude acreditar no
que vi. Meus olhos tinham se transformado do antigo castanho pra um verde
intenso. Rajadas de jade, brilhantes e reluzentes, nada parecido com olhos
humanos. Eles me encaravam de um jeito que chegavam a ser até acusatórios,
quer dizer, se não estivessem tão amedrontados.
Já na biblioteca Eudora Welty, fiquei parada na frente do computador
encarando a tela com aqueles mesmos olhos esverdeados. Perguntei-me se Cody
estava sonhando comigo, em coma, e se eu me parecia com a antiga Emma ou
com a nova naqueles sonhos. Se os sonhos dele começavam felizes e terminavam
com medo e miséria. No topo direito do meu navegador tinha uma barra de
pesquisas do Google. Digitei “Pacientes em coma sonham?” e fiquei ali sentada
por um bom tempo lendo artigos e formas elaboradas de dizer que ninguém
sabia.
Eu me desconectei e empurrei a cadeira pra trás. Já de pé, quem mais eu
poderia ver senão o misterioso homem antes conhecido como El Creepo, James,
sentado no final da fileira de computadores, olhando pra tela como se estivesse
vendo a coisa mais interessante de toda sua vida. Por um instante, eu só quis poder
gritar seu nome. “James! Sou eu, Anna Marie. Lembra de mim?” Em vez disso,
eu me agachei por trás das cadeiras na fila de espera e fiquei escondida atrás das
pilhas de audiolivros. Conseguia espiar James sem ser vista, entreolhando por
elas.
Será que foi no dia anterior mesmo que eu tinha entrado os vales a ele? Mal
podia entender como ele conseguiu mudar tanto em menos de doze horas. Ele
deve ter encontrado umas comidas bem nutritivas lá pelo Kroger, pois parecia ter
acabado de passar duas semanas em um spa. Sua pele tinha passado de pálida
pra rosada. Ele parecia ter ganhado uns cinco quilos, tudo de músculo. Claro que
só estava conseguindo vê-lo de perfil. Até tentei não desejar que ele olhasse bem
na minha direção pra que eu pudesse ver se alguma coisa tinha mudado naqueles
olhos azuis penetrantes. Meu coração se derreteu um pouquinho só de imaginar,
então puxei a manga da minha jaqueta pra trás e me dei um bom beliscão. Como
assim, eu lá sentindo aquilo tudo por James, espiando o cara por entre aquelas
pilhas? Era como desejar sua morte. James estava todo empacotado como se
fosse novembro em Nova Scotia. Tinha deixado seu sobretudo de couro em casa,
mas vestia uma calça jeans e um grande casaco de pescador, branco e de lã.

Dava pra ver um pedacinho da gola de uma camisa xadrez de flanela, preta e
vermelha, por debaixo do casaco. Claro que a biblioteca tinha ar condicionado.
Até eu me sentia meio confortável dentro daquele meu traje maluco. Mas, se eu
tivesse escolha? Pode apostar que estaria com um vestidinho leve de verão ou
short.
Uma vez, escrevi um texto sobre esperança pra minha professora de
gramática preferida, Srta. Eloise Fitzsimmons. Escrevi que mesmo meus pais
tendo desaparecido quando eu era bem pequena e que eu mal lembrasse da
mamãe e do papai, havia alguns dias em que eu ainda esperava que eles
entrassem no meu quarto e me levassem com eles pra bem longe. A Srta. Eloise
gostou particularmente da minha citação do Sr. Alexander Pope pra enfatizar meu
ponto de vista: “A esperança brota eternamente no peito do homem”.
Pra provar que a esperança era eterna dentro de mim, eis o que eu pensava a
respeito de James: Talvez ele tenha a mesma aflição que eu. Talvez seja por isso que
ele está coberto dos pés à cabeça. Se podia acontecer comigo, podia acontecer com
outra pessoa. Certo?
Assim que essa ideia parou de se multiplicar na minha cabeça, James se
virou na minha direção, do jeitinho que eu tinha desejado e do jeitinho que acabou
me deixando com medo. Eu me agachei um pouco mais, mas nem tanto, para
que ainda desse pra ver o que tanto queria, aqueles olhos azuis, azuis, azuis,
olhando na minha direção. Ele tinha amarrado o cabelo num rabo de cavalo. E
mesmo sendo impossível ele ter me visto, alguma coisa dentro de mim me deixou
toda arrepiada quando seus lábios se curvaram num sorriso tímido e meio
perplexo até.
Mesmo ele olhando direto pra mim, eu continuava confiante de que ele não
conseguia ver nada além do topo da minha cabeça, se tanto. Então, levei um
minuto pra abafar a esperança. Acima de tudo, eu me senti desleal a Cody, de
quem eu ainda usava o pequeno anel, o garoto que dormia pra sempre por conta
do meu beijo. Permaneci agachada e fui me arrastando por detrás das pilhas de
volta ao dia claro e quente da rua North State.
Mesmo tendo que fazer o pouco dinheiro e os vales que me restavam
renderem o máximo possível, precisava urgentemente de uma regalia, então
comprei um pote de sorvete no caminho de casa. Antes de tomá-lo, tirei toda
minha roupa, grudenta de tanto suor, e entrei debaixo de uma chuveirada fria.
Quando sai, mal suportei vestir um pano sequer. Se minhas cortinas não fossem
tão fininhas, eu até poderia ficar completamente pelada, mas acabei me
contentando com uma calcinha e um top. Coloquei meu maior ventilador, o
quadrado, na janela e sentei em frente a ele com o sorvete. Pela primeira vez no
dia, me senti limpa e refrescada.
Observei o mapa dos Estados Unidos pregado na parede ao lado da minha
cama, o mesmo que eu tinha no meu quarto lá em Caldecott County. Quem sabe,
se conseguisse outro emprego, um dia teria dinheiro pra comprar uma passagem
daqueles ônibus de longa distância. Mergulhei a colher no sorvete e olhei pela
janela. E justo quem avistei parado na calçada com as mãos no bolso, olhando
diretamente pro meu prédio? James. Que diabos? Era isso que eu deveria ter
pensado. Eu deveria sentir nojo ou raiva. Mas, em vez disso? Manhã de Natal!
Uma onda de alegria e excitação explodiu no meu peito. Por um instante, senti-me
como uma garota da minha idade deveria se sentir, com o corpo todo formigando
e os joelhos enfraquecidos ao ver um rapaz atraente.
Coloquei meu sorvete na mesinha de café. Meus cabelos estavam caídos
livres, leves e soltos sobre meus ombros. Eu não estava usando luvas, nem couro,
nem mangas compridas. Que se dane, eu não estava nem de sutiã. E mais do que
tudo neste mundo, eu queria que James me visse assim. Uma garota comum
vestindo roupas indecentes. Então bati na janela.
Ele olhou direto pra mim através do vidro. Mesmo à distância, pude ver algo
como gratidão em suas feições. Ele sorriu. E eu não só sorri de volta como acenei
igual a uma adolescente sem maiores preocupações ou pensamentos na cabeça.
— Você trocou de roupa — James disse ao passar pela porta. Ele parecia
estar tão desapontado quanto soou. Enquanto ele subia, eu tinha vestido meu traje
completo, incluindo dois pares de luvas rendadas. Nas lojas em Jackson, a
coleção de outono já estava exposta nas vitrines e, alguns dias antes, eu tinha visto
um casaco com luvas sem dedos costuradas às mangas. Aquilo resolveria o
problema do vão perigoso entre as mãos e os pulsos, mas, ao entrar na loja,
percebi que a etiqueta dizia oitenta e cinco dólares, e eu não tinha nem metade
disso.
Por sorte, James não tentou me dar um aperto de mãos, nem encostar em
mim. Passou reto e se jogou na minha cama. O que me pareceu extremamente
pessoal pra alguém que eu tinha acabado de conhecer na rua. Sentei-me na
cadeira de vime e tentei agir como se fosse algo corriqueiro: um rapaz
desconhecido, bonito e peculiar aparecendo na minha porta e sentando na minha
cama. Graças a Deus, eu tinha arrumado o quarto naquela manhã.
James colocou as mãos no colo e passou os olhos pelo quarto. Passaram-se
apenas algumas horas desde que eu estiva espionando James na biblioteca, mas
sua aparência estava ainda melhor, face meio rosada e robusta, com barba por
fazer. Fui tomada por um desejo fulminante de estar vestindo aquele traje
indecente de novo. Eu me imaginei levantando da cadeira de vime, atravessando o
quarto e sentando em seu colo. Minha mente foi inundada pela sensação de estar
pele a pele com ele e tudo o que isso acabaria desencadeando, e, mesmo com a
boca ainda aberta, não fui capaz de dizer palavra alguma.
James também não disse nada, mas ficou um pouco arrepiado, o que me fez
pensar se era capaz de ler minha mente. Afinal, ele sabia meu nome sem que eu
o tivesse dito, não é mesmo? Incrivelmente, isso não me deixou nem um pouco
constrangida. De certa forma, eu até queria que ele pudesse ler minha mente,
assim nós dois estaríamos fazendo juntos na minha cabeça uma coisa que jamais
poderíamos fazer na vida real.
— Você se importaria de desligar aquela máquina? — James pediu.
Passei os olhos pelo quarto, tentando descobrir a qual máquina ele estava se
referindo. Além da torradeira, do micro-ondas e da cafeteira, não tinha muitos

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