Touch estacionou no primeiro posto de gasolina que vimos. Eu lembrei que
estávamos sem dinheiro, zerados, sem dólar algum, mas ele só me olhou e sorriu.
Saiu da camionete, deu a volta até a bomba e tirou aquela chave de fenda do
bolso. Ele tinha trabalhado nela por horas a fio, fazendo sabe-se lá o que com as
tomadas e os cristais e o sol que atravessava as vidraças, mas a ferramenta ainda
parecia exatamente a mesma que ele tinha roubado da loja do Exército da
Salvação. Enfiou a chave de fenda na abertura do cartão de crédito, colocou o
bico no tanque de gasolina, virou o interruptor da bomba e, é claro, os números
começaram a rolar e o combustível passou a fluir.
Isso é que era uma ferramenta útil.
Touch entrou na loja de conveniência e logo voltou com duas garrafas d’água.
Jogou a mochila no banco de trás e me deu uma barra de granola. Também me
entregou duas notas de vinte dólares, então imaginei que a chave de fenda devia
funcionar também em caixas eletrônicos. Guardei o dinheiro no bolso, achando
melhor perguntar sobre isso mais tarde. Por alguma razão, enquanto ele ainda
estava na loja, comecei a pensar em Alabaster e em como seu nome lhe caía tão
bem, com cada pedacinho daquela sua pele alva e resplandecente, e o azul suave
dos seus olhos. E em Touch.
Percebi que, no seu tempo, as pessoas deviam receber seus nomes de acordo
com suas principais qualidades. Meu rosto ruboresceu um pouco, pensando na
noite anterior e em como ele tinha me tocado. Mas aquele não era o único tipo
de toque especial que ele tinha. Era só ver as coisas que ele tinha inventado, como
aquela bolinha azul e o tradutor e o anel de ouro. Agora, ainda por cima, ele tinha
transformado uma chave de fenda comum em algo mágico e dos mais úteis. Era
um toque e tanto. Ele girou a chave na ignição. Estava vestindo um boné de
beisebol dos Red Sox, com os cabelos presos num rabo de cavalo. Quem olhasse
pra janela do nosso carro, veria um homem comum, ainda muito jovem, com
certeza, e muito bonito. Mas eu sabia que ele não era comum, que ele tinha essa
coisa especial, esse brilho, esse toque. Meu coração se encheu de amor e
orgulho.
Não tive coragem de dizer pra ele que, muito embora fosse mais quente do
que a maioria dos lugares nos Estados Unidos, a tendência era que a temperatura
no México não chegasse nem perto dos 50 graus a que ele estava acostumado.
Ainda assim, parecia ser pra valer quando ele dizia que estava começando a seacostumar com o clima daqui. Ainda vestia sua jaqueta de couro, mas apenas
uma camiseta e uma camisa de flanela por baixo.
A verdade era que eu estava muito entusiasmada com a ideia de viver no
México. Tinha a impressão de que, quando enfim chegássemos, seria tipo a Casa
dos Sonhos dentre todos os países. Mal podia esperar por um pouco de paz. Paz e
segurança. Como qualquer outra família. Talvez, depois que recuperássemos
nossas forças no México, poderíamos dar uma voltinha até o futuro, onde eles me
ensinariam a controlar meus poderes pra que eu pudesse tocar nas pessoas, e
depois Touch e eu retornaríamos até o presente pra que conseguíssemos evitar
aquela guerra tão desagradável. Talvez pudéssemos até mesmo trazer Cotton, e
depois tratar de ter mais alguns filhos juntos. Voltaríamos ao México por esta
época mesmo, e teríamos nossa própria família, nosso próprio mundo juntos.
Agora só faltava mais uma autoestrada do lado americano, a US-85, uma reta
sem fim que dava direto na fronteira entre Lukeville e Sonoyta. Mary Ginsberg
não se parecia muito comigo, mas era alta e tinha cabelos castanhos e olhos
azuis. É, até que chegava perto, imaginei, principalmente pra alguém que olhasse
pra foto e depois pra mim. Mas, de qualquer jeito, acabei concluindo que eles não
deviam ser tão rígidos com quem entrava no México quanto eram com quem saía
de lá, o que eu não planejava fazer nunca.
— Eu tenho uma pergunta a fazer — disse a Touch. — Por que você
simplesmente não disse às pessoas no comando de Arcádia sobre os rebeldes que
querem assumir? Ninguém podia ajudar você?
— Não é assim que funciona de onde eu venho. Não mais, pelo menos. Não
há ninguém de fato no comando, não da maneira como você entende.
— Nenhum policial? Nenhum presidente? Nada de cadeia?
Ele sacudiu a cabeça, como se soubesse o que essas palavras queriam dizer e
o tanto quanto soavam tristes e ridículas.
— Tão primitivo...
— É, primitivo, talvez — retruquei —, mas até que eles vêm a calhar quando
é pra frustrar planos malignos, por exemplo.
— Estamos falando de um mundo onde crimes não são cometidos há
centenas de anos. Não há um sistema que os impeça de acontecer, pois,
essencialmente, eles não existem. É bem provável que acabemos encontrando um
mundo onde as prisões e os policiais serão necessários novamente. Mas, antes
disso, haverá uma guerra. E ela será horrível. Muito horrível.
Fiquei ali sentada sem falar nada por um minuto, sem pensar muito sobre
aquela última parte, mas sim sobre um lugar onde nenhum crime tinha sido
cometido por tanto tempo. Parecia seguro e adorável. Parecia também um
excelente lugar pra se cometer um crime.
— Você está com fome? — Touch perguntou, tentando mudar de assunto.
Estávamos nos aproximando de uma cidadezinha chamada Gila Bend e, pelo
que dava pra ver no horizonte, não nos restariam muitas outras opções antes de
chegarmos à fronteira. O jeito foi parar num restaurante chamado Outer Limits
Space Age, um lugar maluco que parecia mais ter sido construído com um monte
de ferro-velho, com uma pequena nave espacial se equilibrando no topo da coisa
toda. A placa dizia que eles serviam tanto pratos mexicanos como yankees, e me
dei conta de que aquela seria a última vez na minha vida que eu teria a chance de
comer comida americana. Foi o tempo de batermos as portas da camionete pra
que eu decidisse pedir um bom e velho steak de frango frito com uma porção de
batatas fritas e uma Coca-Cola. Ao pensar sobre qual seria a reação de Touch
diante da imagem daquele prato de peão, tive vontade de dar uma bela risada,
bem alta, e minha mão procurou a sua, e a sensação daquele couro de cordeiro
roçando minhas luvas de algodão rendadas me fez estremecer um pouco por
dentro.
Creque! Bum! Bum! Treque!
Merda.
Do nada, de repente, lá estava o Sr. Touch, bem na nossa frente.
Senti medo. Medo de verdade. Mas devo dizer também que em momento
algum pensei ser o fim de tudo. Até então, o povo da época de Touch tinha
aparecido tentando nos capturar e fracassado. Sempre acabávamos escapando.
Eu sinceramente não queria ter de lidar com o pai de Touch, não mesmo. Mas
não acreditava que ele seria capaz de nos capturar, sequestrar ou machucar.
E poderíamos realmente ter escapado, caso Touch não tivesse soltado minha
mão. Tudo o que posso dizer é que deve ser difícil pensar direito nessas horas,
quando as pessoas que estão tentando passar por cima de você e destruir tudo o
que você acredita são membros da sua própria família. Se eu já ficaria doidinha
se um policial aparecesse pra me jogar na cadeia... Imagina se fosse Tia Carrie
tentando me prender. Eu diria poucas e boas pra ela, pode apostar.
Touch enfiou a mão no casaco, como se fosse tentar não se envolver em tudo
aquilo. Mas então seu pai disse alguma coisa no idioma musicado deles. E Touch
deixou sua mão cair de lado. Respondeu alguma coisa de volta, um tanto furtivo.
Aproveitei a oportunidade pra examinar um pouco mais seu pai. Não era tão alto
quanto Touch. Tinha o mesmo cabelo comprido, só que grisalho. Os mesmos
olhos azuis, mas nada gentis, apenas cruéis e gananciosos.
— Touch, não cai na dele. Vamos logo dar o fora daqui.
Pensei que talvez pudéssemos viajar no tempo ou simplesmente sair correndo
feito loucos como tínhamos feito nas grutas. Mas o pai de Touch estendeu o braço
na minha direção com o punho bem cerrado e voltado pra cima. Aquele gesto
devia significar alguma coisa bem pesada no mundo deles, porque, pelo jeito que
Touch gritou, mesmo na sua própria língua, deu pra notar perfeitamente o que ele
queria dizer.
— Não! — Touch bradou.
Fiquei paralisada de medo. Parecia que tinham me jogado um balde d’água
gelada na cabeça, do tanto que aquela voz era horripilante. Estava só esperando
que o pai de Touch desse o primeiro passo, pra agarrar o filho ou mesmo me
atacar, mas ele não teve tempo pra tanto. Touch partiu pra cima dele. Enquanto
corria, enfiou a mão no bolso. Primeiro, tirou o anel de ouro, o que não fazia
muito sentido, já que ele estava indo na direção errada. Pra longe de mim. Deu
pra escutar o barulho de alguma outra coisa caindo no chão, mas eu mal notei o
que era, porque, afinal, Touch não estava oferecendo aquele anel de ouro pra
mim. Ele estava oferecendo pro seu pai.
— Não! — berrei.Passei a correr na velocidade dos wildebears, mas não rápido o bastante.
Touch enfiou o anel de ouro na mão do seu pai. E, num piscar de olhos, eles
desapareceram. Completamente.
Outro estalo. Outra explosão. E eu lá parada no estacionamento do Limits
Outer Space Age, completamente sozinha, com uma chave de fenda
perfeitamente normal e quietinha ali no chão, aos meus pés.
Isso já tinha acontecido comigo uma vez, o mundo todo simplesmente
mudando numa fração de segundo. Mas não é o tipo de coisa que dá pra se
acostumar, sabe. Parada ali naquele estacionamento, com um carro dando a
volta bem devagar em torno de mim, eu me senti vazia, completamente oca.
Feito uma abóbora sendo preparada pro dia das bruxas, como se alguém tivesse
acabado de atravessar a mão pela minha barriga e arrancado todas as minhas
vísceras. De alguma forma juntei forças pra me ajoelhar e pegar a chave de
fenda. Naquele momento, não estava nem aí pro que ela pudesse fazer. Só me
importava o fato de que ele tinha feito aquilo, Touch, aquela magia tinha sido
criada por ele. Puxei uma das luvas com os dentes e fechei a mão em torno da
extremidade de aço. Não sabia dizer se era só minha imaginação ou se ela estava
mesmo quente. Será que daria pra sentir sua inteligência, seu talento, seu toque
irradiando do metal direto pra minha pele? Eu só sabia que, não importava o que
acontecesse, ele queria continuar tomando conta de mim.
Touch tinha ido embora. Tinha partido pra me proteger, era a única
explicação. Tinha certeza absoluta que a única coisa que poderia tê-lo feito me
abandonar aqui sozinha era a vontade de me manter protegida. E o que será que
ele encontraria ao voltar pra casa? Quanto ele teria se arriscado pra me salvar?
Algo menor tipo seu mundo, ou tão importante quanto seu próprio filho?
Talvez agora (não, agora não, daqui a dez mil anos) Touch estivesse
arrependido do seu ato impulsivo, daquele momento de fraqueza.
Outro carro entrou no estacionamento, mas esse motorista não parecia tão
paciente quanto o primeiro. O cara, vermelho de raiva, estava com sua mulher
um tanto abatida e um carro cheio de crianças. Fez uma curva tão fechada que
quase me atropelou. A chave de fenda pulsava, quentinha e reconfortante, tocando
minha pele.
Não, a pulsação me dizia. Ele não está arrependido. Sai dessa. E outra: ele vai
dar um jeito de voltar pra você.
Tinha de existir um lugar pra nós. Um lugar e um tempo. Então pode apostar
que eu não arredaria pé do nosso plano, o plano que tínhamos pensado juntos, e
entraria naquela camionete e pegaria a estrada na direção que tínhamos
combinado.
Era o mínimo que eu podia fazer, depois de ele ter arriscado sua vida (toda a
sua vida e todo o seu mundo) pra salvar a minha.
Nem era preciso dizer que eu não estava mais com a menor vontade de
comer aquele frango frito. Pra dizer a verdade, não estava com a menor vontade
de comer o que quer que fosse, nunca mais. Fui caminhando em direção à Chevy
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X- Men: OToque Da Vampira
Teen FictionEu não criei nada, sou grande fã da vampira assim como vocês, e a Marvel lanco esse livro e eu sou obrigada a compatilhalo com vocês.