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— Sabe o que um médico ia fazer? Ligar pra polícia e me costurar, nessa
ordem.
E nem perdi tempo dizendo que eu provavelmente nem chegaria até o
médico, já que as enfermeiras com certeza morreriam tentando medir minha
pressão.
— Costurar você? — ele perguntou com aquele olhar confuso. A
familiaridade daquele olhar me encheu de ternura por ele. E eu estava até
satisfeita por ele ainda não ter dito uma palavra sequer sobre sua esposa, do tanto
que estava preocupado com meu bem-estar.
— Pois é. — Fiz o melhor que pude pra tentar explicar sobre agulhas e linhas
a ele.
— Acho que consigo até visualizar, no caso de roupas. Mas você está me
dizendo que os médicos fazem isso, inserem agulhas em seu corpo? Costuram a
pele?
— Bem, é isso mesmo. Como é que curam as feridas lá de onde você veio?
Ele suspirou e disse:
— Eu não sou médico. Então não posso dizer exatamente como funciona o
elixir. Só posso dizer que ele realmente funciona. Você vai ao médico, toma um
gole e dorme. Acorda novo em folha.
— Ah, fala sério. E se você estiver doente?
— A mesma coisa.
— Qualquer tipo de doença?
— Sim, qualquer tipo.
— Até câncer?
Suas sobrancelhas franziram.
— Então você quer dizer que, de onde você vem, não existe pobreza, agulhas
e nem doenças incuráveis? Dá pra explicar de novo por que você foi embora?
Um olhar dos mais tristes tomou seu rosto de assalto, de um tanto que até me
senti mal por ter perguntado.
— Fui embora por todos os motivos errados.
Não havia tempo de perguntar o que ele queria dizer com aquilo. O ponteiro
da gasolina já estava no vermelho e não dava pra saber quando teríamos outra
chance de abastecer. Fora meu ombro, que estava pegando fogo.
— A gente tem que parar no próximo posto de gasolina.
Tirei do bolso o dinheiro que tinha roubado de Joe Wheeler e comecei a
contar as notas, tentando não tremer muito ou desmaiar de tanta dor.
***
Já fazia um bom tempo que eu estava sozinha no mundo por minha conta e
risco. Nem sempre fazendo um bom trabalho, mas pelo menos me mantive viva e
abrigada. Antes disso, como todas as outras crianças, acho, eu era apenas mais
um passageiro num trem em movimento. Não foram poucos os dias em que eu
mal sabia o que teria pro jantar até que o prato fosse posto na minha frente. E
acredito que parte do meu cérebro, desde o momento em que eu tinha entrado no
primeiro carro roubado da nossa viagem (não, eu me corrigi, Touch tinha
comprado aquele carro), ansiava ser somente aquele passageiro. Naquele
momento, soube que tinha julgado Touch erroneamente. Claro que ele me fazia
companhia. Mas alguma coisa no jeito como ele reagiu à ferida no meu ombro e
à notícia de que eu precisaria de pontos me fez lembrar que, independente das
superengenhocas que ele pudesse ter, ele era tão novo neste planeta quanto um
bebê de oito semanas. Se era de um plano que precisávamos, eu é que teria de
elaborá-lo.
Enquanto Touch abastecia o carro, entrei na loja de conveniência vestindo
nada além da minha calça jeans e meu top, com meus cabelos soltos cobrindo a
ferida e o chapéu da Sra. Wheeler na cabeça. Comprei gazes e band-aids, um kit
de costura, um espelho portátil, uma caixa de anti-inflamatórios, um novo atlas e
uma garrafinha de água oxigenada.
— Ô, moça — um cara me chamou enquanto eu estava na fila do caixa. —
Você tá sangrando.
Lancei um olhar carregado de malícia que já estava até surgindo de modo
natural e espontâneo:
— Jura? — retruquei, mostrando minhas compras pra que ele se tocasse de
que não estava me dizendo nenhuma novidade.
— Isso é uma mordida de cachorro ou coisa do tipo? — insistiu o Sr.
Enxerido, chegando perigosamente perto, como se quisesse dar uma espiada. —
Se um cachorro te morde, você tem que comunicar as autoridades. Tem que ter
certeza de que ele tá vacinado.
Dei um passo à frente e botei minhas compras no balcão.
— Não foi um cachorro — respondi, torcendo pra que meu tom de voz
deixasse claro que não era da conta dele. — Um prego enferrujado me arranhou
num celeiro.
O funcionário me estendeu o kit de primeiros socorros dentro de uma sacola.
Segui em direção à porta.
— É melhor confirmar se a sua vacina de tétano tá em dia — o enxerido
gritou, garantindo que todas as dez pessoas na loja se lembrassem de que eu
estive lá, caso fossem interrogadas pela polícia.
Sentada no quarto de um motel nas redondezas de Dove Creek, no Colorado,
resolvi encarar agulha e linha. Joe Wheeler tinha quinhentos e quatorze dólares.
Touch e eu resolvemos que seria melhor adiar o uso da bola azul o máximo
possível, então decidimos não ficar mais hospedados em hotéis, nem num
vagabundo tipo esse.
Enfim, passei a linha pelo buraco da agulha e arranquei o band-aid que tinha
colocado ainda no carro. Estava ensopado de sangue, assim como meu top.
Minha única roupa leve, e agora teria de jogá-la fora. O dinheiro de Joe daria pra
mais alguns dias de comida e gasolina, mas não dava nem pra pensar em sair às
compras.
Pensei de novo em como devia ter deixado Touch comprar o kit de primeiros
socorros sozinho. Mesmo sendo um homem dos mais notáveis, ainda assim ele
não teria chamado tanta atenção quanto uma garota vestindo um par de calças de
couro rasgado e com sangue escorrendo pelas costas. Ele acabou entrando
mesmo, de qualquer jeito, logo depois de mim, enquanto eu colocava o band-aid
da melhor maneira possível. — O que você comprou, por sinal, quando entrou na loja?
— Whisky — ele respondeu.
— Whisky! Não me diga... Sério que existe álcool naquele seu mundinho
perfeito?
— Fomos apresentados por meus amigos em Smith Park. Tornou o frio um
pouco mais suportável. Pensei que pudesse ajudá-la com a dor.
Eu já tinha tomado uns cinco comprimidos de anti-inflamatório, o que
também tinha surtido algum efeito analgésico sobre a mordida da criatura. Mas
eu sabia bem que, assim que começasse a me costurar, a dor só ia piorar e
muito. Não era como se eu já tivesse enfiado uma agulha no meu próprio corpo
alguma vez na vida, sabe. Eu só tinha levado pontos uma vez antes, quando
rasguei a perna no grampo solto dum sofá velho. Eu tinha cerca de dez anos e foi
preciso que duas enfermeiras me segurassem pra que o Dr. Sparks pudesse dar
os pontos. E lá estava eu de novo, já bem crescidinha e sem ninguém pra me
segurar, pois ninguém sobreviveria.
— Passa pra cá. — Ele tirou a garrafa do bolso do seu casaco de couro
(qualquer dia eu não podia deixar de olhar dentro daquele bolso) e me entregou.
Deixei de lado a agulha e a linha. A garrafa se abriu num estalo quando o
lacre foi rompido. Dei só um gole, o suficiente pro calor sair descendo pela
garganta até meu estômago. Dei mais outro gole e achei melhor parar. Eu só
tinha bebido whisky uma ou duas vezes na vida; precisava apenas do bastante pra
aliviar a dor um pouco, e não pra instabilizar de vez minhas mãos.
— Beleza — eu disse, depois de soltar um arroto. — Agora segura o espelho.
Por sorte aquela maldita besta tinha abocanhado meu ombro esquerdo. Se
tivesse sido o ombro direito, eu jamais teria sido capaz de costurar. Mas, como
não era o caso, o jeito foi contrair os músculos do rosto, mergulhar a agulha,
parar por um instante e me concentrar pra não gritar e, enfim, puxar a linha.
Cada vez que repetia o processo, dava pra ver a expressão de Touch se
deformando por compaixão, e o enorme esforço que ele fazia pra simplesmente
não me segurar de uma vez. Ele procurava desesperadamente um jeito de me
confortar, mas meus braços estavam descobertos. Assim, foi obrigado a se conter.
No máximo, às vezes colocava sua mão sobre minha coxa protegida pelo couro e
a apertava.
— Levanta esse espelho — eu disse pela sexta vez. — Vê se levanta isso
direito senão eu não consigo enxergar nada.
O corte estava horrível. Antes de passar a linha pela agulha, eu tinha
queimado sua ponta pra desinfetá-la e depois a mergulhado totalmente na água
oxigenada. Era o mais estéril possível naquelas condições. Os cinco pontos que fui
capaz de dar estavam largos e bem desiguais, unindo a pele de um jeito
desleixado, com pequenos hematomas em volta dos furos por onde a agulha tinha
entrado e saído. Aquilo deixaria uma baita duma cicatriz maluca.
— Só mais um ponto — eu disse, como se estivesse me incentivando a

X- Men: OToque Da VampiraOnde histórias criam vida. Descubra agora