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Meu estômago roncava esfomeado com a visão do pão dormido e da manteiga de
amendoim. — Você trouxe aquela lanterna? — ele perguntou, revirando a mochila.
— Trouxe, está no bolso lateral.
O que eu gostaria mesmo de ter era uma escova de dentes. Eu me arrastei
pra fora do cobertor e bochechei um pouco d’água. Da próxima vez que
estivéssemos perto de uma loja de conveniência, podíamos ter só dois dólares
sobrando, eu não ia estar nem aí, gastaria tudo em pasta e escova de dentes.
— O que você está pensando? — perguntei, passando manteiga de amendoim
no pão.
Touch tinha achado a lanterna e a enfiou na parte da frente da sua calça.
Apontou pro chão.
— Grutas subterrâneas. Quando vim aqui da primeira vez, fomos
mergulhando por baixo, através de grutas. Coletei alguns cristais do teto para usar
nas minhas pesquisas. Queria dar uma examinada, ver como elas se parecem
sem água. E ver se os cristais já estão lá, se têm as mesmas propriedades.
— Ei, é verdade, você já veio pra cá e passeou pelas dunas de areia e tudo
mais. Onde é que vocês todos moravam?
Tínhamos deixado o atlas na camionete, então peguei uma vara e desenhei
um mapa da América do Norte no chão. Não desenhei os países ou os estados,
isso não significaria nada pra ele. Só importava o formato do continente.
— Acho que aqui — Touch disse, apontando um lugar ao sudeste de onde
estávamos, o que seria o meio do Novo México. Ele também delimitou os
perímetros, o que o continente viria a ser. No mundo dele, a América do Norte só
iria até Nevada. O leste começaria em algum lugar no norte do Texas. Apenas um
naco de terra, a maior parte planalto, restava do que tinha sido a América do
Norte. Touch se ajoelhou e apagou com as mãos o que um dia desapareceria de
fato. Tentei resistir aos calafrios que subiram pela minha espinha, vendo ele
apagar tudo.
Ele comeu os biscoitos e dividimos os dois últimos pedaços de carne. Depois
tomamos uns goles de água dos mais comedidos (seria importante economizar) e
partimos pras grutas subterrâneas, em busca do que restou do futuro.
Eu nunca tinha estado numa caverna antes. Touch foi abrindo caminho,
segurando a lanterna com uma das mãos e minha mão com a outra, os dois
usávamos luvas. Minhas mãos suavam e eu queria tirar minha jaqueta jeans, mas
também queria continuar me acostumando a isso, a temperaturas elevadas, a me
sentir com calor, encharcada de suor. Porque eu ainda queria ir pro mundo de
Touch, mesmo que não fosse outro mundo no fim das contas, só meu próprio
mundo um tanto distante no futuro.
—Acho que daria pra consertar muita coisa — eu disse — só voltando no
tempo. Tudo o que a gente precisaria fazer seria descobrir onde errou, onde o
mundo deu errado, em primeiro lugar.
— Ah, mas é aí que você tem de ter cuidado — ele disse. Parou e jogou a luz
no teto, a apenas centímetros de nossas cabeças e forrado com pedras cintilantes,
quartzo e cristal, uma coisa simplesmente deslumbrante. — Parece bem
diferente, fora da água. É muito bonito. — Nova pausa, e então acrescentou: —
Mudar a história, o passado, é um negócio complicado. Nunca se sabe o que
mais poderá acabar mudando inadvertidamente. Por exemplo, se esta civilização
não chegar ao fim, a nossa talvez jamais exista. — Mas você voltou no tempo. Pra chegar aqui, você voltou no tempo.
— Não tive bem escolha.
— Mas depois você disse que fez de novo, lá em Jackson.
— Apenas uma hora aqui, outra acolá. Poucos dias ou uma semana. E fui
muito cuidadoso para não fazer nada diferente, não voltar aos dias que tinham
sido significativos para mim. Prometi a mim mesmo que, uma vez que a técnica
estivesse dominada, só viajaria para frente no tempo, e só em casos de
emergência. A única vez que abri exceção foi com você.
Passamos engatinhando por entre um vão. As grutas eram conectadas umas
às outras, como cômodos interligados. Conforme Touch falava, penetrávamos
cada vez mais profundamente na chapada, de mãos dadas, sentindo as estalactites
gotejarem sobre nossas cabeças pequenas partículas de orvalho. O que me fez
lembrar da nossa carência de água, e esticar minha língua pra fora para aparar
as gotas.
— Eu sabia que o momento era propício para fugir de Jackson — Touch
disse. — Passei tempo demais ali. Usei vários tipos de material. Seria apenas uma
questão de tempo antes que os rastreadores me localizassem. Sabia que tinha de
partir, mas não queria ir sem você. Daí fui a seu apartamento, mas você tinha ido
embora.
— Embora?
— É, embora. Eu consegui abrir a porta e havia algumas coisas deixadas para
trás, mas a maior parte delas, a maioria de suas roupas e o mapa que você tinha
na parede tinham sumido. Eu não podia continuar sem você. Tinha de trazer você
comigo. Então o jeito foi quebrar minha própria regra.
— Você voltou pra me pegar.
— Eu voltei no tempo.
Balancei a cabeça, ainda que ele não pudesse me ver sem apontar a luz pro
meu rosto. Estava bem escuro nas grutas e já tínhamos avançado tanto que nem o
mais fino espectro de luz conseguiria entrar ali. Fiquei tentando imaginar aonde
eu tinha ido quando ele foi ao meu apartamento, e pra onde eu tinha pensado que
fugiria, sem ele pra me tirar das ruas, depois do que aconteceu com Wendy Lee.
Até onde eu teria chegado? Onde estaria agora?
— Você voltou no tempo por mim. — Seria difícil descrever em palavras o
quanto eu queria beijá-lo naquele momento.
Touch parecia estar se sentindo do mesmo jeito. Nós dois ficamos
perigosamente próximos. Então ele recuou. Apontou a luz em direção ao teto da
caverna e a todos aqueles cristais tão densos. Vi quando ele se esticou pra tocá-los
e fiz o mesmo, passando minhas mãos sobre aquela superfície gelada, úmida e
irregular. Mas Touch não se limitava a sentir os cristais. Ele também os
arrancava, enfiando suas mãos fundo no barro e retirando pedaços de rocha
translúcida e cristalina.

— Ei, moço. Isso é certo?
Ele não respondeu e, a essa altura, percebi que pouco importava se ele
soubesse ou não o que estava fazendo: eu definitivamente estava junto. Ao lado
dele. Também passei a recolher os cristais, extraindo as amostras do teto e
repassando pra Touch, que guardava tudo num saquinho de pano.
— Provavelmente já é o bastante — ele disse quando enfim o saco se encheu.
Baixou a lanterna e a luz brilhou sobre o piso empoeirado da gruta, projetando
uma iluminação suave ao nosso redor. Não sei do meu rosto, mas o dele me
parecia misterioso e lindo e cheio de emoção, como se emoção fosse um líquido,
tipo água.
Então de repente a lanterna piscou. A luz falhou por um instante, depois
voltou, aí apagou de novo. Saí cambaleando no escuro, peguei a lanterna e bati
contra a palma da mão. Ela acendeu por um segundo, depois já era. Sem pilha.
Nós dois abandonados lá, de pé numa escuridão tão profunda que nem meus
olhos de gato podiam ver muito mais do que uma sombra em movimento.
***
Junto com a escuridão total e absoluta veio o silêncio. Quietude. Touch e eu
juntos nas grutas, num buraco profundo com paredes e tetos que não
conseguíamos enxergar. Era o silêncio de um erro com proporções
monumentais. Uma daquelas coisas que a gente não aprende na escola: quando
for passear profundamente por uma série de grutas, certifique-se de ter mais de
uma lanterna. Ou um conjunto extra de pilhas.
Enfim Touch rompeu o silêncio:
— Não estou entendendo o que aconteceu.
Naquele momento a proporção do erro me atingiu em cheio e com força
total. Era tudo minha culpa. Touch não entendia nada sobre pilhas. Na sua
sociedade perfeita e com desperdício zero, os aparelhos eletrônicos
provavelmente ficavam brilhando pra sempre. Eu o enrolei com uma explicação
medíocre sobre a vida curta das pilhas, quase contente em não poder vislumbrar a
expressão no seu rosto.
— Primitivo — ele disse ao fim da explicação, com uma voz rosnada de velho
ranzinza, irritada pra valer.
A situação toda era claramente desesperadora. Tínhamos nos deslocado de
uma caverna pra outra por entre os vãos, não por um percurso tão longo, mas
bastante sinuoso. Tínhamos chegado bem ao centro subterrâneo da chapada,
onde nem o menor fóton de luz conseguiria chegar. Uma escuridão só. Escuro
demais, a ponto de não conseguirmos ver os rostos um do outro. Não dava pra ver
os cristais ao nosso redor, muito menos as paredes em que eles estavam
incrustados. Estava mais escuro do que se fechássemos os olhos, porque até aí dá
pra ver cores, a luz do outro lado das pálpebras. Tentei procurar em meio ao
arsenal de entidades dentro de mim. Nenhuma delas sabia como se esgueirar por
entre aquelas grutas no breu, com exceção talvez de Tawa. Tentei invocar os raios

X- Men: OToque Da VampiraOnde histórias criam vida. Descubra agora