capítulo 05

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A concessionária da Chevrolet ficava num trecho onde não havia nada além
de alguns lotes de carros, uns atrás dos outros. Havia algumas lojas de grandes
marcas como a Volkswagen e a Toyota, e outras que não passavam de um buraco
com carros que provavelmente quebrariam antes de chegar até o fim da rua.
Todos tinham o mesmo tipo de iluminação que a sinuca lá de Altoona, larga e
alaranjada, projetando sombras que deslizavam pela claridade muito inicial da
manhã. Touch e eu caminhamos por entre as fileiras de Chevys como se
estivéssemos fazendo compras, ambos empacotados por motivos diferentes. Eu
até conseguia acreditar que Touch estava se acostumando com o clima, pelo tanto
que eu já tinha me acostumado a vestir várias camadas de roupa e ficar com
calor o tempo todo. Acho que as pessoas foram feitas pra se adaptarem. Naquela
noite quente, eu tinha até vestido meu gorro de lã, imaginando que ele pudesse ao
menos cobrir as mechas brancas em meu cabelo no caso de alguém me ver.
- Vamos dar uma espiada nos carros usados - eu disse. - A gente não
pode escolher nada muito chamativo. - Secretamente, é claro, meu coração
desejava um Camaro, o que devia ser meu lado Cody falando. Fomos em direção
ao fundo do lote, onde vi algo que fez o coração de Cody acelerar à potência
máxima. Não era um Camaro, era um Mustang 1965 vermelho-cereja.
Caramba, como eu desejei aquele carro. - Esse aqui. A gente vai levar esse
aqui. - Coloquei minha mão no topo do carro. Pelo que deu pra ver, parecia ser
todo original.
- Pensei ter ouvido você dizendo que não queríamos nada chamativo.
Droga. Tinha imaginado que talvez ele nem notasse. Que talvez aquele
pudesse ser um automóvel modesto na sua cidade natal.
- O que vocês dirigem lá de onde você veio?
- Não dirigimos. É um pouco mais...
- Sofisticado? - Já tinha percebido que, quando Touch falava do seu planeta,
usava a palavra "sofisticado", e quando falava do meu, usava a palavra "primitivo".
Ele riu. Minha mochila estava pendurada no meu ombro, e abri o zíper pra
pegar a chave de fenda. Anna Marie jamais se arriscaria num Mustang 65
lustroso. Ela teria ficado com um Ford Taurus.
Pá! Creque! Buuuuum!
Foi umas três vezes mais alto do que quando aconteceu no quarto do hotel.
Junto com o barulho veio um flash de luz forte e branca. Touch e eu nos jogamos
no chão. Estávamos em lados opostos do carro, mas por sorte eu podia ter uma
boa visão dele por baixo. Suas mãos estavam escoradas no asfalto e ele continuava
com a mesma cor das magnólias. Seus olhos, porém, estavam fixos em mim,
como se ele mal se importasse consigo mesmo e o mais importante ali fosse me
proteger. Percebi que teríamos de inverter os papéis. Quando se tratava de
ameaças deste mundo, como valentões em um estacionamento, era meu dever
protegê-lo, e vice-versa quando se tratava de ameaças do mundo dele. Pude notar
em sua expressão que ele queria fazer exatamente isso. E, por maior que fosse o
medo que eu estivesse sentindo naquele momento, também me sentia preciosa.
Eu sabia que ele não me abandonaria.
Pá! Pá!
O brilho alaranjado das luzes artesanais tinha sido completamente ofuscado
pela claridade esbranquiçada surgida com o estrondo, grandes explosões, e eu só
não conseguia entender como a cidade toda ainda não tinha acordado e corrido
pra lá. A luz em si, apesar do brilho intenso que produzia, não chegava a agredir
meus olhos nem um pouco. Só tornou tudo ao nosso redor muito mais claro (a
escuridão tinha sumido com o brilho alaranjado) e muito mais em foco, como
nunca antes. Então, de repente (tanto que eu mal pude dizer se já não estavam de
fato ali conosco o tempo todo), três figuras apareceram do nada. Assim que
chegaram, a luz sumiu, levando-nos de volta à bruma de uma madrugada
terráquea e ao brilho regular das luzes de halogênio.
Meu coração parou de bater por um bom minuto. E voltou de modo bem
relutante, num ritmo meio estranho.
Aquelas figuras (três homens, como tinha acabado de perceber) começaram
a andar por entre os carros, como se procurassem alguma coisa. Imaginei que
estivessem atrás de Touch. Todos estavam com seus musculosos braços de fora e
tinham cabelos longos. Não dava pra ver os rostos deles, mas pareciam bem
determinados, como se estivessem numa missão, e vinham bem em nossa
direção.
Fiquei apoiada nos cotovelos pra ter uma visão melhor deles. E então Touch
fez algo que eu não estava esperando. Ele se levantou. Com a intenção de segui-
lo, comecei a me levantar também, mas ele fez um sinal pra que eu
permanecesse abaixada. O jeito foi continuar com a barriga encostada no chão e
sair me contorcendo pra debaixo do carro. Daquele ângulo, pude ver Touch
andando em direção a eles com seus braços erguidos. Não era um gesto de "não
atirem em mim", era mais um gesto de "ouçam o que eu tenho a dizer". E logo
começou a falar naquela língua assobiada e celestial dele. Era difícil identificar os
tons de voz de uma língua tão diferente. Mas algo no comportamento de Touch
me dizia que ele tentava acalmar os caras. Não apenas isso, mas que ele também
os conhecia e sua intenção era distraí-los da minha presença. Arrastei-me ainda
mais pra debaixo do carro, rezando pra que eles não me vissem.
Os caras não pareciam nada calmos. Pelo contrário. Pareciam
extremamente irritados.
Também pareciam sentir frio. Nenhum deles estava empacotado feito Touch,
o que me pareceu ser uma coisa boa. Talvez o frio pudesse detê-los um pouco. O
do meio, o cara loiro, parecia estar no comando. Ele estava meio que se
abraçando enquanto falava, se é que se podia chamar aquilo de falar; estava mais
pra uma sequência musical de assobios, um pouco mais baixos e mais ásperos do
que quando Touch falava. Claro que eu não entendia o que eles estavam dizendo,

mas deu pra notar bem que não era nada amigável. Touch respondia gesticulando
como se estivesse tentando convencê-los de algo. Então o cara à direita do loiro
deu um passo à frente. Touch se afastou de imediato, e só então me dei conta da
real importância (extrema importância) de que aquelas pessoas não encostassem
nele.
Mas eles não pareciam querer capturá-lo. Não tentaram agarrá-lo, bater
nele, nem nada do tipo. O que deu um passo à frente era menor do que o loiro,
mas parecia bem mais agressivo. Seus pios e assobios soavam meio ríspidos e
exigentes. Touch deu um passo pra trás; parecia estar se esforçando pra não se
virar em minha direção e entregar minha posição. Queria que ele dissesse
alguma coisa em minha língua pra que eu pudesse entendê-lo, mas talvez isso
fosse perigoso demais.
De repente, enquanto o rapaz menor passava um sermão em Touch, o loiro
virou a cabeça bruscamente, direto para a direção onde eu estava. Touch deu um
passo à frente pra impedi-lo e o loiro enfiou a mão no bolso, tirou alguma coisa de
dentro e a jogou na minha direção. Pela forma como ele abriu o punho, parecia
estar libertando um pássaro, mas logo percebi que se tratava de uma grande bola
de luz vermelha e flamejante. Não houve barulho, nem explosão. Apenas um flash
intenso de luz branca. E então o que antes tinha sido um antigo carro
perfeitamente restaurado, já não me acobertava mais. Em vez, fiquei coberta por
uma poeira fina e metálica. Acima de mim, nada além de vento.
— Corre! — Touch gritou, ainda sem se virar pra mim. — Corre agora!
Não me perguntem como eu me tornei tão obediente. Talvez fosse pelo fato
de não saber mais o que fazer diante de armas pulverizadoras e silenciosas. Meio
que comecei a rastejar e logo me pus a correr o mais rápido que pude, meus
passos ecoando nos ouvidos.
Atrás de mim, os três passaram a falar todos ao mesmo tempo, gritando com
Touch, que, pelo que parecia, tentava impedi-los de me seguir. Eu não virei a
cabeça pra confirmar. Àquela altura, já tinha alcançado o pátio da Toyota. Dei a
volta no prédio, puxando todas as portas, pro caso de alguma delas estar aberta.
Sem sorte, continuei correndo em direção à concessionária da Jeep.
E que desgraça: logo que cheguei, os três homens do Planeta Touch já
estavam bem no meio do meu caminho, esperando por mim. Derrapei um pouco
até parar, sem tempo de entender como diabos eles tinham chegado lá se nem
sequer os ouvi correndo atrás de mim. Como não possuía nenhum apetrecho de
desmaterialização como o que eles carregavam, a única coisa que pude fazer foi
dar meia volta e recomeçar a correr na direção oposta. Não sei ao certo se dava
pra dizer que me senti aliviada naquele momento, mas, diante de todo aquele
pânico, fiquei bem feliz ao ver Touch correndo ao meu encontro.
Ao mesmo tempo, em algum lugar dentro de mim, fui capaz de pensar: Ei,
eles deveriam estar perseguindo Touch. Então por que estou com a impressão de que
eles estão me perseguindo?
Não tive muito tempo pra maiores especulações a respeito, pois, antes que
Touch estivesse a três metros de distância, outra bola de luz veio rodopiando em
minha direção. Cobri minha cabeça com as mãos, preparada pra explodir em
mil pedacinhos, mas Touch pegou uma bola azul de dentro do bolso e a

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