capítulo 09

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No intervalo de apenas alguns minutos, o Futuro e o Planeta Touch tinham se
tornado tão somente o Futuro. Ficamos ali, encarando o desfiladeiro.
- Daqui a dez mil anos, esse desfiladeiro estará coberto de água até a
metade. Será possível descer por um longo caminho até uma pequena planície
que se projeta lago adentro. Eu já mergulhei lá com... Eu estive lá, de férias.
- Por que você mentiu pra mim?
- Não foi minha intenção. Quer dizer, eu não planejava fazer isso. Você me
perguntou, lembra? Você me perguntou se eu vinha de outro planeta. E me
pareceu que você teria menos perguntas daquela maneira. Senti que, quanto
menos você soubesse, quanto mais subjetivas fossem minhas informações, mais
segura você estaria. E, para ser sincero, não me pareceu muito como uma
mentira. Daqui a dez mil anos, este será um outro planeta de fato, em vários
aspectos.
Soltei um longo e profundo suspiro. Minha mente entrou numa espécie de
frenesi, tentando remendar a verdade a partir do que ele tinha me falado. Acho
que Touch pôde perceber isso, porque logo acrescentou:
- Eu não menti para você a respeito de onde vim, Vampira. Não de verdade.
Basta pensar em tudo o que eu contei e substituir a palavra "planeta" por "tempo".
- Então quer dizer que daqui a dez mil anos a terra vai ter noventa e cinco
por cento de água salgada?
Touch confirmou com a cabeça. Tentei imaginar aquilo. Todas as partes do
mundo que ficariam submersas. O Mississipi, por exemplo. Não sei bem dizer o
porquê, mas aquela ideia fez meus olhos se encherem de lágrimas. Minha casa,
inundada.
Talvez eu devesse ter ficado furiosa com ele. Talvez tivesse ficado furiosa, se
eu mesma não estivesse mantendo meu próprio segredo (o que minha pele era
capaz de fazer) até meio que ontem. Na verdade, podia escutar Tawa dentro de
mim dizendo pra que eu sufocasse minhas emoções de menininha. Existiam
problemas mais importantes em questão do que aquele mimimi todo.
- Mas o que você quer fazer agora? - enfim perguntei a Touch. Parecia
que tínhamos passado metade daquela tarde ali parados, um encarando o outro
em silêncio, pra que eu pudesse absorver essa nova revelação.
- Eu quero ir lá embaixo - Touch disse, apontando pro desfiladeiro.
Na central de informações, descobrimos que o pedaço de terra do qual Touch
se lembrava (o que em dez mil anos viria a ser o fundo do desfiladeiro, ao menos

no que dizia respeito à parte de terra) era uma chapada e se chamava Horseshoe
Mesa. Levaríamos umas três horas pra descer por ali, e já estaria escuro quando
enfim chegássemos. Pegamos tudo da camionete que pudesse caber no mochilão
que Touch carregava. Mesmo entupida de cobertores e roupas, quando eu a
peguei pra colocar nas costas, a mochila não parecia pesar mais de cinquenta,
sessenta gramas. Acho que por conta da minha nova força depois dos wildebears e
de Tawa.
A caminhada seria por uma ladeira bastante íngreme, cheia de zigue zagues,
então toda a atenção era pouca em cada passo do percurso. Ainda assim, Touch e
eu fomos conversando pelo caminho. Sim, o fato de eu saber que ele vinha do
futuro, e não de outro planeta, motivou milhares de outras perguntas. Mas acho
que dá pra chutar qual foi a primeira.
- Então... por que você viajou dez mil anos pro passado?
Ele deu alguns passos sem falar nada. Então, disse:
- Há um monte de lacunas em nossa história. Na história de nosso povo.
Arqueologicamente é complicado porque quase tudo ficou submerso. Nós não
sabemos muito sobre o que existia antes. Tudo o que conseguimos encontrar
foram lugares como os que você e eu vimos ontem, as ruínas Anasazi, e muitas
delas estão debaixo d'água.
- Espera aí. Quando você diz "lugares como os que a gente viu ontem", você
quer dizer prédios. Cidades, né? Quer dizer, mesmo que a maior parte do mundo
esteja embaixo d'água...
- Eu nunca tinha visto um único pedaço do seu mundo até eu vir pra cá.
- Você quer me dizer que não sobrou nada depois dos Anasazi? Nenhum
povoadinho, nenhuma cidade, uma construção que seja, nada?
- Não - Touch disse, sendo bem direto. - Eu não sabia o que encontraria
em termos de civilização até chegar aqui.
Meu estômago revirou. Dentro dos próximos dez mil anos, todo e qualquer
vestígio de vida no planeta Terra teria desaparecido. Tudo varrido do mapa. O que
diabos aconteceu no mundo entre minha época e a dele? O que tínhamos feito,
minha parcela da humanidade, pra destruir tudo aquilo que passamos milênios
construindo, a ponto de civilizações futuras sequer saberem da nossa existência?
Não deixem nada além das suas pegadas pra trás, o chefe escoteiro costumava
dizer a Cody, quando rumavam deserto adentro com a tropa. De certo modo eu
sabia, no fundo do meu coração, que não foi por excesso de zelo que acabamos
não deixando nada pra ser encontrado pela geração de Touch.
- Então você veio pra cá ser tipo um antropólogo?
- Pode-se dizer que sim.
- E aquelas pessoas que estão te perseguindo...
- Eu já disse. Eles querem derrubar Arcádia.
Aquilo não me dizia exatamente como os dois pontos estavam ligados. Mas
Touch começou a andar mais rápido, como se o que ele tivesse dito concluísse o
assunto. Eu sabia que, se fizesse mais perguntas, ele me responderia que eu
estava prestes a fazer todo o exército anti Arcádia aparecer bem na nossa frente
- o que acabaria sendo um tanto conveniente demais, então eu engatei outro
assunto que também estava martelando em minha cabeça.

- Se esse seu anel de ouro é tão especial, como é que todos os seus amigos
podem viajar no tempo pra te encontrar?
- Eles precisam de um parâmetro para isso. Uma configuração específica
de DNA. Mesmo assim é bastante complicado.
- Mas eles estão dando conta, pelo visto.
- Aparentemente. - Sua voz soou um tanto sem paciência.
Não importava o quanto eu tivesse me tornado forte. Sentia todo o peso do
mundo sobre minhas costas. Além disso, estava bem preocupada. Preocupada por
nossos problemas e preocupada com dinheiro, em como Touch e eu
sobreviveríamos sem um tostão furado. Era preocupante o quanto eu estava
faminta. Não comíamos nada desde o café da manhã, e o sol já tinha começado a
se pôr. Tudo o que tínhamos pro dia seguinte era um pacote de biscoitos, alguns
pães e a manteiga de amendoim de que Touch não gostava. Tínhamos enchido
algumas garrafinhas d'água na central de informações, mas isso não nos renderia
mais do que um dia ou dois. E depois?
Eis a única certeza que eu tinha sobre o futuro, não o futuro de Touch, mas o
meu, o nosso, o dessa civilização onde eu tinha passado minha vida inteira até
então: alguma coisa nos varreria da face da Terra, varreria quase todos, e não só
as pessoas como também cada vestígio da civilização em que vivíamos. Quando
isso aconteceria? Se eu não fosse pro futuro com Touch, quanto mais eu viveria
pra ver?
Daqui a dez mil anos, o mundo seria formado basicamente por água. Faria
muito, muito calor. E as pessoas que sobrassem, os tatatata-e-daí-em-diante-
tataranetos das pessoas de hoje, conseguiriam criar, ao menos a partir dum
determinado ponto, um mundo bem melhor do que aquele que tínhamos
conseguido destruir.
Mas olha só que novidade: os caras maus, os canalhas, continuavam
resistindo. Suas ambições perversas e insaciáveis seguiam ameaçando destruir
tudo de novo. Os caras desse tipo que viviam em Arcádia queriam retornar a um
mundo governado só pelos ricos, onde se apropriariam de tudo que deveria ser
coletivo e compartilhado. Do mesmo jeitinho como nosso próprio mundo é hoje e
como, aliás, acabaria destruindo a si mesmo sem deixar nada pra trás capaz de
alertar o futuro.
Quando enfim chegamos a Horseshoe Mesa já estava escuro. Estávamos
cansados demais pra comer. Só nos enrolamos nos cobertores, puxamos nossos
gorros e caímos no sono sob um céu de estrelas, os dois sonhando com o tempo,
pra trás e pra frente, até que os primeiros raios do sol nos acordassem.
Touch foi o primeiro a levantar, mas não acendeu uma fogueira, como de
costume. Por algum motivo ele parecia ter recuperado as energias, e estava
radiante de novo.
- Bom dia, terráquea - ele disse ao me ver sentada sobre meu cobertor.
- E aí, bom dia - eu disse. E depois acrescentei: - Terráqueo.
Aquilo quase conseguiu me tirar da confusão matinal: vê-lo caminhar de
modo tão sereno e se ajoelhar pra remexer a mochila, tirando comida e água.

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