...

19 1 0
                                    

porque não era a minha. Não era nem sequer uma memória minha. As
lembranças que tenho da minha mãe são bem claras, mas ela estava sempre tão
ocupada cultivando suas próprias comidas e costurando suas saias hippies que não
tinha tempo de se preocupar em me levar até a cidade vizinha, Jackson, muito
menos a um museu. E, sinceramente, nem me lembro de algum dia ter segurado
sua mão.
A mulher naquela lembrança era a Sra. Robbins. A mãe de Cody. Olhei em
volta, os tetos eram altíssimos e havia vários artefatos protegidos por cúpulas de
vidro, mas o que senti mesmo foi o amor, o cuidado e a felicidade de ter aquela
mulher sorridente ao meu lado. Com um zunido, o ônibus passou da South pra
North State Street. Desci na minha parada, sentindo-me um pouco melhor com
tudo. Mesmo que o amor da lembrança não fosse meu, não mais do que aquela
memória, acabou elevando meu espírito e me deu forças pra atravessar aquelas
portas de vidro deprimentes.
Aparentemente as memórias de Cody me deram forças pra soltar um grito
quando avistei James na fila com os outros miseráveis. Pelo menos acho que fiz
isso. Não imagino como poderia ter nervos pra me levantar se não por esse
motivo.
— Ei, El Creepo! — gritei no instante em que o vi.
Estávamos em filas diferentes, mas ele logo chamou minha atenção, pois,
além de mim, ele era o único que também vestia roupas de inverno. O que
reconheci mesmo foi o sobretudo de couro. Quando gritei seu nome (no caso, o
nome que tinha dado), ele se virou e me olhou na hora. Assim como todas as
outras pessoas na sala.
Ele estava a uns dois metros de distância e do jeito que imaginei: com olhos
azuis penetrantes, quase faiscando. Mas eu só pensava no porque de ele ter me
dedurado. Saí da fila e fui em sua direção, pra exigir uma explicação e saber por
que ele tinha dito a Wendy Lee que eu estava rondando a Maybelline’s. Quando
ele se deu conta de que estava indo até ele, olhou em volta, talvez na esperança de
que eu estivesse falando com outra pessoa.
— Não senhor, sem essa, estou falando com você mesmo!
Ele deu meia volta e saiu correndo. Por um instante, fiquei mal por ele ter
perdido seu lugar na fila. E então notei que eu também tinha perdido o meu. Corri
atrás dele. Enquanto James corria, seu sobretudo esvoaçava e um monte de
papéis foi caindo pelo chão. Parei de persegui-lo a tempo de recolher o que ele
tinha deixado cair. Era um envelope cheio de carteiras de motorista diferentes,
cheques cancelados e canhotos de pagamentos. Ou seja, tudo o que se precisaria
pra fraudar uma bolsa alimentação.
A essa altura, um guarda já tinha se intrometido em nosso problema. Foi em
minha direção e, quando viu o que eu estava segurando, gritou pra que alguém
segurasse James. Outro guarda que estava perto da porta agarrou seu braço bem
na hora em que ele ia sair do prédio. Notei que meu guarda estava prestes a me
agarrar também. Derrubei toda a papelada falsa pra que ele tivesse que recolher
tudo em vez de me segurar. Quando enfim terminou de catar os papéis e viu que
eu não tinha corrido, ele se deu conta de que eu ficaria ali parada sem que ele
tivesse que encostar em mim. Dois guardas arrastaram James até onde
estávamos. Ele olhou pra mim por entre seu cabelo longo, bagunçado, porém sexy
(com aqueles olhos azuis me encarando). Vi que suas bochechas estavam fundas.
Parecia estar com fome. Faminto.
Não me aguentei e perguntei:
— Por quê? Por que você disse a Wendy Lee que eu queria assaltar
Maybelline’s?
Ele apenas me encarou de volta, sem uma palavra sequer.
— Você conhece esse homem? — o guarda me perguntou.
Sacudi a cabeça. Os guardas o levaram embora. Senti uma culpa poderosa,
alguém continuaria passando fome por minha causa. E então fiz a única coisa que
me veio à cabeça, que foi voltar à fila pra resgatar meus malditos vales-
alimentação.
Aquela noite foi como antigamente, tirando o fato de que me protegi ao
máximo. Eu sabia que não levariam El Creepo pra cadeia, pois ele não tinha
efetivamente utilizado a papelada falsa. Devem-no ter apenas encaminhado até a
saída e pedido pra que ele não aparecesse mais por ali. Não me pergunte como,
mas tinha certeza de que ele estaria bem no lugar onde o tinha avistado da outra
vez, pairando na porta da Maybelline’s Collectibles.
Andei pelas ruas escuras e vazias, desejando estar caminhando de volta pro
meu antigo emprego pra assar quitutes pro café da manhã. E, enquanto isso,
desejei também não só que Cody estivesse vivo, mas que estivesse caminhando ao
meu lado. No dia seguinte, teria de ir à biblioteca pra usar o computador (pra ver
se encontrava alguma notícia dele no jornal de Caldecott). Talvez ele tivesse
acordado. Mas, no fundo do meu coração, sabia que Cody não tinha acordado de
seu coma. Provavelmente jamais acordaria.
Alguns minutos depois, estava parada na porta da Maybelline’s. Será que eles
tinham vendido todas aquelas bolsinhas bobas? No lugar delas, havia um display de
espelhos pintados à mão de diferentes tamanhos. Um era largo e quadrado com
uma linda moldura verde-água. Parecia que tinha sido feito pra ficar sobre uma
pia, mas estava inclinado de uma forma que pude ver quase todo meu corpo
estranho. Não tive tempo de sentir o desdém de sempre, pois, em questão de
segundos, vi também o reflexo de El Creepo. Ele estava atrás de mim, com seu
longo casaco e seu cabelo esvoaçando, seu rosto pálido e faminto, seus olhos azuis
feito os de um lobo do ártico.
Bom, pensei, mirando o reflexo, pelo menos sei que não é um vampiro. Ele
estendeu a mão pra encostar em meu ombro e eu me agachei por baixo do seu
braço. Mesmo vestindo um casaco de couro e uma gola rolê, eu não quis
arriscar.
— Eu não ia machucar você — ele disse. Mal sabia.
Seu sotaque parecia ser de longe, com certeza não daqui do sul, talvez nem
dos Estados Unidos, sem contar que sua voz era chiada e sem fôlego, como se ele
tivesse vindo correndo. Não apenas isso, ele me olhava como ninguém jamais
tinha olhado. Quer dizer, de uma forma que me fez sentir completamente nua.
Dei outro passo pra trás, pus a mão no bolso e tirei um monte de vales. Entreguei
todos pra ele sem sequer uma palavra. Pra ser bem sincera, minha garganta
estava completamente seca. Ele apenas piscou, olhando pra minha mão enluvada
como se não entendesse ao certo o que eu estava entregando. — O que é isso? Sua moeda? — ele perguntou.
— Moeda? — respondi, finalmente encontrando minha voz. Imaginei de que
país ele poderia ser com aquele sotaque. — Não é moeda, são vales-alimentação.
SNAP? O que quase te fez ser preso por tentativa de fraude?
— Ah, é isso que eu devo usar para conseguir comida? — retrucou, ainda
olhando pra minha mão.
— Sim — respondi vagarosamente —, você vai até um mercado e os usa pra
comprar comida. Não qualquer tipo de comida. Quer dizer, existem regras. Tipo,
você não pode comprar comida pronta. — Notei que eu estava falando demais. —
Olha, por que você estava querendo fraudar o SNAP se você nem sabe o que essas
coisas são?
Ele não respondeu minha pergunta, apenas pegou os vales. Pude sentir seus
dedos encostarem no tecido da luva. O que o diferenciava dos outros (uma das
coisas, pelo menos, e elas certamente pareciam estar se acumulando) era o fato
de não ter questionado minha forma de vestir. Sequer olhou pra mim como se eu
fosse estranha. Mas, pensando bem, ele também se vestia como se o inverno
estivesse chegando.
Ele guardou os vales no bolso.
— Você sabe se tem alguma loja de comida aberta a essa hora?
— Bem — respondi, desejando ter trazido ao menos uma banana ou algo
assim. Estava ficando cada vez mais claro o motivo de ele ficar parado perto da
cozinha da padaria. Apesar de ele ser tão incomum e aparentemente morto de
fome, havia um quê de elegância em James. Detestaria imaginá-lo catando
comida do lixo. — A cidade é bem parada. Mas tem um Kroger que deve estar
aberto. É na I-55 perto de Northside…
Antes que eu pudesse terminar de falar, ele deu meia volta e passou a subir a
rua.
— Ei! Será que dá pra esperar uma dama terminar de falar?
Ele se virou e me encarou. Seu rosto tinha suavizado um pouco e não me
senti tão nua. Além de estar contente por ter decidido ajudá-lo, apesar de não
saber exatamente por quê.
Ele esperou que eu dissesse algo e, então, percebi que não sabia o que fazer.
Perguntar como ele pretendia chegar a I-55 sem um carro? Ou por que ele estava
tão faminto? Em vez disso, perguntei:
— Qual é seu nome?
— James — respondeu. Ele tinha uma voz baixa, quase um gentleman. O
cara podia até ser estranho, mas de repente eu não vi mais nada de esquisito nele.
— James, sou Anna Marie.
— Eu sei — retrucou.
Nossa! Aquilo me deixou sem palavras por um instante. Fiquei parada,
recuperando o fôlego, preparando-me pra perguntar como diabos ele sabia meu

X- Men: OToque Da VampiraOnde histórias criam vida. Descubra agora