capítulo 03

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O carro estava mais quente do que o inferno. Não só os vidros estavam
fechados como o aquecedor estava ligado.
— Você só pode estar de brincadeira — eu disse, e ele olhou pra mim como
se não tivesse a menor ideia do que eu estava falando. — Você acha que a gente
poderia ligar o ar-condicionado em vez do aquecedor?
— Claro — ele respondeu, soando tão calmo com aquela voz elegante, quase
musical. — Por favor, faça o que você quiser. Eu ainda estou tentando entender
como tudo funciona.
— Tá, relaxa — eu disse, dando uma chance pro cara. — Esse carro é velho
mesmo, com certeza.
Girei o botão do vermelho pro azul. As chances do ar-condicionado daquela
joça estarem funcionando eram bem pequenas. Por sorte, Cody sabia exatamente
como consertar um ar-condicionado de um Camaro antigo, então, mesmo que eu
não soubesse exatamente como naquele momento, poderia consertá-lo em algum
ponto da estrada.
— O que isso aqui faz? — James perguntou, ao me ver mexendo nos botões.
— Limpa o oxigênio?
— O oxigênio? Do que você tá falando?
— Você chamou de ar-condicionado. Isso quer dizer que o ar ficará mais
limpo? Mais fácil de respirar?
— Você não sabe o que é um ar-condicionado?
Ele hesitou por um instante, como se soubesse que estava cometendo um
erro. E então, aleluia, começou a sair ar gelado do painel, e ele passou a tremer.
Revirei os olhos e o jeito foi desligar.
— Seguinte. Vamos fazer um pacto. A gente desliga o aquecedor, que deixa o
carro mais quente, e também desliga o ar-condicionado, que deixa o ar frio, e não
mais fácil de respirar. Quer me contar por que você é a única pessoa do mundo
que não sabe disso?
James fez que sim com a cabeça. Mais adiante, havia uma grande placa na
autoestrada nos dando a opção de seguir pela 220 South ou pela 55 North.
— Você quer conversar sobre meu conhecimento acerca de termos
automobilísticos? Ou você prefere me dizer para onde estamos indo?
— Norte — respondi, sentindo-me um pouquinho culpada por querer subir
rumo a temperaturas ainda mais frias. — Definitivamente pro norte.
Fiquei esperando que ele reclamasse um pouco, dizendo que queria ir pra
um lugar mais quente, mas ele não disse nada. Só pegou a entrada da Interstate
55. Fiquei de ouvidos abertos em busca de sirenes estridentes atrás de nós, mas

não escutei nada. Uma placa na beira da estrada dizia que faltavam 870
quilômetros até Winona, no Tennessee. — Como é que você se sente sabendo que vai ter de dirigir durante toda a
madrugada? — perguntei a ele.
— Por mim, tudo bem.
— Nesse caso, a gente não precisa falar sobre coisa nenhuma se você não
quiser.
James sorriu e fez que sim com a cabeça. Estendeu o braço como se
pretendesse afagar minha mão e eu a retraí. Eu estava usando luvas rendadas por
baixo das luvas embutidas no casaco, mas mesmo assim. Melhor não criar o
hábito. Ele estremeceu um pouco, eu o tinha magoado de novo, mas ele manteve
os olhos na estrada. Isso me deu a oportunidade de analisá-lo por um momento. A
princípio, com os cabelos longos e todo aquele couro, ele podia parecer um
pouco assustador. Por sorte, aprendi que a maioria das pessoas não se dava a
oportunidade de algo além da primeira impressão. Então elas não enxergavam o
que eu enxergava, como um calombo sutil em seu nariz, como se ele já tivesse
sido quebrado umas duas vezes, ou a forma com que ele segurava o volante, com
força, como se suas mãos fossem capazes de fazer qualquer coisa neste mundo.
A iluminação dentro do carro mudava de acordo com os postes de luz que
passavam voando e dos faróis com que cruzávamos na estrada. Não tirei meus
olhos de James, e ele não parecia se importar com isso. Fazia tanto tempo que eu
não ficava simplesmente sentada ao lado de alguém. Tanto tempo que eu não
sentava no banco do carona em vez de estar simplesmente sozinha... De repente
minha cabeça foi tomada por esse pensamento. Era mais uma memória do que
um pensamento propriamente dito. A lembrança de estar num carro, quase
exatamente como aquele, com um banco único e um capô conversível. Mas, na
minha cabeça, o homem ao volante não era James, mas um careca barrigudo.
Na minha lembrança, eu pouco me importava com isso. Na verdade, eu de certa
forma até gostava. Então me debrucei e abri o zíper da sua calça enquanto ele
dirigia.
— Não é seguro — ele disse, mas não me soou nada convincente, então eu só
ri. Depois, tirei o que ele escondia lá dentro e...
Wendy Lee! E pensar que todo esse tempo eu a tinha imaginado tão religiosa.
Minhas bochechas ficaram tremendamente rosadas durante o percurso todo
até Canton. Por sorte estava escuro e James não pareceu ter notado. É de se
imaginar que nós dois já estivéssemos sem papas na língua àquela altura e com
todas as dúvidas que precisavam ser esclarecidas. Na minha cabeça, procurava o
que dizer a James quando ele perguntasse por que eu quis sair de Jackson com
tanta pressa. Mas ele não perguntou, simplesmente manteve os olhos na estrada,
dirigindo.
— Quer que eu dirija um pouco? — perguntei, depois de três silenciosas
horas.
— Não, acho isso divertido.
— Você se importa se eu dormir, então?
— Não — respondeu com seu sorriso típico, aquele que me fazia pensar na
palavra “gentil”. —Tente descansar.
Tirei minha jaqueta e a dobrei num quadrado rechonchudo pra usá-la como
travesseiro. Assim que encostei na janela, pensei no jeito gentil de James. Podia
até imaginar: ele é bem o tipo de pessoa que, assim que eu adormecesse,
afagaria meus cabelos ou passaria a mão de modo carinhoso na minha bochecha.
Não dá pra esquecer que eu costumava ser uma garota normal. Sabia bem
sobre as coisas que se passavam entre as pessoas como se não fossem nada de
mais. Minhas amigas em Caldecott County costumavam me tocar o tempo
inteiro com seus dedinhos esvoaçantes. Até mesmo Tia Carrie entrava na ponta
dos pés no meu quarto pra me dar um beijo na testa quando pensava que eu já
estivesse dormindo. Eram os únicos momentos em que parecia gostar de mim,
quando eu enfim adormecia.
— Escuta, James — comecei.
— Sim, Anna Marie? — ele falava de maneira tão correta que eu tive de rir
por dentro.
— Eu vou dizer uma coisa meio estranha — avisei. Ele desviou o olhar da
estrada por um instante e sorriu de forma a me incentivar, como se eu pudesse
dizer qualquer coisa estranha que quisesse. Respirei fundo. — Você não pode
encostar em mim, nem quando eu estiver acordada nem quando eu estiver
dormindo. Não é nada pessoal contra você. E nem estou dizendo que você queira
encostar em mim. Mas preciso que você prometa que não. Prometa que não
tocará em mim, só isso.
— Tudo bem — ele concordou.
— Promete?
— Prometo.
Fiquei surpresa de ele não ter feito nenhuma pergunta, mas imaginei que ele
estivesse simplesmente me agradecendo por não ter feito nenhum interrogatório.
Encostei minha cabeça na janela com o travesseiro improvisado com minha
jaqueta e esbocei fechar os olhos. Mas eu ainda estava um tanto encucada, e
nunca aprendi a ficar de boca calada.
— James?
— Sim, Anna Marie?
— Você não quer saber por que você não pode tocar em mim?
— Bem, para ser honesto, quero sim. Mas suspeito que seja parecido com o
fato de eu não saber o que é um ar-condicionado. Não é mesmo?
Um ligeiro surto de medo misturado a um certo entusiasmo foi subindo direto
até meu coração.
— Sim — sussurrei —, acho que sim.
Encostei minha cabeça na janela e fechei os olhos. Mais uma das
lembranças de Wendy Lee passou pela minha cabeça. Dessa vez, era uma
maldita imagem bem mais completa, em que ela estava encostada na janela
daquele mesmo jeito. O homem dirigindo era diferente do primeiro, muito mais
jovem, seu ex-marido antes de ele se tornar um ex. Seu nome era Joe Wheeler.
Nessa lembrança, ele colocava a mão na cabeça de Wendy e os dedos passavam
carinhosamente pelos cabelos enquanto ela dormia.

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