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Ele bateu no vidro.
— Pare com isso, não é o que você está pensando.
— Ah, não? O que é então? Ela não te compreende?
Os pensamentos e memórias de Wendy Lee invadiram minha cabeça. Ela
tinha uma série de argumentos desse tipo. Cobri meus ouvidos com as mãos,
como se isso fosse abafá-los. Fechei meus olhos e senti uma tristeza profunda ao
lembrar como era perder um bebê.
Merda, merda, merda. O dia mais perfeito da minha vida inteira, arruinado.
Finalmente, Touch desistiu e se afastou do carro. Depois de mais ou menos
quinze minutos, olhei pela janela pra conferir se ele tinha apagado o fogo. Estava
tudo completamente escuro. Imagino que também deviam existir fogueiras lá de
onde ele veio. Claro que existiam. Aparentemente era exatamente igual a tudo
aqui: dunas de areia, montanhas, filhos, esposas e maridos infiéis.
***
Não me perguntem como peguei no sono, mas enfim peguei. Infelizmente,
não por muito tempo. Acordei cerca de uma hora depois, batendo o queixo e
morta de frio pela primeira vez em muito, muito tempo. Procurei algum tipo de
cobertor dentro do carro, sem muito êxito. Tinha descarregado tudo pra dentro da
barraca quando estava brincando de casinha. Feito uma boa namoradinha
extramatrimonial.
Dei uma última e boa olhada no porta-malas do Prius. Nada além das placas
que tínhamos arrancado de um carro no ferro-velho em Pueblo. Não podíamos
nos esquecer de trocá-las amanhã e de nos livrar das placas da concessionária. Só
de pensar na palavra “nós”, fiquei extremamente triste. Senti calafrios. Saía uma
fumacinha branca da minha boca. Se eu não entrasse naquele saco de dormir,
congelaria.
Touch nem sequer tinha fechado os olhos. O que percebi assim que abri o
zíper da barraca. Ele estava apenas deitado, com as mãos atrás da cabeça,
olhando fixamente pro teto de nylon. Mesmo brava do jeito que estava, ainda não
chegava a ponto de querer matá-lo, por isso tratei de me movimentar naquele
pequeno espaço com todo o cuidado. Não disse nada, apenas fechei o zíper e
engatinhei delicadamente ao seu redor. Procurei minha balaclava dentro da
mochila, cobri minha cabeça e me enfiei no saco de dormir.
— Você está com frio? — ele perguntou. Parecia estar surpreso, como se não
fosse possível que eu sentisse frio.
— Congelando.
— Aqui.
Eu podia escutá-lo, mais do que vê-lo, levantando seu braço por trás da
cabeça e esticando-o pra me abraçar.
— Não faz isso — chiei. — Não encosta em mim.
— Está tudo bem, eu estou usando luvas e...
— Não. Encosta. Em. Mim.
— Ah — ele disse. Aquele ar magoado de novo. — Tudo bem.
Ele afastou seu braço e o enfiou pra dentro do saco de dormir, talvez pra
demonstrar que ele respeitava meus desejos. Por um tempo, só fiquei ali toda
murcha dentro do meu saco, focando em me esquentar e nada mais. Quando
meus dentes começaram a ranger, me peguei pensando sobre sua esposa, como
ela era, quantos anos tinha, que tipo de mãe era. Será que ele gostava da comida
que ela fazia?
Agora que eu tinha todas as habilidades de Wendy Lee, aposto que cozinharia
melhor do que ela. Fiquei imaginando que tipo de emprego teria a esposa de
Touch, se ela recebia um bom salário ou fosse lá o que valesse a mesma coisa
que dinheiro no mundo dele.
Minha única certeza? Quem quer que fosse sua esposa, o que quer que ela
fizesse, independente de sua aparência, quaisquer que fossem seus defeitos e
fracassos, ela poderia tocá-lo e poderia deixá-lo tocar nela. Tinham um filho como
prova disso.
— Vampira? — ele me chamou. Naquele momento, deve ter imaginado que
eu não falaria mais nada. — Não é o que você está pensando.
— É isso o que os homens casados sempre dizem. — Eu já tinha visto
algumas novelas, sem contar que tinha todas as experiências de Wendy Lee
enclausuradas dentro de mim. Como ele não respondeu de volta, continuei: —
Qual é o nome dela? Sra. Touch?
— Não estamos mais juntos.
— Ah. — Odeio ter que admitir, mas isso me soou bem promissor.
— Ela não é… Não posso explicar de um jeito mais claro. Não é seguro.
— Sempre que você não quer tocar em algum assunto, você diz que não é
seguro. Isso já está ficando batido, Touch. Batido demais.
Nossa barraca era azul-clara e, no teto, dava pra ver as sombras projetadas
pelos galhos. As árvores ali eram lindas, muitas delas se pareciam com bétulas, só
que com minúsculas folhas verdes e arredondadas. Já tinha percebido como elas
brilhavam à luz do sol e, então, suas sombras passaram a brilhar também. Se
fosse no Mississipi, já teria milhares de insetos do lado de fora da barraca, mas
não avistei sequer um inseto lá, apenas as sombras dos galhos. Pude sentir que, se
mantivesse os olhos semiabertos, poderia enxergar as estrelas também.
— Eu gosto daqui — falei depois de um tempo. — É bonito. Parece... sei lá.
Espíritos bons ou coisa do tipo.
Quando me permiti olhar pra Touch, ele estava apoiado em um dos cotovelos.
Seus olhos estavam com uma tonalidade escura, preocupados.
— Eu realmente queria poder contar tudo pra você. Cedo ou tarde, vou
descobrir uma maneira de fazer exatamente isso. Mas, por ora, deixe-me falar
uma coisa. De onde venho, existe uma coisa, como já falei, chamada Arcádia.
Ninguém passa fome, ninguém adoece. Ninguém tem mais do que ninguém.
Lembra de quando você me perguntou se eu era rico? A verdade é que eu sou e
não sou. Tenho tudo o que preciso, mas todas as outras pessoas também têm.
Tudo é igual. Mas nem sempre foi assim. E algumas pessoas, os descendentes das
pessoas que dominavam tudo na época anterior à Arcádia, querem que as coisas
voltem a ser como eram antes. Querem voltar aos tempos em que algumas
pessoas tinham mais do que o necessário, o que acabaria significando que outras
pessoas não teriam o suficiente pra sobreviver.
— Então, aqueles homens na concessionária...?
— Eles confabulam contra Arcádia. É a primeira vez em quinhentos anos que
alguém se opõe.
Touch se recostou novamente, mas de lado, ainda olhando pra mim. Àquela
altura, seu rosto já escancarava uma barba por fazer havia uns dias. Mesmo com
aquela parca iluminação, pude ver como as maçãs de seu rosto eram
perfeitamente esculpidas.
Quando ele se pôs a falar de novo, sua voz estava bem baixinha e muito
sincera. Era uma voz que transmitia uma honestidade em estado bruto.
— Se fosse possível traduzir o nome da minha esposa pra sua língua, seria
Alabaster. Ela é uma pessoa amável, tem a pele branca e pálida, e cabelos quase
brancos de tão loiros. Olhos azuis. Ela é bem miúda. Feito uma fada, como eu
gostava de pensar. Nós nos conhecemos desde que éramos crianças. Mas não
estamos mais juntos. E o que nos levou a isso foi o fato de que ela é uma das
pessoas que estão confabulando contra Arcádia. É por isso que não quero mais
saber dela.
Dentro da minha cabeça, todas as lembranças de Wendy Lee diziam pra não
acreditar nele. Ela já tinha escutado histórias como aquela centenas de vezes e,
no fim, nunca era verdade. Mas lá estava Touch, todo diligente e simplesmente
maravilhoso. Minhas opções eram perdoá-lo (confiar nele) ou passar o resto dos
meus dias completamente só.
— E quanto a mim? Você quer saber de mim?
Ele sorriu. Um sorriso lento e sensual que simplesmente me deixou derretida
do pescoço pra baixo.
— Com certeza — ele respondeu.
Baixei a balaclava pra cobrir meus lábios. Então, eu me inclinei pra frente e
beijei sua boca. Com força. Tinha gosto de lã. Mas, fora isso, pude sentir seus
lábios e sentir seu hálito. Era como estar a um passo da coisa mais maravilhosa
do mundo inteiro.
Mantive a balaclava sobre meu rosto, deixando apenas os olhos de fora. Ele
jogou seu braço por cima do meu saco de dormir e adormecemos. Pela primeira
vez em minha vida, eu estive perto de dormir nos braços de alguém.

#Mais um capítulo completo pra vocês. .vampiresco.

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