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Deslizei o pequeno barco ao longo da água e as grandes paredes do
desfiladeiro foram se avolumando cada vez mais sobre nós. Foi estúpido sentir
ciúmes de uma mulher maligna de outro planeta. Mas não pude evitar.
Perguntava-me o que aconteceria se, quando finalmente nos encontrássemos de
novo, eu tirasse minhas luvas e simplesmente a agarrasse. Talvez absorvesse um
pouco da sua beleza, além de saber tudo o que ela sabia sobre Touch. Mas então,
é claro, ela estaria em coma ou morta, e não importa o quanto Touch a
desprezasse naquele momento, ele provavelmente não aceitaria o fato de bom
grado, sendo ela a mãe do seu filho e tudo mais.
Minha mente passou a vagar por tudo o que Touch tinha me contado sobre
seu lar.
— Utopia — eu me peguei dizendo.
Touch virou sua cabeça em minha direção:
— O que você disse?
— Nada de mais, só essa palavra que a gente aprende em sociologia, uma
palavra pra uma sociedade ideal. Utopia. Parece uma utopia, esse lugar de onde
você veio. Eu acho que é só mais uma palavra pra Arcádia. Um mundo perfeito.
Touch ficou pensando na nova expressão. Eu percebia como ele a revirava na
sua cabeça, matutando sobre ela, comparando-a com o que quer que os ruídos e
os assobios da sua língua se valessem pra dizer a mesma coisa. Então ele
balançou a cabeça, concordando comigo, mas parecia estar imensamente triste.
— Sim. Eu acho que é. Ou pelo menos costumava ser.
Fomos deslizando por entre os desfiladeiros. Como uma boa menina do
Mississipi, passei um bocado de tempo na igreja. Mas quero dizer que nunca
senti uma sensação espiritual (de Deus) como senti ao flutuar descendo por
aquela hidrovia, com aquelas paredes enormes de rochas. Algumas delas se
encontrando em arcos, algumas outras subindo em formatos malucos. Você
poderia ficar observando aquelas rochas como observa nuvens, pensando em
todas as coisas com que elas se pareciam. A cabeça de um touro ali, um tênis
mais além. Uma senhora com cabelos longos, flutuantes. Mas, ao contrário de
nuvens, as rochas não se dissipavam e voavam pra longe. Permaneciam firmes,
encarando a gente de volta. Era como se a alma de qualquer forma que você já
tenha visto vivesse dentro delas.
Puxamos o barco até uma pequena ilha, arrastando-o pela areia, e fomos dar
uma volta. Touch já tinha descoberto o que eram mapas e seguiu as instruções do
seu livreto sobre os Anasazi. Ele lia em voz alta pra mim enquanto
caminhávamos, e eu aprendi que os Anasazi eram povos antigos que viviam em
cabanas e grutas espalhadas por todo o Novo México, Arizona, Colorado e Utah.
Dava pra encontrar vestígios das suas aldeias por toda a região de Four Corners e,
antes que me desse conta, Touch e eu estávamos plantados no meio de uma delas,
um pequeno vilarejo com trilhas escavadas e grutas construídas nas rochas,
grandes o suficiente pra que nós rastejássemos pra dentro e prosseguíssemos
agachados.
Mais do que nunca, eu sentia os espíritos ao meu redor. Quando fechei meus
Mais do que nunca, eu sentia os espíritos ao meu redor. Quando fechei meus
olhos, vi todo o lugar cheio de vida, as crianças pequenas zanzando por aí,
mulheres carregando cestos e jarros cheios d’água. Havia tanta coisa pra se
admirar sobre a forma como aquela pequena aldeia tinha sido construída nas
rochas, como um arranha-céu maluco que se misturava perfeitamente à
paisagem. Dava pra ver que parte da estrutura pertencia à parede rochosa natural
e quais partes tinham sido feitas com lama e pedras da margem do rio.
Touch não parecia estar com muita vontade de entrar. Permaneceu próximo,
andando pra cima e pra baixo, examinando as coisas tão de perto que mais
parecia que aquilo era o real interesse dele neste planeta, desde o princípio.
— Ei — eu disse. — Você não quer subir um pouquinho pra ver mais de
perto?
— Não. Eu quero ter uma noção da construção.
Dei de ombros e me abaixei pra passar por um pequeno arco. Já bem
acomodada numa pequena gruta, cruzei as pernas e, em seguida, ergui as mãos,
juntando os polegares aos indicadores. O tipo de posição em que minha mãe
ficava, pelo que me lembro, concentrando-se com todas suas forças. Silêncio,
Anna Marie. Mamãe está se concentrando.
Abri meus olhos e vi Touch com as mãos nos quadris, olhando pra mim. Sorri
pra ele e ele sorriu de volta, mas nada tão cintilante quanto seus sorrisos
costumavam ser.
— Vocês têm lugares como esse?
Ele me veio com outro daqueles semblantes meio perturbados e logo apontou
o queixo em direção à parede atrás de mim.
— Olha — ele disse. — Arte.
Levantei-me e dei uma boa olhada na parede. A gruta pra qual me arrastei
tinha um formato diferente dos outros cômodos, era meio arredondada, e de
repente tive uma súbita percepção das coisas. A razão pela qual não tinha visto os
desenhos enfileirados era que as paredes estavam carbonizadas, tinham diferentes
camadas de preto e, de alguma forma, eu sabia que aquele cômodo tinha sido um
local de culto. A palavra “kiva” pipocou na minha cabeça, uma palavra que eu
nunca tinha escutado antes. Se algum dia chegou a existir um teto, ele já tinha
sumido fazia um bom tempo. O sol queimava o topo da minha cabeça.
Os desenhos na parede pareciam bem primitivos. Linhas, círculos e
quadrados. Eu podia distinguir diferentes tipos de animais (ursos, cervos e lobos),
além de pessoas de diversos tamanhos, algumas com cabeças de animais,
algumas delas segurando o que pareciam ser cabeças humanas. Olhando estas
últimas, tive a sensação de que tinham sido feitas pra servir como um aviso. Como
se talvez eu não devesse estar naquela pequena sala oval, examinando aquela arte.
— Touch, estou com um pouco de medo.
— Está tudo bem — sua voz soou muito diferente naquele momento. Parecia
firme, sem maldade alguma, com uma certeza que eu nunca tinha escutado
antes. Por um momento senti que ele sabia exatamente onde estava e o que estava
fazendo. Como se tivesse algum outro tipo de propósito além de escapar de quem
nos perseguia.
O mundo todo começou a pulsar a minha volta. Não conseguia me conter.

X- Men: OToque Da VampiraOnde histórias criam vida. Descubra agora