Capítulo 58

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Fomos pra minha casa. Ele perguntou se podia entrar, mas eu nem respondi; só fiz com a cabeça que não, então ele meteu o pé. Entrei em casa, já com o cu na mão do esculacho que eu ia receber da minha mãe. Procurei-a em todos os cômodos da sala e ela tava no meu quarto, deitada na minha cama, abraçando meu travesseiro e enrolada no meu cobertor, e claro, e o mais doloroso de dizer, chorando pior do que ontem, quando me pediu pra sair disso.
— Roberta: Eu tô viva... — Disse baixo, na porta do quarto
— Lúcia: Tu ainda vai me matar, Roberta... — Disse deitada na cama, com cara de choro
Eu não respondi, e ela ficou me olhando como se tivesse vendo um fantasma. Uns 2min depois, levantou da cama.
— Lúcia: Onde que cê tava? Eu soube da Alícia... Eu a vi morta lá na central. Ela tava coberta por um lençol e eu não aguentei levantar; pensei que era você — Disse me abraçando
— Roberta: O RGR me levou pra mansão à força, porque eu não queria sair de perto da Alícia — Respondi abraçando-a de volta
— Lúcia: E a vó dela já sabe?
— Roberta: Não sei, mas creio que já sabe. Mais rápido pra se espalhar que fogo, só notícias.
— Lúcia: Como ela morreu? — Perguntou após me soltar, sentando na cama
Ela deu dois tapinhas na cama, ao seu lado, e eu sentei ao seu lado, mas ela me deitou com a cabeça em seu colo e ficou alisando meu cabelo.
— Roberta: Teve confronto ontem, cê sabe, né? — Minha mãe assentiu com a cabeça — Eu tava com a Lia e o Neguinho quando começou e eu ia levar ela pra casa, mas daí ela disse que não ia me deixar sozinha e bateu o pé, e foi pro confronto com a gente. Nisso, a gente tava na escadaria, e quando fomos subir, a mochila ficou enroscada no fúzil e a gente tentou soltar, mas não conseguimos, aí atiraram nela lá de baixo. Eu tô me sentindo um lixo.
— Lúcia: Por quê?
— Roberta: Porque foi culpa minha, mãe! O tiro era pra ser em mim e foi nela! Eu daria tudo pra poder voltar atrás e o tiro pegar em mim! Ela não deveria estar morta, e sim eu! E agora eu tô aqui pensando na avó dela quando souber da notícia, ou quando soube, se já foram avisá-la! — Respondi já chorando
— Lúcia: Vou sentir saudades da Lia... Era a única amiga sua, exceto as suas amigas do asfalto, que não era má influência...
— Roberta: Não existe isso de má influência, mãe! Eu faço as paradas porque eu quero! Eu sei pensar! Eu tenho um cérebro!
— Lúcia: A carapuça serviu? — Perguntou com as sobrancelhas levantadas — Agora ela tá num lugar melhor...! Você não pode mais fazer nada por ela, mas por outras pessoas que podem morrer sem culpa alguma, você pode!
— Roberta: Como assim? Quais pessoas?
— Lúcia: Eu sou a primeira da lista — Respondeu, levantando da cama

Ela saiu do quarto me olhando com cara de "tô de olho em você". Fiquei deitada na cama, sem coragem de fazer nada. Peguei meu celular e mandei mensagem pra Marjorie, perguntando se tinha alguma coisa importante pra amanhã no colégio, e ela disse que não, então eu já fui avisando que ia faltar. Contei pra ela sobre a Lia e ela, em vez de me ajudar, disse que a culpa era minha. Nem respondi, porque se eu respondesse, ia mandar ela tomar no cu. Em certos casos, eu não aguento ouvir a verdade mesmo.
— Lúcia: Mais cedo eu tava olhando umas fotos suas, assim que acordei — Falou enquanto adentrava no meu quarto com uma caixa
— Roberta: Por quê?
— Lúcia: Pra relembrar de quando você era uma pessoa boa e obediente, dentro dos limites, claro. Porque cem por cento obediente tu nunca foi — Respondeu sentada na minha cama, procurando algum álbum específico
— Roberta: Eu sou ruim?!?
— Lúcia: Que tipo de pessoa boa mata os outros?
— Roberta: A gente mata porque eles veem mexer com a gente. Se ficassem na deles, o morro ia ser a maior tranquilidade. A gente já avisou que não vai meter o pé daqui por nada.
— Lúcia: "A gente" quem?
— Roberta: A gente.
— Lúcia: Soldados? — Fiz que sim com a cabeça — Você entrou de cabeça nessa parada. Assim como entra em qualquer coisa...
— Roberta: Eu não sei ser superficial. Comigo é oito ou oitenta.
— Lúcia: Oitenta ou oitocentos? — Perguntou, me dando um álbum
Ri. Oitocentos ainda é pouco, e oito também. Se eu tô interessada em algo, tô demais; se não tô, tô de menos. Abri o álbum e tinha na primeira página escrito pela minha mãe "de 5 a 7 anos". Ela tem vários álbuns meus. Sentei na cama e comecei a folhear as páginas. Tinha na faixa de umas 80 fotos, e eu terminei de olhar todas uns 10min depois. Minha mãe pegou o álbum da minha mão e me abraçou de lado após dar um beijo na minha cabeça.
— Lúcia: Como eu queria que esse tempo voltasse...
— Roberta: Eu também.
— Lúcia: Tem como voltar pelo menos vinte por cento...
— Roberta: Mãe, não enche, eu não vou sair disso, tá?!? E se eu sair, vai ser quando eu pegar o filho da puta do Gonçalves! — Disse boladona, após sair do abraço dela
— Lúcia: Quem é Gonçalves?
— Roberta: O cara que atirou na Lia. O cara que tava do lado dele gritou que ele matou a Lia, e disse o nome dele. Se pá, eu ainda lembro da cara dele.
— Lúcia: Meu Deus do céu, Roberta... — Disse balançando a cabeça negativamente, com a testa apoiada na mão
— Roberta: Tem mais álbuns? Eu era tão linda — Falei, pra mudar de assunto
Olhamos todos os álbuns de foto que tinham na caixa. Tinha foto minha desde meu nascimento até os meus 12 anos, quando minha mãe parou de revelar as fotos. Ela está muito tecnológica agora — olha a ironia...! Eram 13h30, e a gente foi fazer o almoço e almoçamos juntas. 17hrs, meu radinho começou a fazer barulho lá no quarto e minha mãe já me olhou assustada. Fingi que não me liguei e fui pro quarto, e voltei pra sala com o radinho na mão.
XXX Início de conversa pelo radinho XXX
— Roberta: Repete aí, que eu não tava na escuta, não.
— Geré: Onde que tu tá? — Perguntou quase 2min depois
— Roberta: Em casa, por quê?
— Geré: Se ter confronto hoje, não quero ver tua cara, já é?
— Roberta: Ih, por que não?!? Eu não vou negar o morro, não!
— Geré: Tô te dando o papo que não quero ver tua cara hoje! A vó da tua amiga já sabe da parada e tá malzona, e disse que não quer tua cara nem pintada de ouro.
— Roberta: Imaginei — Disse após respirar fundo — E o enterro da Alícia, ela já tá resolvendo?
— Geré: Sei não. Manda o Neguinho falar com ela, porque ele quem foi lá avisar à véia junto com o Dudé e o TT.
— Roberta: E a manifestação, vai ter?
— Geré: Quase tudo certo pra que tenha sim. Só falta nóis descer os pneu e avisar aos caras que queimam os busão.
— Roberta: Quero participar!
— Geré: Tu vai participar de porra nenhuma hoje, Roberta! Fica com teu cu quietinho aí na tua casa!
XXX Fim de conversa pelo radinho XXX
Otário. Tô abalada com a morte da Alícia, mas não tô morta, e sim com muito ódio, e preciso colocá-lo pra fora! Me joguei na poltrona e fiquei olhando pro nada, pensando em mil fita, até que a minha mãe falou.
— Lúcia: Hoje tu não vai sair.
— Roberta: Eu não sou uma criança.
— Lúcia: Tá agindo sem pensar, como se fosse uma. Aliás, até uma criança pensa mais que você.
— Roberta: Eu vou sair, sim! Se ter manifestação ou confronto, eu vou colar lá de qualquer jeito!
— Lúcia: Tente — Disse seca, levantando do sofá
Ela foi pra cozinha me encarando, assim como eu tava encarando-a. Só tomo no cu nessa vida. Peguei meu celular e fui olhar o facebook, e tinha várias dedicações no perfil da Lia. Eu sei que não vai adiantar de nada, que ela não ler e que muito menos isso não vai trazê-la de volta, mas eu queria escrever algo pra ela também.

Índiazinha do Alemão - Pré História ✧ Donde viven las historias. Descúbrelo ahora