prefácio

1.5K 77 43
                                    

Os tons de cinza das paredes da sala de espera davam um ar frio, quase impessoal, para o ambiente. Os de azul, em contraponto, dava o acolhimento necessário para tornar a sala um lugar agradável e aconchegante. O equilíbrio perfeito, aos olhos de Gizelly. Não que a morena fosse alguma especialista em teoria das cores, até porque seu trabalho de contadora não tinha qualquer envolvimento com arte, mas as sensações que ela teve a fizeram chegar em tal conclusão. Há certas coisas que são intrínsecas ao ser humano, o conhecimento aprofundado só deixa mais nítido – seja isso cores ou o senso de certo e errado.

As discussões sobre bom e mau existem desde que a humanidade se entende como humanidade. Filósofos, cientistas, religiosos, todos desenvolvem suas próprias concepções de certo e errado, e esse é um debate que deve seguir até o fim de nossos dias. Escolher qual dos conceitos usar cabe a cada um de nós, afinal, julgar qual a melhor definição e ditar isso para todos os outros não é uma opção.

Mas será que há algum desses conceitos que é universal? Se é universal, teria ele exceções?

Gizelly estava 100% convicta de que o que ela sentia era errado, convicta de que ela não deveria sentir aquilo e nem achar que fosse um sentimento real. Estaria ela certa? Errada? Bom, há diversas respostas para esse questionamento, embora em sua cabeça só uma delas fosse a correta. A morena acreditava que gostar de mulheres era errado, e estava disposta a reparar aquele erro em si mesma.

Vocês podem estar se perguntando como a contadora havia chegado ao ponto de estar sentada em uma cadeira na sala de espera de um consultório de psicologia, então irei contar tudo desde o começo. Se acomodem, e cuidado para não perder nenhum detalhe.

Gizelly nasceu no interior de São Paulo, na cidade de Borá. O município é o menor do Estado e o segundo menos populoso do país, então não se assuste se o nome não for familiar. A morena teve uma primeira infância humilde e típica de cidade pequena. Suas lembranças de infância se resumiam em passeios na praça principal da cidade com seus pais, que sempre lhe compravam algodão doce do moço que costumava frequentar ali, e das missas que iam todo domingo. Eles não tinham muito dinheiro, mas por ser filha única nunca lhe faltou nada – principalmente amor. Foi uma fase feliz.

Porém seus dias de inocência acabaram pouco antes da menina fazer oito anos, com a morte de seu pai. Na época Gizelly não entendia muito bem o porquê de seu pai não estar mais ali, ou o porquê de sua mãe chorar baixinho a noite, porém com o passar dos meses ela foi entendendo o que acontecia ao seu redor. Sua mãe havia escolhido lhe poupar de uma explicação realista, mas o tiro saiu pela culatra já que a menina acabou descobrindo por conta própria a dor e o peso da morte, e esse é um fardo pesado demais para uma criança se carregar.

A sorte da contadora foi ter achado um lugar em que esquecia do caos. Ir a igreja foi o único hábito que a morte de seu pai não havia mudado, e foi lá, sob o teto colorido e entre as apertadas paredes da igreja matriz de Santo Antônio, que a menina encontrou um lugar de acolhimento. Os domingos eram os únicos dias da semana que sua mãe não chorava ou se isolava, e a constatação de tal fato fez a menina assimilar a religião à alegria. Ela via sua mãe se recompor nas missas, via nela traços da mulher que conheceu antes da perda do pai, e por isso começou a gostar de ir para o lugar. Com o tempo, o sentimento bom de estar lá também começou a envolve-la, e com o passar dos anos foi se envolvendo mais e mais na comunidade. Gizelly se tornou coroinha aos dez anos e aos doze entrou para o ministério liturgia, sendo assim a pessoa mais nova a fazer parte da realização das missas. A igreja era sua casa, e Deus seu conforto.

A contadora se sentia mais próxima de seu pai ao estar ali, aos pés do altar, do que quando ia visitar seu túmulo no cemitério.

A aproximação da igreja também havia feito Gizelly se aproximar ainda mais de sua mãe. Como eram só as duas, elas passavam todo o tempo grudadas. A morte do pai havia feito a morena amadurecer muito rápido, então ela e sua mãe se tornaram confidentes. Falavam sobre tudo, eram totalmente sinceras uma com a outra e estavam sempre demonstrando o quanto se amavam. Se a igreja era o porto seguro de Gizelly, dona Márcia era sua embarcação.

Quando concluiu o ensino médio, a mulher conseguiu vaga na Universidade de São Paulo e, após um apoio monetário das pessoas da igreja e de sua família, conseguiu bancar um apartamento na república da cidade universitária. Sempre que podia Gizelly viajava para Borá, e sempre tinha a sensação de nunca ter deixado o lugar. A cidade ia ficando mais desbotada e as pessoas com mais cabelos grisalhos a cada visita, de fato, mas esses eram detalhes que a universitária preferia ignorar. Os anos de faculdade passaram voando e logo ela estava de volta a sua cidade natal.

Durante seus anos na capital a paulista conheceu muitas pessoas novas, com culturas e criações diferentes, e o choque inicial foi grande. Uma das primeiras coisas que ela percebeu em São Paulo foi que as pessoas não davam muito valor a igreja, não como em sua cidade, até porque no curso que ela fazia a maioria de seus colegas de turma eram agnósticos. A contadora não havia conhecido ateístas antes da faculdade. Ela achava o modo de vida paulistano estranho, e foi muito julgada por ser mais reservada durante seus anos na república. Ela não gostava de sair para beber, ou ir em festas como os outros universitários que moravam ali. Em fato, ela focava nos estudos durante a semana e ia à missa aos domingos, nada muito fora desse cronograma. Aquele era o único estilo de vida que ela conhecia, então por que mudar?

Ela havia pego algumas coisas da cultura paulistana, como o sotaque da capital e as roupas, porém não havia mudado muito num geral. Ainda era a Gizelly do interior, a única diferença é que agora estava nos seus vinte e poucos anos e tinha um diploma na mão.

Na verdade havia mais uma mudança, mas essa ela tentava abafar e nunca deixava transparecer. No tempo que passou na universidade, a contadora acabou começando a sentir-se atraída por mulheres. Foi algo involuntário, porém ela estava convencida de que havia sido influenciada pelo ambiente que habitava. A morena esperava que, ao voltar para Borá, os sentimentos desaparecessem. Mas isso não aconteceu.

Após muito lutar contra o sentimento sozinha, a mulher resolveu abrir-se para a pessoa que mais confiava no mundo: sua mãe. A primeira reação de Márcia foi de incredulidade, em seguida veio o espanto, e então a indignação. Se questionou onde havia errado, com que más influências Gizelly havia andado e até mesmo se crucificou por ter deixado a filha ter ido estudar na capital. A contadora ouviu o monólogo da mãe calada, se fazendo os mesmos questionamentos. Onde ela havia errado? Por que ela gostava de mulheres? Por que as mocinhas dos filmes lhe chamavam mais atenção do que o herói musculoso?

Dias após o anúncio de sua atração por mulheres, dona Márcia ficou sabendo de uma terapia de conversão na cidade. Já havia ouvido falar sobre algo do tipo na televisão, porém não fazia ideia de que era algo acessível para ela. Ficou animadíssima.

A matriarca logo tratou de comentar a novidade com a filha. Gizelly teve um mal pressentimento quanto aquela história, porém aceitou a sugestão da mãe. Ela só queria se livrar daquilo o mais rápido possível. Após dizer a sua mãe que toparia, a mulher mais velha foi correndo providenciar o tratamento. Dias depois, Márcia apareceu com uma consulta marcada e um endereço para Gizelly. A contadora arregalou os olhos ao ver que o endereço era na capital, porém já estava feito e sabia que sua mãe não voltaria atrás. "Vai valer a pena", foram as palavras ditas por Márcia, e foram essas palavras que a contadora repetiu durante toda a viagem até São Paulo. A contadora havia arranjado um apartamento pequeno no Butantã e uma entrevista de emprego numa microempresa, tudo isso uma semana antes do início do tratamento.

E então lá estava ela, em frente a sala da psicologa que sua mãe havia contratado, aguardando pela primeira consulta. Estava nervosa, não poderia mentir, embora disfarçasse muito bem. A morena observava o ponteiro do relógio dar voltas e mais voltas, atenta a cada tique, contado os minutos para se distrair. Estava funcionando, mas ela não estava certa de que conseguiria usar aquilo como distração por muito mais tempo.

A porta finalmente se abre e uma mulher deixa o consultório com o nariz vermelho e os olhos inchados de chorar. A cena assusta a paulista que se encolhe na cadeira, questionando se havia tomado a decisão correta. Uma loira aparece na porta em seguida, abrindo um sorriso convidativo o chamando seu nome. O primeiro pensamento de Gizelly é uma anotação mental de quão atraente a médica era, e o segundo é uma prece pra que ela pare de ter tais pensamentos a respeito de mulheres o mais brevemente possível. A contadora respira fundo e se levanta, indo em direção a porta aberta para ela.

~//~

Voltei! :)

Espero que tenham gostado desse primeiro gostinho. Admito que estou um pouco nervosa porque essa fanfic tende a ser beeeem diferente da outra, mas espero que vocês curtam.

my favorite sinOnde histórias criam vida. Descubra agora