Água Ruim

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Vitória’s PoV:
Eu nunca vi alguém comer um simples pãozinho com tanto gosto. Ana Clara comeu quase um pão inteiro e depois reclamou de dor de barriga. Essa moça me desmonta de um jeito. É tão bom estar junto dela que quando estou longe, chega a doer. Toda vez que eu a vejo, sinto meu desejo crescer, toda vez que eu a encontro, me dá um arrepio.
Ontem à noite, perguntei à ela se podia dormir aqui. Me parecia tão certo e ainda bem que ela permitiu. Me ofereci para ir com ela até a aldeia Pedra da Lua. Conheço um atalho e chegaremos lá na metade do tempo.
O dia estava clareando, eu estava observando-a acordar e já pensando em um jeito de roubá-la pra mim, quando despertou e disse:
“-Bom dia, Vi, dormiu bem?”-Me perguntou com a carinha de sono e os olhinhos caídos.
“-Melhor noite de sono desde o acidente. Obrigada por me deixar ficar.”-Eu enfrentaria cinquenta exércitos só pra acordar todos os dias ao lado dela.
Levantei e fiz um café reforçado: o pão de milho, que Ana gosta, ovos fritos e um bule de café. O caminho seria longo e tortuoso. Pedra da Lua era de difícil acesso, mesmo indo pelo atalho. Levaríamos pelo menos quatro horas cavalgando até lá.
Ana organizou seus medicamentos na cela de Ventania (achei um belo nome, inclusive) e partimos para aldeia. No caminho, passamos por Corre Ventos e avisei mainha que não voltaria para casa hoje. Provavelmente, passaríamos a noite em Pedra da Lua.
Seguimos por mais três horas até que chegamos e fomos nos encontrar com Júlia, a líder da aldeia.
“-Bom dia, Júlia, vim acompanhando a Drª Caetano.”
“-Bom dia, meu nome é Júlia Pak, muito prazer, Drª Caetano. Obrigada por nos atender.”-Júlia se apresentou.
“-Prazer é meu! Então, eu gostaria de examinar os moradores da aldeia. Quais os sintomas, apresentados?”-Ana já foi direto ao ponto.
“-Estamos todos sentindo muita fraqueza, gengiva sangrando, dores abdominais, muitos enjôos e de ontem pra hoje, meu cabelo começou a cair, veja só.”-Puxou uma mecha de seu cabelo e saiu boa parte dela em sua mão.
“-Puxa, vou precisar investigar a aldeia mas parece algum tipo de envenenamento.”-Ana falou com a mão no queixo, pensativa. “-Vem, Vitória, vamos conversar com os moradores.”-Me puxou pela mão e fomos em direção ao centro da aldeia.
Durante as conversas com os moradores, eram sempre os mesmos sintomas incluindo gosto de metal na boca em alguns casos. Ana ficava pensando com o rosto preocupado. Até que quebrou o silêncio:
“-É a água, Vitória, a água que abastece a aldeia tá ruim. Está envenenando as pessoas. Tu sabe onde fica o leito do rio?”- Me perguntou, já arrumando suas coisas. “-Mas antes, vou deixar uma receita de soro caseiro pra Júlia e orientar para que, se possível, não utilizem essa água por enquanto mas se precisarem usar, fervam antes de beber.”
Ana fez uma pequena reunião no centro da aldeia explicando sobre a água e deu alguns medicamentos aos moradores. Júlia se ofereceu para ir conosco até o leito do rio.
Chegando lá, Ana nos orientou:
“-Procurem por algo que pareça fora do comum.”-Eu não havia entendido mas logo percebi.
“-Aqui, Ana, tem uma pedra prateada dentro do rio.”-Ela veio com uma caneca feita de cobre na mão, esfregou o cobre na pedra e pediu:
“-Alguém tem uma moeda?”-Procurei no meu bolso e não encontrei nenhuma. Por sorte Júlia tinha uma.
“-A moeda tem níquel. Vou esfregar nessa parte prateada da caneca de cobre pra vermos a reação.”-Ana esfregou a moeda e separou a partícula do metal na caneca.
“-É mercúrio.”-Ana havia descoberto o que estava envenenando as pessoas da aldeia.
Ana quis saber se estava acontecendo algo diferente por esses lados da aldeia. Júlia respondeu:
“-Há alguns dias atrás, se instalaram próximo das montanhas, um grupo de garimpeiros. Vieram em busca de ouro.
“-Eles estão usando o mercúrio para identificarem mais rapidamente as partículas de ouro. O mercúrio adere nas micropartículas do ouro e o separa da água, aí eles conseguem enxergar com mais facilidade. O problema é que é um metal extremamente agressivo e pesado. Júlia, diga a sua tribo que não se alimente dos peixes desse rio, por enquanto. Vitória e eu vamos pegar amostras dessa água. Vamos começar por aqui e subir até onde estão os garimpeiros. A tendência é que a água fique mais contaminada. Preciso das amostras para mandar para análise e abrir um processo para que parem de envenenar o rio.”-Ana terminou a explicação e Júlia foi imediatamente avisar à sua gente.
Montamos nos cavalos e subimos o rio em direção ao garimpo. Pelo caminho encontramos algumas placas advertindo que se alguém invadisse a propriedade, levaria chumbo. Precisaríamos tomar muito cuidado, pois haveriam guardas armados por lá. Percorremos boa parte do rio e já estava anoitecendo quando avistamos um homem caído, encostado em uma árvore.
“-Vitória, tem uma pessoa caída ali.”-Ana desceu do cavalo e foi em direção ao homem. Ele estava morto.
“-Ana, tem uma garrafa perto dele.”-Apontei para o lado.
“-É aguardente. Acho que fizeram com a água do rio. Ele morreu envenenado.”-Disse Ana cheirando a garrafa. “-Vou levar para usar como evidência.
“-Olha, Ana, acho que já é hora de montarmos um acampamento. Já está escurecendo. Vamos procurar um lugar pra passar a noite.”-Falei e ela concordou.
Mandei os cavalos de volta para Pedra da Lua. À partir daquele momento, estávamos à pé e por nossa conta. Seria mais fácil de nos escondermos.
“-Tu vai acender uma fogueira?”-Me perguntou.
“-Não, seremos vistas se acendermos.”-Expliquei à ela.
“-É que tá ficando frio.”-Ela falou aquecendo os braços.
“-Deita aqui do meu lado.”-Chamei pra perto e ela não contestou.
Dormi abraçada à ela sentindo o perfume de seus cabelos.

Ana Clara’s PoV:
Amanheceu e não senti os braços de Vitória ao meu redor. Abri meus olhos e dei de cara com uma cascavel que me encarava. Não fiz nenhum movimento esperando que ela fosse embora.
Ela começou a se mexer e eu já ia gritar quando uma faca arremessada atravessou a cabeça da víbora. Ainda bem que Vitória não esqueceu de suas habilidades.
“-Vitória do céu, pensei que fosse morrer. Vamos pegar essas amostras de água de uma vez e voltar pra casa.”-Falei já arrumando as coisas para irmos.
“-Ana, eu lembrei de uma coisa, mas não tenho certeza se aconteceu ou foi sonho. Lembrei  de ti vestida com as roupas de Sabrina e lutando com Tâmara num ringue. Isso aconteceu mesmo?”-Quis saber.
“-Sim, tua mãe queria te casar á força com Tâmara. Não era tua vontade, então eu desafiei tua noiva para uma luta por tua liberdade.”-Lembrei com carinho daquela noite, foi muito especial pra mim.
“-E por que tu faria isso por mim?”-Me perguntou com sua boca à centímetros da minha.
“-É que eu...”-Ouvimos cavalos chegando e corremos para nos esconder atrás das árvores.
Eram alguns guardas da propriedade fazendo a ronda. Estavam armados e conversando alto. Passaram e não nos viram.
Continuamos caminhando pelo leito coletando amostras mas precisávamos atravessar para a outra margem e entramos rio à dentro. Naquela altura do rio, a água batia na cintura de Vitória e  quase no meu peito.
“-Ana, vem devagar por que pode ter alguma parte funda e tem uma pedra bem...”-Vitória atravessava na minha frente, pisando devagar e vendo onde dava pé quando alguém jogou uma dinamite que explodiu há poucos metros dela.
“-Vitória! Eu tô aqui!”-Fui andando dentro d’água, atravessando o rio, até ela e puxei seu corpo até a margem, perto de alguns aguapés para nos escondermos enquanto ela ainda estava desmaiada. Por sorte ela não se machucou pela explosão e logo voltou a si.
“-Ana, tu conseguiu ver os guardas?”-Me perguntou ainda com os olhos fechados.
“-Sim, eles já passaram por nós. Essas plantas aquáticas nos salvaram. Tu tá bem?”
“-Tô meio tonta pela explosão mas eu consigo andar. Acho que temos que subir aquele paredão de pedras lá. O início do rio é lá, tá vendo que ele vem descendo pela montanha?”-Apontou e me mostrou a água descendo pelo paredão.
Subimos vagarosamente e com muito cuidado. Era uma queda de vinte metros até o rio. Consegui pegar a última amostra da água e essa era a mais densa. As pedras estavam quase todas pintadas de prateado pela ação do mercúrio. Estava guardando o último frasco no coldre quando fomos surpreendidas por tiros.
“-Abaixa, Ana!”-Vitória correu me puxando pelas pedras tentando achar um lugar para nos escondermos. Dois homens armados corriam e atiravam em nossa direção. Não havia pra onde fugir. Estávamos na beira do penhasco e os homens se aproximavam com as armas engatilhadas, apontadas para nós. Era o fim da linha.
“-Vitória, eu não podia imaginar jeito melhor de morrer do que nos teus braços. Desculpa ter te colocado nessa situação. Eu te amo.”-Falei fitando seus olhos e acariciando seu rosto. Vitória pegou minha mão, deixou um beijo e depois beijou meus lábios.
“-Eu te além, Ninha.”-Me abraçou e saltou comigo do penhasco.

Dra. CaetanoOnde histórias criam vida. Descubra agora