Tá rindo de quê, Vitória?!

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Uma chuva torrencial começou do nada. Clima estranho aqui de Northfolk. Hoje não tinha nenhuma consulta e também não pretendia ir ao vilarejo. Precisava limpar a casa que estava totalmente empoeirada. Isso faria muito mal ao meu problema respiratório. Coloquei um avental, amarrei meu cabelo com um lenço e já ia começar a varrer quando ouvi fortes batidas na porta. Fiquei assutada.
“-Quem é?”-Perguntei segurando a vassoura como se fosse um bastão.
“-Vitória! Abre, Ana!”
Abri a porta e Vitória entrou com uma moça no colo. Estava toda ensanguentada e a moça desmaiada.
“-Vitória, o que aconteceu? O que foi isso?”
“-Flávia levou um tiro! Ajuda ela, por favor!” –Vitória disse em prantos.
“-Calma, coloca ela em cima da mesa.”- Joguei as coisas pro chão. “-Deixa ver onde tá a bala.”-Examinei com cuidado e vi que o projétil estava alojado no pescoço dela. “-Tá aqui, ó.” Mostrei pra Vitória, apalpando o pescoço da moça.
“-Pela Deusa, Ana! No pescoço? Dá pra tirar?”- Perguntou preocupada.
“-Dá sim. Vou pegar meus instrumentos e lavar as mãos. Te acalma, tá? Vou extrair a bala e olhar teu rosto. Tá sangrando muito.” –Vi que Vitória tinha um rasgo no supercílio.
Nesse meio tempo, a amazona acordou.
“-Vi...Vitória...onde...”- Vitória não deixou ela terminar.
“-Flávia! Te trouxe pra Drª Caetano. Ela vai tirar essa bala de ti. Logo tu vai pra casa!”- Mas a moça quis continuar:
“- Vitória..diz pra Bárbara... eu amo...”- Dessa vez fui eu que interrompi.
“-Moça, tente não falar agora. Fique calma. Tu mesma vai dizer pra Bárbara isso. Eu prometo.”- Peguei meu bisturi e desinfetei bem. Joguei álcool no ferimento e abri um corte cuidando pra não pegar nenhuma veia ou artéria do pescoço. Localizei visualmente a bala e a puxei com meu pequeno extrator. Peguei o kit de sutura e fechei a incisão. A moça era muito corajosa. Naquela situação eu não podia anestesiá-la e ela aguentou a dor bravamente. Terminei de fechar e ela dormiu.
Vitória estava sentada em minha cama, olhando pro nada, quando a tirei do transe.
“-Tua vez agora, moça. Deixa eu ver teu rosto.”-Ela tinha muito sangue pelo corpo todo. Acreditei ser de Flávia, mesmo assim perguntei. “-Tu tá machucada em mais algum lugar?”- Apenas negou com a cabeça.
Lavei minhas mãos e desinfetei. Lavei o rosto de Vitória com cuidado, limpando todo aquele sangue. Peguei o kit de sutura e comecei a costurar. “-Me conta o que aconteceu.”
“-Nós fomos caçar. Eu vi armadilhas pelo chão. Demorei muito pra raciocinar. Tava com a cabeça em outro lugar. Flávia levou um tiro. A culpa foi minha.”- Disse ela em meio a lágrimas.
“-Entendi. Vocês estavam caçando em terras que não eram suas?”-Perguntei.
“-Não. Estávamos nas nossas terras.”
“-Então por que tu acha que a culpa foi tua? Não tinha como tu saber. Tu quer sentir culpa, pode sentir mas o homem não deveria estar lá.”-Falei tentando acalmá-la. “-Ela vai ficar boa. Tem uma estrutura bastante forte. Vamos cuidar dela e logo vocês vão pra casa.”- Terminei os pontos e coloquei um curativo no local pra proteger. “-Deita, Vitória. Descansa que eu vou olhar Flávia.”
“-Não quero deitar, Ana. Posso te ajudar em alguma coisa?”- Percebi a tristeza na voz dela.
“-Bom, na verdade tu pode fazer um chá pra gente. O meu é horrível.” –Falei pra deixar o clima mais leve e deu certo. Vitória riu secando as lágrimas.
“-Vou fazer o melhor chá que tu já tomou na vida.”- Disse toda orgulhosa.
Enquanto ela se distraía, fui checar os sinais vitais de Flávia. Ascultei seu coração e examinei suas pupilas. Tudo em ordem. Ela logo acordaria.
Se passaram duas horas e Flávia recobrou seus sentidos.
“-Eu...eu...não tenho palavras pra lhe agradecer, doutora. Sinto que vou viver.”-Ela disse emocionada.
“-Não tem nada que agradecer. Fico feliz que tu tá bem. Mas não quero que tu fale por enquanto. Tu precisa repousar pro teu corpo se recuperar rápido.”
Foi quando escutamos um cavalo chegando. Vitória estava na janela e reconheceu a pessoa que chegara.
“-Mas não é possível!”-Disse Vitória se dirigindo até a porta. “-Por que tu veio aqui?” –Perguntou pra moça que estava entrando.
“-Vocês saíram pra uma caçada rápida e nunca mais voltaram. Mainha me mandou ir procurar vocês. O que aconteceu aqui? E por que essa mulher tá em nossa casa?”- A moça com raiva no olhar quis saber. Vitória respondeu:
“-Essa mulher tem nome. Se chama Ana Clara Caetano. Ela é médica. Flávia levou um tiro e eu a trouxe pra cá. Deixei que Ana ficasse aqui. Ninguém ocupa essa casa há anos, Sabra.”- Ah! O nome da moça é Sabra.
“-Vitória, como tu deixou isso acontecer com Flávia? Vou levá-la imediatamente pra aldeia. Vamos cuidar dela lá.”-Foi a minha vez de interferir.
“-Moça, a casa pode até ser tua, mas a paciente é minha. Ela só sai daqui quando eu disser que pode.”-Parei na frente de Sabra e a encarei nos olhos.
“-A branca é pequena mas tem coragem.”-Falou em tom de deboche.
“-A branca aqui tem nome. Drª Caetano, pra ti. E estatura não tem nada a ver com caráter ou coragem. E tu devia saber disso, já que é alta desse tamanho todo e egoísta.
Vi que Vitória estava num canto escondida, rindo de nós. Sabra também percebeu e falamos em uníssono olhando pra ela: “-Tá rindo de quê, Vitória?”-Olhei pra Sabra em seguida e vi que a expressão em seu rosto havia relaxado um pouco. Arrisquei uma trégua:
“-Tu quer tomar um chá? Foi Vitória que fez. Ela disse que é o melhor chá que ela ja fez na vida.”-perguntei oferencendo um momento de paz.
“-Vou aceitar, obrigada.”- Falou gentilmente.
A noite havia chegado. Flávia conseguiu sentar e até comer. Jantamos todas juntas. Vitória e Sabra cozinharam e me ajudaram na limpeza da casa. Ficou quase tudo limpo.
“-Bom, eu vou indo pra aldeia”-Disse Sabra. “-Preciso avisar Bárbara sobre o que aconteceu. Tu vem comigo, Vitória.”- Perguntou ela.
“-Vou ficar aqui, Sabra. Diz pra mainha não se preocupar. Amanhã eu volto e levo Flávia comigo, se a Drª Caetano permitir, é claro.”-Me olhou e piscou. Quase caí da cadeira.
Acompanhei Sabra até a porta e falei:
“-Muito obrigada por me deixar ficar e desculpe por invadir tua propriedade. Não é minha intenção causar briga em família.”-Falei sincera.
“-Obrigada por cuidar de Flávia e desculpe por te julgar sem te conhecer. Eu tava furiosa com Vitória e descontei em ti.”-Me estendeu a mão e disse: “-Não parta o coração de minha irmã. Ela é uma cabeça de vento mas eu a amo.”- Não entendi as palavras dela na hora, mas afirmei com a cabeça.
Fiquei na porta vendo Sabra subir em seu cavalo. Nossa! Por que essas amazonas são tão bonitas?

Dra. CaetanoOnde histórias criam vida. Descubra agora