Washita

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Nota da Autora: Vocês não estão preparadas...

Mais algum tempo se passou e a ferrovia de Northfolk continuava a ser construída com rapidez. Isso acarretou em muitas divergências com a aldeia Pedra da Lua. Os ânimos estavam se alterando a cada movimento impensado do governo em relação às índias. Paralelo à isso, Belle Star havia se entregue às autoridades de sua cidade e cumpriu pena durante alguns meses, sendo solta por bom comportamento. Ela voltou para Northfolk como havia prometido. Deixamos ela “morar’ em nosso celeiro enquanto não arruma um lugar para se estabelecer.
Isabelle ainda estava um pouco deslocada, sem saber bem em quê ia trabalhar, pois aqui na cidade, ninguém lhe contratava por causa de seu passado de fora da lei. Então, eu a levava comigo em todo atendimento que fazia para me auxiliar.
Aquele dia, acordamos cedo pois eu precisava ir até Pedra da Lua fazer alguns atendimentos e dar notícias de Vitória, que havia viajado para buscar alimentos que o governo destinava para a aldeia de Júlia e Nayara.
Eu estava atendendo uma anciã de Pedra da Lua, junto de Júlia Pak que traduzia o que eu pedia para a idosa:
“-Nuvem Dançando está se sentindo bem melhor.”-Júlia, referindo-se à senhora que eu estava atendendo, me disse enquanto eu alscultava seus pulmões.
“-Não encontro mais nenhum sinal de congestão em seus pulmões.”-Falei  terminando o exame.”-Pode pedir à ela que respire profundamente?”
Júlia traduziu o que pedi em sua língua e a velha anciã virou-se de frente para mim, coloquei o estetoscópio em seu peito e ela começou a respirar forte, soltando o ar pela boca. Senti um cheiro forte quando ela soltou o ar.
“-Que cheiro forte é esse, Júlia? Parece alho...” Falei intrigada.
“-É alho. Nayara dá os remédios que tu mandou junto com um chá de alho.”-Júlia me explicou.
“-Jura? Alho para os pulmões?”-Falei admirada.
A anciã fala algo em sua língua nativa que não compreeendi.
“-Ela disse que é forte como um urso pardo.”-Júlia traduziu. A anciã se levantou rapidamente do banquinho que estava sentada, ergueu seus braços mostrando os bíceps, me abraçou pela cintura e me ergueu do chão, sem aviso. Soltei um gritinho involuntário:
“-Nossa! Por favor Júlia, agradeça à Nuvem Dançando por essa demonstração incrível.”-Todas rimos.
A anciã me olhou nos olhos e disse algo que não entendi. Júlia logo traduziu:
“-Você deve ouvir sobre a medicina de Nayara. Você conhece a medicina enfeitada dos brancos, mas Nayara é sábia nas maneiras antigas.”-Julia falou.
“-Vou fazer isso. Muito obrigada.”- Fiz uma reverência, baixando minha cabeça para a anciã que me correspondeu fazendo o mesmo.
A velha senhora saiu da tenda onde estávamos e Júlia me pediu:
“-Dra. Caetano, a senhora poderia dar uma olhada em Nahoa? Ela tem chorado muito ultimamente.”-Júlia falou de sua filha com preocupação.
“Claro, Júlia. Vamos até sua tenda.”-Saímos dali e fomos direto ver Nahoa.
Chegamos em sua tenda e Belle estava com Nahoa em seus braços. A pequena dormia.
“-Júlia, me desculpe mas ela não parava de chorar. Eu entrei aqui e peguei-a no colo.”-Belle falou como se fosse culpada de alguma coisa e já foi entregando o bebê para Júlia.
“-Não precisa se desculpar por nada, bela moça. Eu que lhe agradeço por ter ninado minha pequena.”
“-Belle me traga ela aqui, vou examiná-la.”-Pedi à ela que me entregasse a pequena.
Fiz um exame rápido e vi que a pequena estava bem abaixo do peso para seu um ano de vida.
“-Bom, Júlia, acho que tu sabe bem o que ela tem. “-Entreguei a neném para Belle segurá-la:”-Ela tem o que quase todos da tua aldeia estão tendo: fome. Ela não tá ingerindo os alimentos corretos. Sua pele está seca, ela não está se desenvolvendo direito e...”-Precisei parar de falar pois Júlia começou a chorar.
“-Ela está morrendo de fome, doutora?”
“-Calma, Júlia, ela só não está comendo os nutrientes necessários. Vitória está no Forte Lyon tentando recuperar os suprimentos do governo e logo vai voltar. Até lá...talvez Nahoa possa ficar lá em casa, se você e Nayara permitirem, claro.”-Júlia me agradeceu com lágrimas em seus olhos. Isabelle fazia carinho nas pequenas bochechas de Nahoa que bocejava ainda dormindo em seus braços.
Nesse meio tempo, Nayara chegou e explicamos a situção à ela que concordou que levássemos sua pequena, e fazê-la ganhar peso. Júlia foi com Belle arrumar uma trouxinha de roupas da bebê para levarmos e fiquei conversando com Nayara:
“-Se tem alguém que pode trazer esses suprimetos de volta, é Vitória.”
“-Por que acha que agora vai ser diferente?”-Nayara quis saber.
“-Por que tenho esperaça que tudo vai se resolver.”-Falei sincera. Nayara me deu um abraço sincero.
“-Doutora, agora me lembrei, eu consegui as pedras que você me pediu. E lhe trouxe também, garras de falcão. Garras de falcão dão coragem para enfrentar o desconhecido.”
“-Obrigada, Nayara! São lindas!” -Eu havia pedido algumas pedras coloridas pois queria fazer um colar para dar à Vitória. As garras de falcão vão dar um destaque no colar. Espero que Vitória goste.
Eu estava admirando as garras e as pedras que Nayara me deu quando ouvimos tiros do lado de fora da tenda. Saímos correndo para ver do que se tratava:
“-São chayennes armadas?”-Perguntei estreitando os olhos para ver se reconhecia alguma das amazonas. Um grupo grande de índias armadas vinham à galope dando tiros para o alto.
“-Caetano, tu precisa ir agora.”-Nayara falou séria.
“-Nayara, tu tá permitindo que essas amazonas armadas venham aqui? Elas estão roubando rancheiros inocentes!”-Falei mas Nayara já sabia disso.
“-Elas estão alimentando nosso povo.”-Nayara virou suas costas e foi falar com as Chayennes. Belle e Júlia saíram com Nahoa de dentro da tenda para irmos embora:
“-Perdoe Nayara. Ela está envergonhada. Ela se sente responsável pelo que está acontecendo aqui na aldeia.”-Julia falou enquanto Belle subia com Nahoa em nossa carroça.
“-Vitória sente o mesmo, embora não tenha culpa de nada. Ela tem tentado de todas as maneiras estabelecer diálogo entre as índias e o governo.”- Suspirei e continuei:”-Júlia, tu aprova essas amazonas armadas aqui na tua aldeia?”
“-Matar não é um caminho para achar a paz. Nayara também acha isso.”
Me despedi de Júlia e partimos para casa.
Deixei Belle em casa com Nahoa e fui até a vila comprar algumas coisas no mercado. Já faziam alguns anos que não tinhamos um bebê em casa. Precisava comprar algumas coisas para ela.
“-Boa tarde, Jeff, preciso de uma mamadeira e de panos para fraldas.”-Jeff prontamente me atendeu, separando o que eu pedi. Eu estava pagando as compras quando Maro entrou no armazém com sua neném chorando: “-Oi, Maro! Achei que Samantha tinha parado de chorar.”-Há alguns dias atrás, Maro levou Samantha em meu consultório por que a menina não parava de chorar à noite. Ela e Vítor estavam há dias sem dormir. Orientei que ela tentasse deixá-la o maior tempo que conseguisse, acordada durante o dia para dormir à noite. A noite ela queria atenção, pois dormia demais durante o dia.
“-Sim, ela parou. Começou de novo agorinha.”
“-Hum...Parecem os dentinhos. Passa no meu consultório mais tarde que te darei algo pra passar nas gengivas dela.
“-Obrigada, Dra. Caetano.”-Maro agardeceu: “-Jeff, pode por favor me vender um quilo de feijão?”-Jeff, foi atendê-la. Guto e Manoela estavam sentados próximos do balcão lendo o jornal. Manoela falou:
“-Ah! Aqui está!”-Falou ajeitando-se na cadeira para ler a matéria em voz alta: “-A propriedade do Sr. Palmer, localizada à leste de Nortfolk, foi atacada nesta terça-feira por um grupo de Chayennes armadas...”
“-Eu sabia! As hostiliddes começaram de novo. Alguém se feriu?”-Guto quis saber.
“-Aqui diz que dois dos melhores touros foram roubados e mais metade dos cereais..ah, aqui diz também que seu celeiro foi destruido pelo fogo. Palmer se escondeu em seu porão durante o ataque selvagem. ‘Graças à Deus minha mulher e minha filha estavam em Southfolk. Essas índias sedentas por sangue queriam escalpelar à todos nós,’ ele disse.’ ”-Manu terminou de ler o artigo.
“-Me parece que estavam procurando por comida.”-Falei.
“-Incendiando o celeiro?”-Guto atacou.
“-Não fariam isso se o governo cumprisse a promessa de alimentá-las.”-Rebati.
“-Dra. Caetano! A senhora era a última pessoa que eu esperaria que defendesse um grupo de amazonas armadas!”-Manoela falou.
“-Não estou defendendo! Só estou...sugerindo que há mais por trás dessa história. Esse jornal apresenta um ponto de vista muito limitado. A maioria delas quer a paz. Só querem poder se alimentar e alimentarem suas famílias.”-Falei triste. “-Bem..preciso ir.” Ao sair com pressa do armazém, colidi com um homem que estava entrando no estabelecimento.
“-Desulpe! Eu estava com pressa...”-Quando ergui meus olhos, percebi sua farda do exército. Um homem alto, magro com a barba cerrada e medalhas de alta patente penduradas em seu uniforme, me olhou de um jeito malicioso:
“-Eu que peço desculpas! Perdão, senhorita.”-Pegou minha mão e deixou um beijo.”-Sou o general Mike Túlio Dantas. Vim com minha tropa para Northfolk à mando do governo federal para proteger essa cidade dos ataques das selvagens.”-Enquanto falava, olhava par meus lábios. Puxei minha mão de volta e apenas devolvi o cumprimento:
“-Sou a Dra. Caetano. Com licença que estou atrasada.”-Saí rapidamente dali pois aqueles olhares que ele me direcionava, me causavam calafrios. Ainda consegui ouvi-lo dizer:
“-Talvez esse território selvagem precise de mais civilidade do que pensei. Tenha um bom dia, Dra. Caetano!”-Falou alto para que eu pudesse ouvir.
Voltei para casa com as compras e quando cheguei, Belle já havia alimentado Nahoa enquanto Agnes preparava o café da tarde para os irmãos:
“-Belle, o que tu deu para ela comer?”
“-Eu fiz um mingau com leite e um pouco de maizena que tinha no armário. Espero que não se importe.”-Falou com a pequena em seu colo.
“-Claro que não me importo. Obrigada por alimentá-la. Esfriou bem o mingau antes de dar pra ela?”
“-Sim e ela comeu tudinho, né coisa linda?”-Belle falou e esfregou o nariz na bochecha de Nahoa que riu. “-Você vai crescer forte né, pequena? Tia Belle vai cuidar de ti.”-Dava pra ver que Belle se apegou muito à neném.
Estávamos todos á mesa, tomando café quando ouvimos um barulho na porta. Arthur levantou e foi correndo receber sua mãe que voltava de viagem:
“-Mãe! Que sudade!”-O pequeno se jogou em cima de Vitória.
“-Oxi, que recepção linda! Também tava com saudades, filho.”-Vitória beijou a cabeça do nosso garoto e foi deixando sua mala pelo chão.
“-Bem-vinda, esposa!”-Me levantei e fui em sua direção. Dei-lhe um beijo demorado dentro de um abraço.
“-Que saudade que eu tava de tu.”-Me disse com sua testa colada na minha. Deixou um beijo em minha cabeça e foi abraçar as filhas: “-Ué? É Nahoa no colo de Belle?”
“-Sim, Vi, eu  trouxe pra cuidarmos dela. Tá complicado lá em Pedra da Lua. E tu como foi lá conversando com o governo? Coseguiu os suprimentos?”-Preparei um chá e pães para ela. Vitória se sentou à mesa e seu rosto não tinha uma expressão muito boa:
“-Não consegui os suprimentos. Não chegaram e nem vão chegar. O exército quer que todas as tribos se mudem para o novo território índio pra que não ‘atrapalhe’ a construção da ferrovia”
“-Mas o lar delas é aqui! O que vai acontecer, Vi?”-Falei incrédula.
“-Não sei, Ninha. Sinceramente não sei o que fazer.”-Vitória nem tocou no pão. Apenas bebia o chá, preocupada.
“-Bem, também tenho más notícias. Chayennes armadas atacaram outro rancho e tem uma tropa do exército aqui na cidade.
“-Tá brincando, Ninha?”-Vitória perguntou com preocupação.
“-Quem dera eu tivesse. Deve ter um jeito de pararmos esses ataques das Chayennes.
“-Mas se Júlia e Nayara não conseguiram, não sei se conseguiremos. Amanhã vamos no armazém do Jeff comprar suprimentos para Pedra da Lua. ”-Minha esposa falou enquanto brincava com os dedos de minha mão. Ficamos observando Arthur tocando sua gaitinha de boca, Belle dançando animada com Nahoa e Agnes com Maria. De vez em quando, Belle corrigia Arthur quando errava algum acorde da música. Quem dera que todos os nossos dias fossem assim para sempre...
No dia seguinte, fomos até o mercado, como Vitória disse que faríamos. Estávamos carregando a carroça com os suprimentos e Tiago puxou assunto:
“-A última coisa que deveriam fazer, é alimentá-las.”-Falou e mordeu sua maçã.
“-Deveríamos honrar nossas promessas às nossas vizinhas de Pedra da Lua, isso sim. As terras são delas e elas não podem usar da maneira que querem. Se respeitássemos o espaço delas, essa luta já teria acabado.”- Agnes falou encarando Tiago.
“-Lutar é só o que essas selvagens sabem fazer. Vivem por isso.”-Tiago falou displiscente.
“-Em mais de uma ocasião essas ‘selvagens’ ajudaram a cidade. Aposto que essa camisa que tu tá vestindo veio de lá.”-Falei enquanto carregava os sacos de feijão para a carroça.
“-Uma índia é uma índia, Caetano. Não teremos paz por aqui enquanto...não estiverem mortas.”-Vitória virou-se e agarrou o pescoço de Tiago, empurrando contra a parede do mercado.
“-Talvez eu devesse te matar aqui e agora.”-Vitória com os olhos em brasa, segurou Tiago com uma mão e levou a outra até o coldre da machadinha. Corri e abracei-a pela cintura.
“-Pára, Vitória! Tiago é um imbecil! Não suja tuas mãos com ele. Solta ele por favor, Vi!”-Supliquei.
Vitória soltou Tiago que já estava quase roxo. Ele saiu xingando.
“-Jeff, me traga mais dois sacos de grãos e coloque na conta de Tiago, por favor.”-Vitória pediu e Jeff nem contestou.
Enchemos nossa carroça de comida e partimos para Pedra da Lua. Chegamos lá e Nayara e Júlia vieram nos receber enquanto as índias descarregavam os mantimentos:
“- Como está Nahoa? Nayara perguntou abraçando Vitória.
“-Está crescendo forte e saudável. Belle está ajudando a cuidar dela.”-Respondi.
“-Bom, ela nos faz muita falta. Mas que bom que ela está bem.”-Júlia veio me abraçar.
“-Trouxemos feijão, arroz, carne seca, farinha de milho e...”-Nayara me interrompeu olhando para os sacos de mantimentos.
“-Não tem os símbolos do governo aqui. Isso não veio do exército.”-Ela devolveu para a carroça. “-Por quanto tempo vocês acham que vão alimentar meu povo?”-Nayara perguntou revoltada.
“-O governo está mandando os suprimentos para o Forte Cobb agora. Querem que vocês se mudem para o sul.”-Vitória falou.
De repente ouvimos índias gritando e chorando. Uma delas trazia Nuvem Dançando em seu braços. Peguei minha maleta e corri até ela:
“-O que aconteceu?”-Nayara perguntou para uma das índias no meio da aglomeração.
“-Ela estava caçando perto do rio e os soldados atiraram.”-A índia que trouxe a anciã, falou.
“-Ana disse que o exército está na cidade. Um tal general Dantas trouxe um tropa para cá.”-Vitória comunicou à Nayara.
“-Dantas? Magro, alto e com cara de assassino? Já ouvimos falar dele. Ele tem fama de não gostar de índias. Eles vieram nos matar.”-Nayara agarrou seus amuletos em seu peito e fechou os olhos.
“-Nuvem Dançando está morta.”-Comuniquei após checar seus sinais vitais. Nayara me olhava. Seu olhar era perdido.
“-Está feito.”-Ela saiu em direção ao seu cavalo.
“-O que vai fazer, Nayara?”- Vitória a segurou pelo braço.
“-Vou ajudar meu povo do meu jeito agora.”-Falou se desvencilhando do agarrão de Vitória.
“-Se unindo à essas índias armadas? Esse é um caminho sem volta, Nayara! Por favor, fique aqui!”-Vitória suplicava enquanto Nayara subia em seu cavalo e empunhava um rifle que uma amazona lhe alcançou. “-Me escute, tu vai dar uma razão pro exército atacar.”-Vitória estava visivelmente preocupada mas Nayara não lhe ouviu.
“-O exército já tentou me matar uma vez. Não vou dar a chance para tentarem de novo. Vou matar esse general antes que ele me mate.” [N.A.: Nayara foi aprisionada e seria executada pelo exército no capítulo 12- A Prisioneira. Se tu não lembra, caminha lá ler de novo.]
As Chayennes gritavam e empunhavam seus rifles para cima. Vitória me abraçou de lado, vendo nossa amiga partindo.
Terminamos de descarregar os alimentos, nos despedimos de Júlia e voltamos para a vila por que eu ainda tinha alguns atendimentos à fazer. Vitória ficaria em casa, pois tínhamos um bebê e quatro crianças para cuidar.
Eu havia atendido meu último paciente e Manoela entrou em meu consultório:
“-Caetano, o general Mike Dantas me pediu para te entregar isso.”-Manu me entregou um envelope com o timbre do exército. Dentro continha um convite:
“-Com os cumprimentos do General Mike Túlio Dantas, comandante da sétima cavalaria do exército dos E.U.A., a honra de sua companhia e escolta é requerida...em um jantar? O que significa isso Manoela?”-Perguntei franzindo a testa.
“-O general convidou o conselho e todas as pessoas importantes da cidade.”-Manoela falou animada.
“-Pode dizer pra ele que eu recuso.”-Falei me levantando e guardando minhas coisas para ir para casa.
“-Ana Clara, o general só veio fazer seu trabalho. Ele merece nosso apoio.”-Manoela falou deslumbrada.
“-E que trabalho é esse?”-Perguntei cruzando meus braços sobre meu peito.
“-Proteger nossa comunidade e a ferrovia.”
“-Proteger? Tu sabia que os homens dele atiraram em uma anciã de Pedra da Lua pelas costas?”-Manoela me encarava incrédula.
“-Bem, Dra. Caetano, se tu não vai, diga ao general. Eu irei à essa reunião.”-Disse e foi embora.
Já estava anoitecendo quando cheguei em casa. Agnes e Arthur lavavam e secavam a louça, enquanto Vitória preparava a janta e alimentava Nahoa. Belle brincava no tapete com Maria.
“-Boa noite, minha família.”-Deixei minha maleta na cadeira e fui beijar minha esposa, Nahoa e, agora, meus quatro filhos.
Jantamos, Vitória e eu terminamos de lavar a louça enquanto Belle e Agnes colocavam as crianças para dormir. Preparei um chá e fui conversar com Vitória na varanda:
“-Agnes tá lendo uma história para as crianças. Só Belle tá acorada ouvindo. Dei uma espiada neles antes de vir pra cá.”-Falei entregando a xícara de chá pra minha esposa.
“- Eles tão cobertos? A noite tá um pouco fria.”-Ela falou e me puxou para mais perto de si.
“-Agora sim, tô aquecida.”-Me encostei nela que deixou um beijo em minha cabeça. Fiquei em silêncio por um tempo e ela me questionou.
“-No que tu tá pensando, Ninha?”-Falou bebendo seu chá.
“-É difícil de acreditar que Nayara se uniu à uma tribo armada. Seria como te ver...carregando uma arma de fogo...”-Vitória me puxou para um beijo. “-Júlia deve tá tão preocupada. Será que Nayara volta?”-Queria saber o que Vitória achava.
“-Com esse general Dantas por aqui, acho difícil que ela volte. Pelo que Nayara disse, esse homem é uma arma carregada pronta para disparar.”-Vitória suspirou e disse:”-Sabe, Ninha, talvez seja uma boa ideia tu ir nessa reunião que ele convidou...”
“-Tu acha que eu devia ir no jantar?”
“-Talvez alguém...persuasivo consiga fazer a cabeça dele.”-Vitória disse com esperança em sua voz. “-Ele convidou as pessoas influentes da cidade, Ninha, ele não está aqui só pra matar as índias. Ele quer que as pessoas concordem com isso. E tu é muito inteligente, Ninha, pode esclarecer as coisas e mostrar que ele tá errado.”-Vitória argumentou.
“-Não sei se eu consigo comer junto com o governo enquanto o povo de Júlia passa fome. Eu engasgaria...”
“-Tu tem razão, Ninha.”-Vitória suspirou.
“-Dantas não me ouviria.”
Naquela noite eu não consegui dormir. Fiquei deitada, observando o sono de Vitória e pensando em nossa conversa. Pensei muito e resolvi que iríamos naquele maldito jantar.
Na noite seguinte, fomos nos encontrar com o general, em seu acampamento. Jeff, Guto, Manoela e o Reverendo Simas já estavam à mesa. O general puxou a cadeira para eu sentar e ficou fitando Vitória com desdém:
“-Fico muito feliz que tenha mudado de ideia sobre meu convite, Dra. Caetano.”-Ele falou sarcástico.
“-Na verdade, espero que faça o mesmo essa noite, general.”-Falei e Vitória sentou-se ao meu lado.
“-Mudar de ideia? Estou intrigado.”-Ele disse juntando as mãos sobre a mesa.
Um garçon veio servir meu copo com vinho:
“-Não, obrigada.”-Neguei a bebida.
“-Vejo que temos algo em comum, Dra. Caetano.”-Dantas falou.
“-Está dizendo que não bebe?”-Guto perguntou.
“-Estou, senhor Oliveira, diferente de alguns amigos oficiais, acredito que bebida e guerra não se misturam.”-O general pegou uma coxa do peru que estava sendo servido e deu à seu cachorro, que estava à seu lado.
“-É o que está havendo, general? Guerra?”-Perguntei.
“-Ana Clara, não podemos apenas aproveitar o jantar?”-Manoela me censurou.
“-Está tudo bem, senhorita Gavassi, estou acostumado com discussões na capital e lhe asseguro que debater com uma bela dama é bem mais interessante.”
“-Não respondeu minha pergunta, general.”-Não me intimidei e continuei lhe pressionando. Ele bebeu um gole de sua água, me olhou e respondeu:
“-Não estamos em guerra com as índias, mas se elas se recusarem a agir de acordo com nossos tratados, devem sofrer as consequências.”-Um clima tenso pairou sobre a mesa do jantar. Reverendo Simas tentou mudar de assunto:
“-Puxa, que sopa boa. Desde os tempos do seminário que não tomava sopa de com frutos do mar.”- O reverendo tentou amenizar.
“-Elas já sofreram as consequências dos ‘nossos’ tratados, general! O seu cão come melhor que a tribo de Pedra da Lua.”-Continuei no assunto.
“-Por favor, tente entender Dra. Caetano, o governo quer alimentar as tribos que queiram paz, ao sul do rio, no Forte Cobb.”-Dantas respondeu confirmando que elas teriam que sair de sua aldeia.
“-Mas Nayara e Júlia querem paz. O governo prometeu que elas poderiam ficar no norte e caçar...”-O general me interrompeu.
“-O Tratado de Lodge não prometeu isso.”-Ele falou um tom mais alto, visivelmente irritado.
“-Prometeram verbalmente.”-Falei.
“-Eu estava lá e ouvi. Sou agente indígena.”-Vitória falou pela primeira vez.
“-Me parece que se uma promessa foi feita, é válida, não importa se foi escrita ou não.”-Reverendo Simas interveio.
Neste momento, um soldado entrou na tenda onde jantávamos:
“-Desculpe interromper, senhor, mas precisamos da doutora.”
“-O que aconteceu?”-Perguntei.
“-Trabalhadores da ferrovia foram atacados. Estão trazendo os feridos.”-O soldado respondeu.
“-Quem atacou, soldado?”-General Dantas questionou.
“-Um grupo de guerra indígena. Amazonas armadas.”-Olhei para Vitória que já se levantava para sair. Ela me pegou pela mão e corremos até o consultório. Já havia soldados carregando os feridos para a entrada da clínica.
“-Vitória preciso da minha maleta e de Agnes.”-Vitória montou em Ventania e foi buscar o que eu precisava enquanto acomodava os feridos nas macas livres.
Em alguns minutos, a clínica estava cheia de soldados e trabalhadores feridos:
“-Elas nos atacaram enquanto comíamos..nós estávamos desarmados.”-Um dos trabalhadores feridos me relatou enquanto eu limpava seu ferimento. Nesse momento, Agnes chegou, já desinfetando as mãos.
“-Mãe, em que posso ajudar?”
“-Preciso que retire a bala desse aqui. Só dê morfina se ele não suportar a dor.”-Ela prontamente pegou a pinça e me dirigi ao próximo ferido.
“-Elas atacaram a nossa tenda de comida. Tentamos impedir e..elas gritavam e atiravam...”-Outro trabalhador falava enquanto eu retirava a bala de seu braço.
A noite foi longa. Passamos madrugada à dentro retirando balas e suturando corpos. Felizmente, não tivemos nenhuma baixa. Mas isso não importava ao exército. Logo ao amanhecer, o general Mike Dantas tocou o sino, no centro da cidade, chamando os moradores para uma reunião:
“-Meus bons cidadãos, as Chayenne, todas as índias, são inimigas da nossa civilização.”-Um grupo grande de moradores ouvia-o atentamente.
“-Não estou gostando nada disso.”-Lucas falou parando ao meu lado, no meio da multidão.
“-Quem vai culpá-lo? Ele só quer impedir que ataquem nossa cidade.”-Maro falou com Samantha em seu colo.
“-Isso não vai acontecer, Maro.”-Tentei tranquilizá-la. Dantas continuava seu discurso:
“-Não podemos permitir que continuem com essa luta bárbara, sob qualquer pretexto que aleguem.”-Os moradores aplaudiam o general.
“-Dra. Caetano, precisamos parar com isso.”-o Reverendo Simas correu em minha direção.
“-Eu concordo.”-Respondi ao reverendo. Dantas continuava seu discurso:
“-Eu posso lhes assegurar que usarei todo meu poder para impedir que ataquem essa cidade.”-Ele foi ovacionado em uma grande salva de palmas.
“-Por favor, gente, nos escutem!”-Gritei chegando perto do General.
“-Por favor, parem! As Chayenne não são nossas inimigas.”-Reverendo Simas gritou pedindo atenção.
“-Esse ataque foi feito por um grupo pequeno e isolado de amazonas.  O exército sabe que Pedra da Lua quer paz.”-Falei me direcionando ao general.
“-O que o exército sabe, doutora, é que os sete homens feridos em sua clínica, foram atacados por suas ‘pacíficas’ Chayenne.”-Dantas falou com sarcasmo.
“-Elas só querem viver nas terras delas. Elas não querem lutar.”-Falei me dirigindo à população.
“-Ela tem razão, conheci boas índias. Cuidaram do meu cavalo quando ele fugiu de mim. Nem todas causam problemas. Concordo com Caetano.”-Jeff falou.
“-E eu concordo com meu oficial de comando, uma boa índia..é uma índia morta.”-Dantas encerrou assim seu discurso, aplaudido por alguns e marchou com sua tropa de volta ao seu acampamento.

Vitória’s PoV:
Deixei Agnes com Ana Clara e voltei para casa. No outro dia bem cedo eu iria procurar Nayara. A situação estava fora de controle.
Bem cedo, antes do dia clarear, entrei no celeiro e encilhei Trovão e parti para a floresta atrás de Nayara.
Depois de algumas horas, atravessando  a planície, cruzei o Rio do Urso e ao longe, avistei o grupo de amazonas. Nayara estava com elas:
“-Se arrisca muito vindo aqui.”-Nayara falou. Estava com sua maquiagem de guerra e empunhava um rifle.
“-Preciso falar contigo, Nay.”-Falei erguendo minhas mãos, mostrando que vim em paz. Ela acentiu com a cabeça e pediu para as amazonas nos deixarem à sós.
“-Por que tu veio aqui, Vitória?”-Nayara falou seca enquanto caminhávamos pela floresta.
“-Vim falar sobre os ataques que vocês estão fazendo. Nayara, tu é uma curandeira! Tu não machuca as pessoas! Tu acha que a Deusa aprova isso que tu tá fazendo?”-Apelei para a fé que ela tinha.
“-Quando eu era menina, eu podia andar dias que só veria nosso povo. Podíamos caçar quando quiséssemos. Os búfalos eram tantos quanto as pedras desse riacho. Eles podiam encher um vale até onde a vista podia alcançar. Agora...nos dizem onde devemos montar nossas tendas, onde podemos caçar e o que devemos comer...e se não fizermos isso, eles nos matam. Não venha colocar a Deusa no meio disse, Vitória. Ela não tem nada à ver com isso..”-Nayara falou com pesar em sua voz.
“-Eu entendo tua revolta, Nayara. Eu sei o que Pedra da Lua tem perdido. Mas realmente não sei o que tu acha que vai acontecer se vocês continuarem atacando gente inocente. Se os brancos quiserem aquele lugar, vocês não terão chance. Abra os olhos, Nayara!”
“-Então tu acha que não devo lutar? Por que é impossível? Minha irmã, é isso que tu faria se tivesse acontecendo com Corre Ventos?”-Nayara me deu fatos que eu não tinha como argumentar.
“-E quando a guerra explodir? O que vai acontecer com as crianças e com as idosas?”
“-Prometeram proteção para meu povo no Forte Cobb. Essa noite, Júlia reunirá a tribo e partirão para o sul. Lá elas estarão seguras.”-Nayara disse e fiquei um pouco aliviada.
“-Tu acha seguro levar Nahoa? Podemos ficar com ela por mais tempo, se vocês permitirem.”
“-Júlia vai levá-la. Lá estarão seguras e terá os alimentos que nosso povo precisa.”-Nayara falou esperançosa.
“-Levaremos Nahoa de volta para Pedra da Lua. Boa sorte, minha irmã. Que a Deusa te acompanhe em tua caminhada sempre. Ahow!”-Abracei Nayara com força.
“-Ahow!”
Naquele fim de tarde, Ana Clara, Belle, Nahoa e eu chegamos em Pedra da Lua. Júlia e as amazonas terminavam de arrumar suas coisas e desmontar suas tendas.
“-Dra. Caetano, eu gostaria de ir com Júlia. Eu poderia ajudar a cuidar de Nahoa e talvez, Júlia me ensine a fazer roupas. Eu gostaria de aprender uma profissão. Pra lá onde elas vão, posso ter uma chance e quando eu juntar um dinheiro, eu volto pra ficar com Agnes, se ela ainda quiser.”-Belle falou. 
“-Tem  certeza, Belle? Tu pode ficar lá em casa o tempo que tu precisar.”-Ana Clara disse.
“-Tenho certeza. Já falei com Agnes. Expliquei à ela que eu preciso achar um propósito pra minha vida. Pedi à ela que cuide de Caramelo enquanto eu estiver fora.”-Belle deu um abraço em Ninha e depois veio me abraçar forte e me agradeceu por tê-la acolhido. Senti uma pontada no peito. Parecia que não nos veríamos mais.
“-Belle, se tu precisar voltar, volte. Nossa casa estará sempre aberta pra ti.”-Falei abraçando-a.
“-Obrigada, Vitória.”-Se despediu e foi acomodar suas coisas na carroça de Júlia.
Logo, Júlia entregou Nahoa para Belle e veio se despedir de nós:
“-Vitória e Ana, vocês estiveram comigo durante muitas aflições. Quando contaminaram nosso rio, vocês se arriscaram e conseguiram nos ajudar e mesmo agora quando tudo parece incerto, vocês estão sempre ao meu lado. Não tenho como agradecer à vocês duas.”-Júlia estava emotiva. É difícil deixar toda sua história para trás e começar tudo outra vez. [N.A.: O rio de Pedra da Lua foi contaminado no capítulo 25-Água Ruim. Se tu não lembra, já sabe.]
“-Você também é uma boa amiga, Júlia! E nós vamos visitar vocês lá no sul. Talvez não com tanta frequência, mas vamos nos ver novamente.”-Ana falou abraçando Júlia.
Júlia abriu sua pequena bolsa e entregou me entregou um filtro do sonho:
“-Vitória, não é muito mas quero que fique com esse filtro. Eu fiz quando encontramos Nahoa e tem nos trazido muita felicidade. Vai trazer muitos sóis de felicidade à vocês também.”-Peguei o amuleto e aceitei de bom grado.
“-Nós vamos nos ver em breve, Júlia.”-Abracei-a e deixei um beijo em sua testa.
Nayara despediu-se de Júlia, dizendo que elas ficariam bem e seguras no Forte Cobb e trocaram juras de amor. Após a despedida, Nayara montou em seu cavalo e voltou para a floresta com o bando das Chayenne.
Puxei e abracei Ana Clara que não conseguia segurar a emoção e chorava ao ver Pedra da Lua partir.
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Dra. CaetanoOnde histórias criam vida. Descubra agora