O Pedido de Natal da Dra. Caetano

350 28 25
                                    

Não me matem...
🥀🥀🥀🥀🥀🥀🥀🥀🥀🥀🥀🥀🥀🥀

Acordei com uma dor de cabeça daquelas. Não lembro de ter ingerido álcool na noite anterior mas o gosto amargo na boca me dizia que sim. Ainda de olhos fechados, joguei meu braço para o lado e percebi que ela não estava na cama. Senti o cheiro do café passando e abri meus olhos lentamente, me espreguicei e em seguida levantei.
“-Bom dia, mãe.”-Dona Mônica já estava colocando os alimentos na mesa para o café.
“-Bom dia, minha filha, dormiu bem?”-Minha mãe perguntou servindo meu café.
“-Mais ou menos, acordei com dor de cabeça.”-Falei já comendo um pedaço de pão da minha mãe. “-Mãe, tu mudou a receita do pão? Tá com gosto diferente...”-Estranhei.
“-Não, fia, é o mesmo pão de sempre.”
“-Estranho. Deve ser meu paladar que amanheceu meio amargo.”-Falei pensativa.
“-Deve ter sido pela noite de ontem. Vocês saíram pra comemorar a tua nomeação para o prêmio de hoje e aposto que tu bebeu um tiquinho à mais.”-Minha mãe falou sorrindo. “-Tenho tanto orgulho de ti, minha filha, recebendo um prêmio desses de Medicina, nesse meio tão machista. Isso é algo realmente grande.”-Minha mãe guardava todos os recortes de jornais que saíam com matérias à meu respeito. De fato eu, embora tivesse pouca idade e fosse mulher, me destacava no meio da medicina.
“-Não lembro de ter bebido, mãe. O engraçado é que não lembro da noite de ontem.”-Falei preocupada.
“-Ah, filha, deve ser porque tu bebeu demais.”-Enquanto conversávamos, ouvimos uma batida na porta.
“-Filha, vai atender. Deve ser tua noiva vindo te buscar pra vocês irem comprar as alianças. Vou chamar Edmilson pra ir com vocês. E vão de uma vez que hoje é véspera de Natal e o comércio fecha cedo.”-Me levantei e fui atender a porta.
“-Oi, meu amor! Bom dia, linda!”-Letícia entrou e me deu um beijo no rosto. “-Dormiu bem?”-Por que tá todo mundo me perguntando isso? Algo me irritava profundamente.
“-Não muito. Já vou me arrumar para irmos à joalheria.”-Minha cabeça estava pesada e eu senti um enjôo no estômago. Algo não estava me caindo bem.
Saímos nós três, meu pai, Letícia e eu para a joalheria escolhermos nossas alianças. Nos casaríamos  logo depois do Natal e nos mudaríamos para Westfolk onde Letícia havia conseguido a vaga de neuro cirurgiã num hospital de renome. Eu também consegui uma vaga de pesquisadora lá. Vou trabalhar com análises clínicas e pesquisas científicas. Teremos uma vida confortável e com até, certo luxo.
Meu pai e Letícia entraram na joalheria enquanto eu fiquei olhando a vitrine do lado de fora. Engraçado que tenho a sensação de ter vindo aqui antes. Estava observando as jóias quando de repente, vi através do reflexo da vitrine, uma moça cacheada passar atrás de mim. Me virei rapidamente e tive a sensação que já a conhecia.
“-Ei, moça!”-Corri atrás dela, chamando-a.
Ela virou-se e meu coração acelerou, minhas mãos suavam frio e minha boca secou.
“-Mo-moça...eu lhe conheço de algum lugar?”-Gaguejei. Ela me deu um sorriso de canto que fez minhas pernas bambearem. “-Qua-qual teu nome?”-Perguntei.
Ela apenas sorriu e balançou a cabeça em negação. Contornou meu rosto com as pontas de seus dedos e foi como se um calor familiar subisse pelo meu corpo todo. O que estava acontecendo comigo? Fechei meus olhos, aproveitando a sensação de seus carinhos e quando abri novamente, ela havia ido embora. Fiquei alí parada, no meio da rua, sem saber o que fazer quando fui tirada de meus devaneios por meu pai, me puxando pelo braço.
“-Ana Clara, o que tu tá fazendo parada no meio da rua? Pode ser atropelada por uma charrete.”-Meu pai falou preocupado. “-Aconteceu alguma coisa? Tu saiu correndo da joalheria.
“-Pai, acho melhor comprarmos as alianças uma outra hora. Não estou me sentindo bem, quero ir pra casa.”-Terminei de falar e lágrimas desciam lavando meu rosto inteiro.
“-Filha, o que houve?”-Meu pai perguntou preocupado.
“-Não sei, pai, não me sinto bem. Tô com uma angústia no peito. Me leva pra casa, por favor.”-Pedi e abracei meu pai.
Chegamos em casa e minha mãe estava preocupada com meu estado deplorável.
“-Edmilson, o que aconteceu com Ana Clara?”-Minha mãe veio até mim desesperada.
“-Nada mãe, preciso deitar um pouco só.”-Falei enxugando minhas lágrimas.
“-Como nada? Tu e Letícia brigaram, foi?”-Ah! Esqueci Letícia na joalheria.
“-Não, mãe, mas não posso me casar com Letícia.”-Falei calmamente.
“-Filha, deita e descansa. Tu deve tá muito cansada pelo excesso de trabalho e nervosa pelo casamento. Dorme um pouco por que mais tarde tu tem que ir lá receber teu prêmio da medicina, Aninha.”-Segui o conselho de minha mãe e fui para meu quarto.
Deitada em minha cama vazia, fechei meus olhos e um perfume de flores do campo invadiu o quarto, entrando em minhas narinas e levando meus pensamentos para uma bela moça cacheada, montada em um cavalo, galopando ao vento e o nome “Vitória” veio em minha cabeça.
“-Ana Clara...”-Ouvi uma voz rouca me chamando. Abri meus olhos, vesti um casaco e desci as escadas correndo. Saí porta à fora descalça e sem rumo, apenas gritava seu nome.
“-VITÓRIA!”- Quem é você e por que eu tinha essa necessicade de vê-la? Por que meu peito gritava seu nome?
Ela estava sentada em um banco, próximo ao mercadinho aqui perto de casa. Corri até ela.
“-Vitória! Teu nome é Vitória, né?!”- Perguntei ofegante pela corrida que fiz. Ela me acenou que sim com a cabeça.
“-Vitória, hoje vou receber um prêmio bem importante, sabia? Sei que é estranho, mas tu quer ir comigo? Quero muito conversar contigo. Eu acho que já te vi em algum lugar.”-Perguntei segurando suas mãos e ela negou com a cabeça.
“-Vitória, por favor, vai comigo na premiação.”- Supliquei. Ela passou a mão em seu braço e balançou a cabeça. “-Não vai por causa da cor da tua pele?”-Perguntei e ela afirmou com a cabeça. “-Mas tu é minha convidada! Eles tem que te deixar entrar!”-Esbravejei.
“-Ana Clara...”-Disse sorrindo, com a voz rouca que invadiu meus pensamentos, colocando uma mecha de meu cabelo atrás da minha orelha. Se levantou e ia saindo.
“-Por favor, Vitória, não vá! Fique aqui comigo!”-Peguei em seu braço implorando: ”- Eu te procuro, eu só sei te procurar. Eu vejo seu nome nas coisas, eu sinto seu cheiro na rua. Eu tô sentindo um vazio tão grande dentro de mim.”-Abri meu coração e Letícia chegou:
“-Ana Clara, o que você está fazendo aqui? Temos que sair para a premiação em trinta minutos.”-Letícia me chamou e quando virei para Vitória novamente, ela havia ido embora.
“-Letícia! Olha o que tu fez! Perdi Vitória de novo!”-Falei aos berros.
“-Vitória? Mas não tinha ninguém aí com você. Tá se sentindo bem, Ana?”-Veio colocando a mão em minha testa.
“-Sai, não me toca! Não quero prêmio nenhum! Quero achar Vitória!”-Voltei para casa com Letícia em meu encalço.
Entrei batendo a porta e Letícia começou:
“-Ana Clara, presta atenção e se acalme, Vitória não pode estar aqui.”
“-Como não? Eu a vi! Preciso achá-la.”
“-Ana, o médico que te atendeu na época falou que isso poderia acontecer. Eu vou te lembrar o que aconteceu: o exército americano invadiu Corre-Ventos dizimando a aldeia. Vitória tentou proteger a mãe e as irmãs mas foi alvejada por muitos tiros. Tu fez tudo que pôde, meu amor, mas ela morreu nos teus braços. Você tá sofrendo de estresse pós traumático de novo.” -Letícia acabou de falar e eu saí fora de mim.
“-Cala essa boca, Letícia! Não diga bobagens! Nunca mais fale isso!”- As lágrimas não paravam de descer dos meus olhos e uma dor aguda em meu peito de repente trouxe alguns fragmentos em  minha memória: os sorrisos, abraços e olhares de Vitória se fizeram presente em mim, junto com as risadas das crianças. Lembrei do nosso casamento, do parto de Maria numa casa em chamas e Vitória saindo de uma casa que desabava com nossos dois filhos.
“-Que gritaria é essa, filha, o que tá acontecendo contigo, Ana Clara?”-Minha mãe veio saber.
“-Mãe, meus filhos estão perdidos por aí! Eu tenho que achar Vitória e as crianças e voltar para casa!”-Falei e peguei meu casaco para sair.
“-Filha, não é melhor irmos ao médico? Tu não tá bem, Ana.”-Minha mãe disse chorando.
“-Mãe, essa não é minha vida. Me desculpe por não ir receber aquele prêmio. Preciso voltar para Vitória e meus filhos.”-Deixei um beijo no rosto de minha mãe e saí porta à fora.
Corri sem rumo pelas ruas de Southfolk, sem saber pra onde iria ou onde acharia quem eu procurava e enquanto corria, rezava baixinho pedindo que minha família estivesse bem.
Cansada de dar voltas na cidade, parei em frente a joalheria e lembrei do dia que compramos nossas alianças. Foi uma semana antes do nosso casamento.  O sino da igreja soava as doze badaladas mostrando que já era dia vinte e cinco de dezembro. Colei minha testa no vidro e fiz meu pedido de Natal:
“-Por favor, eu quero minha vida de volta...”
Nesse momento, senti uma mão acariciando meus cabelos. Me virei e era minha pessoa. Grudei num abraço.
“-Vitória, por favor me diz que tu é real e que eu não tô ficando louca. Minha mãe quer me levar pro hospício. Precisamos achar nossos filhos, acho que eles tão perdidos pela cidade. Vamos, Vitória.”-Saí puxando-a pela mão quando ela me parou, me puxou para um abraço, colou sua testa na minha e disse:
“-Ninha, abra os olhos.”
...
Acordei com um cheiro maravilhoso de comida e com o som de crianças rindo na sala. Me levantei num salto e corri para a cozinha.
As crianças estavam sentadas no tapete. Agnes dava um caldinho de legumes para Maria e Arthur ao seu lado, olhava seu livro enquanto Vitória mexia nas panelas.
“-Mas olha quem acordou. Boa noite, Dra. Caetano.”-Vitória me falou sorrindo.
Não consegui me segurar. Corri até ela e pulei no seu colo, entrelaçando minhas pernas em sua cintura.
“-Eu te escolheria mais milhões de vidas. Te amo, minha amazona.”-Falei em seu ouvido.
“-Também te amo, amor. Mas o que aconteceu, Ninha? Teu rosto tá molhado, tu chorou? Teve um sonho ruim?”- Me perguntou segurando minhas pernas para eu não cair.
“-Por quanto tempo eu dormi? Por que não me acordou?”
“-Mas eu te chamei três vezes, Ninha. Tu passou a magrugada cuidando de Maria que tava com febre por causa dos dentinhos e ainda foi estudar depois do almoço só que dormiu em cima dos livros. Te carreguei pra cama. Tu dormiu umas seis horas só.”-Me falou e deixou um beijo em meu rosto e continuou: “-Tu quer descer do meu colo agora? Tenho que terminar de cozinhar a ceia porque daqui a pouco minha mãe e as meninas vão chegar.”
“-Posso ficar mais um pouco?”-Pedi com a cabeça encaixada na curva do seu ombro.
“-Pode e eu espero que tu tenha descansado porque vou te deixar acordada essa madrugada, depois que todo mundo for embora.”-Falou sussurando em meu ouvido, deu uma mordiscada em meu lóbulo da orelha e senti meu ventre contrair.
Arthur mostrou alguma coisa para Agnes no seu livro de ilustrações de animais e a pequena gargalhou:
“-É bem parecido mesmo, Arthur.”-Agnes disse em meio à crise de riso.
“-Do que vocês tão rindo aí?”-Perguntei e Arthur virou o livro para mim. Era a foto de um bicho preguiça enroscado em uma árvore.
“-Aé? Quer dizer que eu sou esse bicho preguiça aí?”- Ele ria e acenava que “sim” com a cabeça.
“-E eu sou essa árvore aí?”-Vitória perguntou e ele confirmou em meio as risadas de Agnes.
“-Aé, sou um bicho preguiça, né?”-Desci do colo de Vitória e corri para pegá-lo. Ele se levantou e começou a correr pela sala e foi capturado por Vitória.
“-Peguei ele, Ninha.”-Vitória sorriu.
“-Agora tu me paga!”-Comecei a fazer cócegas na barriga dele onde é seu ponto fraco. Ele gargalhava sem parar.
“-Pára, mainha...pára...eu vou fazer xixi na calça...”-Arthur falava em meio as risadas.
“-Vai no banheiro então. Vou te liberar essa vez.”-Falei e ele disparou correndo.
Me deitei no tapete, ao lado de Agnes e Maria e puxei as duas pra dentro do meu abraço.
“-Eu amo muito vocês. “-Deixei muitos beijos nos rostos das minhas duas meninas.
Vitória veio deitar-se ao nosso lado e me trouxe um envelope.
“-Óia, Ninha, chegou isso pra ti hoje.”-Avisou me entregando o telegrama. Abri e comecei a ler.
“-Cara Dra. Caetano, a Academia de Medicina de Westfolk tem a honra de convidá-la à receber o prêmio de Excelência em Medicina. A cerimônia será realizada no dia..”-Nem terminei de ler e rasguei o convite.
“-Ninha, por que tu rasgou teu convite? É um prêmio importante, não?”-Vitória perguntou incrédula.
“-Não vou a nenhum lugar onde não aceitem minha família. Esse tipo de prêmio não me interessa e além do mais, meu maior prêmio já tá aqui. A vida é muito boa com vocês.”-Beijei os lábios de minha esposa. Arthur veio e deitou-se entre nós. Vitória piscou pra mim e virou-se de lado, encarando Arthur.
“-Então quer dizer que eu sou uma árvore?”-Recomeçamos a sessão de cócegas no pequeno que ria sem parar. Maria e Agnes riam do desespero do irmão quando ouvimos alguém bater à nossa porta. Fui abrir e qual não foi minha surpresa:
“-Mãe! Pai! Luana!”-Meus pais e minha irmã vieram passar as festas conosco. Sem dúvida estar entre quem amamos era o maior prêmio de todos.
“-Espero que a gente não esteja atrapalhando vocês, mas nós estávamos ansiosos para ver nossos netos.”-Minha mãe falou me abraçando.
“-Mãe, vocês nunca atrapalham e que surpresa boa! Tô muito feliz!”-Todos entraram e apresentamos Agnes e Arthur aos avós. Vitória voltou para cozinha, para terminar a ceia e minha mãe quis auxiliá-la. Fiquei com meu pai, Luana e as crianças na sala.
Fui trocar de roupa enquanto Vitória preparava alguns petiscos para beliscármos. Esperávamos Dona Isabel e as irmãs de Vitória que também passariam o Natal conosco.
“-Ninha, conta pro teu pai a história do nosso Natal do ano passado.”-Vitória me disse colocando um pedaço de carne picada em minha boca.
“-Não sei se é uma história própria pra crianças, vida.”-Falei e dei um sorriso malicioso.
“-Não, né, abestada, tô falando do dia que as canibais me sequestraram e tu foi lá me salvar.”-Vitória replicou.
“-Que história é essa, minha filha?”- Meu pai falou se ajeitando na cadeira. As crianças e Luana se sentaram no tapete para ouvir a história e então comecei:
“-Bom, foi no Natal do ano passado. Fomos até Corre Ventos vacinar as crianças e passamos o dia na casa da vovó Isabel. Ela contou sobre quando encontrou a mãe Vi e as tias Sabra e AnaB e logo depois fomos até a casa de Vitória por que ela queria falar comigo em particular. Foi quando fomos atacadas por uma tribo de canibais que invadiram a aldeia atrás de Vitória...”-Papai, Luana, Agnes, Arthur e Maria escutavam atentamente minha história, o que veio a se repetir pelos próximos Natais.
Minha sogra e minhas cunhadas chegaram logo depois que terminei de contar a história e ceiamos todos juntos, contando histórias e conversando sobre as coisas banais mas que também tornam a vida interessante. Após a ceia, Vitória e minha mãe trouxeram as sobremesas e nos sentamos na sala. Agnes me pediu para contar outra história mas eu tive outra ideia. Fui até a estante e peguei o livro que Vitória havia me dado no Natal do ano passado, “Um Conto de Natal” de Charles Dickens. Entreguei à meu pai para ler para nós mas ele negou:
“-Não, filha, essa tradição agora é sua, estou pasando ela pra ti.”-Meu pai se sentou confortavelmente para ouvir. Me sentei em minha poltrona, limpei a garganta e comecei:
“-Capítulo1- O Fantasma de Marley: Pra começar a história, Marley estava morto. Não havia a menor dúvida quanto a isso. O atestado foi assinado pelo escrivão, pelo sacerdote, pelo agente funerário e pelo encarregado do enterro. Scrooge também assinou...”-Aquela foi mesmo uma noite feliz.

Nota da Autora: Enganei vocês? Kkkk Nem enganei nada.
Passando rapidinho pra dizer que tô postando Dra. Caetano no Spirit Fanfic. Quem tiver continha lá e quiser dar uma moralzinha pra fic, agradeço demais ;) Um beijo e ótimo final de semana à todas 😘

Dra. CaetanoOnde histórias criam vida. Descubra agora