O Incidente - Parte Final

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Vitória me arrastava pela vila, me puxando pela mão e estava furiosa:
“-Por que tu não disse nada?”-Me perguntou.
“-O que eu deveria dizer?”
“-Tu sempre tem um discurso pra tudo, porque se calou?”-Vitória falou visivelmente incomodada.
“-Mas a gente não sabe se foi o Guto mesmo que atirou.”-Falei calmamente.
“-É claro que foi, Ninha! Ele tá sempre bebendo e arrumando confusão.”-Disse minha esposa.
“-Mas isso é especulação, Vitória.”
“-Minhas amazonas disseram que ele atirou e eu acredito, elas não mentem.”-Vitória explicou.
“-Mas Vítor também não mente, Vitória. Ele não desmentiu a emboscada.”-Tentei fazer Vitória ver os dois lados da história.
“-Talvez ele estivesse confuso.”
“-Talvez tu esteja com raiva e tá te precipitando.”
“-Talvez tu não esteja pensando direito, por que eu tenho certeza que estou.”-Vitória me segurava pelo braço com força.
Enquanto discutíamos, uma carroça chegou trazendo uma mulher ferida com seus filhos. Corremos até minha clínica.
“-O que aconteceu com ela?”- Perguntei enquanto Vitória ajudava a tirá-la da carroça.
“- A casa dela foi incendiada pelas amazonas. Conseguimos tirá-la de lá com as crianças.
Vítor saiu de seu telégrafo e foi ver o que estava acontecendo, disse: “-Isso é terrível.”
Vitória, com a senhora nos braços, respondeu:
“-E vai ficar ainda pior.”
Entrei para atender a senhora e Vitória voltou para Corre ventos.

Vitória’s PoV:
Cheguei em Corre Ventos e os ânimos ainda estavam alterados. Chamei Sabra para conversar.
“-Sabra, nós precisamos parar essa guerra.”
“-Tá vendo ali naquele canto, aquelas duas crianças chorando abraçadas à avó? São as filhas de Gabriela. Nós queremos justiça.”-Sabra falou cheia de ódio nas palavras.
“-Justiça? Vocês incendiaram a casa de uma pessoa inocente. Poderia ser a minha mulher naquela situação.”-Tentei fazer Sabra entender a gravidade do assunto.
“-Medidas como essa são tomadas para causar temor e que esses brancos percebam que não estamos brincando. Queremos uma reparação.”-Sabra falava enquanto afiava a machadinha.
“-Queimar a casa de uma família inocente não é justiça, Sabra, tu sabe bem disso.”
“-Eles nos matam, mentem e isso se repete de novo e de novo. Isso nos causa uma grande fúria, Vitória. Não vamos ficar de braços cruzados.”-Sabra tentou justificar.
“-Eu sei, Sabra, tu não precisa me lembrar disso. Eu quero um tempo pra falar com Guto. Ele tem que assumir que matou uma das nossas.”-Falei pedindo um tempo à Sabra.
“-Quanto tempo?”- Minha irmã quis saber.
“-Mais um dia.”-Pedi à ela.
“-Não sei se posso atender.”-Sabra se levantou e foi em direção à avó das crianças, mãe da amazona assassinada.
Fui até a casa de minha mãe e pedi aos meus sogros que fossem lá pra casa e levassem Maria. A aldeia parecia que explodiria a qualquer momento. Eu tinha medo de algum possível ataque dos habitantes da vila em represália ao incêndio.
Chamei Trovão e voltei para vila, para tratar dos assuntos com Guto.
Cheguei na barbearia e ele estava bebendo, como de costume.
“-O que você quer? Barba você não tem. Talvez um corte de cabelo? Não, deixa eu adivinhar, veio retirar meu escalpo.”-Me falou debochado.
“-Eu vim conversar, Guto.”
“-Então fale rápido. Estou fechando a barbearia.”-Me falou estupidamente.
“-Esse incidente pode se tornar uma coisa grande.”-Tentei argumentar.
“-Isso não tem nada a ver comigo.”
“-Guto, isso não é uma briga entre duas pessoas. Essa briga vai além de territórios. Uma pessoa morreu, era mãe de duas crianças, tu sabia?”- Ele parecia nem se importar.
“-O que quer que eu faça?”-Me perguntou bebendo seu wisky.
“-Que você vá até Corre Ventos e converse com o Conselho das Amazonas. Peça desculpas e diga que está arrependido. Elas irão te julgar. É o justo a se fazer.”-Expliquei a ele.
“-Entendi. Você quer que eu vá até lá e diga que cometi um erro e peça desculpas.”-Guto pareceu entender.
“-Sim, é o certo a se fazer. Assuma sua culpa.”
“-Não! Eu não fiz nada!”-Bradou e jogou o copo no chão: “- E mesmo que tivesse feito, jamais pediria desculpas para aquelas selvagens.”-Senti um ódio que não posso descrever mas me mantive firme. Cheguei perto dele e falei:
“-Pense nisso. Mude sua mente.”
“-Saia do meu estabelecimento antes que eu comece agora esse incidente.”-Me falou limpando sua navalha.
Eu também poderia começar o incidente naquele momento, mas preferi me retirar. Estava com tanto ódio que poderia ter cometido uma besteira. Já estava anoitecendo e fui até a clínica buscar minha esposa.
Entrei na clínca e Ana estava trabalhando mas não havia mais pacientes. Minha cara não era das melhores.
“-O que aconteceu?”-Ana quis saber.
“-Fui falar com Guto, tentei convencê-lo a se entregar. Não obtive sucesso.”
“-Tenho certeza que tu fez o melhor que pôde, amor.”-Ninha se levantou e veio me abraçar.“-Desculpa por discutir contigo mais cedo. Eu quero que tu saiba que eu tô do teu lado, vida.”-Deixou um beijo em meus lábios.
“-Eu tenho tanto medo, Ninha. Elas estão enfurecidas e nem Sabra tá pensando direito. Isso de incendiar a casa de gente inocente pra servir de exemplo não é certo. Tenho medo que façam alguma coisa contigo só por causa da tua cor.”-Falei dentro de seu abraço e afagando seus cabelos.
“-E tua mãe, o que diz disso tudo?”-Ana quis saber.
“-Mainha deixou tudo sob responsabilidade de Sabra. Ela faz parte do Conselho das Amazonase não pode interferir.”-Falei contornando seu rosto com as pontas dos meus dedos. “-Vamos pra casa? Eu pedi à teus pais pra irem lá pra casa com Maria. Os ânimos na aldeia estão muito alterados.
Já estávamos saindo da clínica e Ana estava chaveando a porta quando vimos um grupo de amazonas, à cavalo, levando Guto, amarrado e amordaçado.
“-Ei! Parem!”-Gritei e corri mas não pude alcançá-las.
“-Meu Deus, Vitória! Elas sequestraram Guto!”-Ana exclamou horrorizada.
“-Não temos o que fazer por hoje, Ana. Amanhã vou para Corre Ventos interceder por Guto.
Fomos para casa e ainda bem que meus sogros estavam lá. Eu tava sem cabeça nenhuma para fazer a janta e cuidar de Maria. Fui deitar mas não consegui ficar na cama.
“-Onde tu vai, Vitória?”-Minha esposa quis saber.
“-Ninha, não posso ficar aqui sem fazer nada. Tô indo lá pra Corre Ventos agora.”-Já estava colocando o coldre com as machadinhas  quando Ana me parou.
“-Por favor, Vitória, não vai agora. Elas estão tão raivosas que são capazes de atirar em ti. Vai amanhã, amor.”-Ana falou me arrastando para a cama.
Minha esposa ficou acariciando meus cabelos até que adormeci.

Ana Clara’s PoV:
Vitória estava uma pilha de nervos e se mexeu a noite toda. Acordei cedo e fui preparar o café. Cheguei na cozinha e minha mãe já estava com Maria no colo e preparava o café.
“-Bom dia, mãe. Bom dia, meu bebê.”-Peguei Maria no colo e deixei vários beijinhos em suas bochechas. Ela ria.
“-Filha, que situação difícil essa que as amazonas estão passando, né? Pobre Vitória, fiquei com pena dela ontem.
“-Sim, mãe, é uma situação horrível. Vitória está tentando de tudo para que o pessoal da vila não chame o exército. Pode ocorrer o extermínio das amazonas caso isso aconteça.
“-Filha, agora vocês tem Maria. Como será daqui para frente? Vitória vai continuar lutando com as amazonas?”-Minha mãe me lembrou de algo que eu estava evitando pensar.
“-Não sei, mãe, não tivemos nem tempo de falar sobre isso ainda. Mas não quero obrigar Vitória a fazer nada que ela não queira. Ela deve decidir se quer permanecer na Tropa ou não.”-Falei tomando um gole de café.
Ouvi batidas fortes na porta. Era Vítor, desesperado.
“-Dra. Caetano, Tiago quer chamar o exército. Ele foi até o telégrafo para que eu mandasse uma mensagem ao Exército dos E.U.A para que viessem, por causa do sequestro. Eu dei uma desculpa que estava com problema no telégrafo e vim lhe avisar.”-Disse Vítor ofegante.
“-Calma, Vítor, entra e me conta com calma.”
Vitória havia acordado e veio ver o que estava acontecendo.
“-Vítor, me conta o que aconteceu no dia que vocês foram caçar. Guto atirou ou não em Gabriela?”-Vitória perguntou seriamente.
“-Foi um acidente. Nós ouvimos um barulho atrás da moita e Guto disse que a caça era dele. Ele atirou e só vimos que era uma amazona quando fomos buscar a caça. Por favor, me perdoe por não ter falado, Vitória, eu estava apavorado.”-Vítor falava aos prantos.
“-Vítor, eu não acredito que tu mentiu pra gente! Uma pessoa foi morta, por que tu não disse antes?”-Perguntei indignada. Eu discuti com minha mulher defendendo ele.
“-Eu fiquei com medo, me desculpem por favor...”-Vítor chorava igual criança.
“-Tu vai com a gente pra Corre Ventos agora.”-Vitória puxou Vítor pelo braço machucado e o colocou em Trovão. Eu montei no cavalo de Vítor e fui seguindo Vitória.
Chegamos na aldeia e Guto estava amarrado em um tronco, todo machucado e com as roupas rasgadas. Peguei um cantil e dei um pouco de água para ele. As amazonas não gostaram e vieram para cima de mim.
“-Ninguém toca na minha mulher!.”-Vitória gritou, se colocando na minha frente apontando a machadinha para as amazonas.
“-O que tu veio fazer aqui, Vitória? Casou com uma branca e mudou de lado? Pode voltar pra tua vida feliz.”-Sabra foi dura nas palavras.
“-Sabra, foi um acidente. Eu trouxe Vítor que testemunhou tudo. E não fale assim de Ana Clara. Tu sabe que ela só quer nos ajudar.”-Vitória tentou argumentar.
“-Foi um acidente, eu vi tudo. Achávamos que era uma caça. Não sabíamos que era uma pessoa.”-Vítor tentou explicar.
“-Mentiroso! Mentiu antes e está mentindo agora.”-Sabra estava cega pela ira.
“-Ele tentou encobrir antes, mas sim, foi um acidente. Acredite em mim.”-Vitória estava muito perto de Sabra e em determinado momento, pensei que elas fossem brigar fisicamente.
“-Chega! O Conselho já está reunido e vamos dar iníco ao julgamento desse assassino.”-Disse dona Isabel se aproximando das filhas.
Todos estavam reunidos no centro da aldeia. Algumas anciãs e dona Isabel faziam parte do Conselho das Amazonas. Eram elas que faziam as leis e determinavam as sentenças.
“-Líder Isabel, peço permissão para falar ao Conselho.”-Vitória pediu.
“-Permissão concedida. Prossiga, Capitã Vitória.”-Dona Isabel disse formalmente.
“-Eu tenho vivido entre os dois mundos, o mundo das amazonas e o mundo dos brancos. Me casei com uma branca e tenho uma filha mestiça. Quero que elas vivam em um mundo seguro e que minha filha cresça sem medo. Não quero que essa guerra aconteça.”-Vitória falou com verdade em suas palavras.
“-E de que lado você fica?”- Perguntou dona Isabel.
“-Fico do lado da verdade.”-Respondeu minha esposa.
“-É o único lugar em que um líder deve estar.”-Falou minha sogra.
“-Esse homem matou uma amazona por acidente, matem esse homem e o exército virá e exterminará toda uma raça de amazonas. Matem esse homem e isso trará mais violência, mais mortes para nossa aldeia.”-Vitória falou enfática.
“-Não se iluda, Vitória, a guerra está vindo.”-Disse Sabra.
“-Chega! O Conselho já decidiu.”- Dona Isabel disse se levantando de seu trono. “-Se não conversarmos e nos entendermos, nossa nação não mais existirá. O homem branco deverá pagar pelo que fez provendo o sustento da família da amazona que ele tirou a vida. Você dará à família dois cavalos e alimentos para que as crianças cresçam sem dificuldades.
Guto concordou com os termos do acordo e se comprometeu a dar o sustento das crianças.
Vitória me pegou pela mão e fomos até dona Isabel:
“-Mainha, eu não vou virar minhas costas para nossa tribo mas preciso viver minha vida. Quero que a senhora vá se acostumando a não me ver aqui com tanta frequência. Preciso ser uma mãe presente e cuidar bem de Maria.”-Vitória disse beijando a mão de sua mãe.
“-Vá, minha filha, cuide bem de minha neta. Não deixe que nada de mal aconteça à ela nem à minha nora.”-Dona Isabel veio me dar um abraço.
“-Sabra, tô indo. Minha casa está a tua disposição. Pode fazer o que quiser com ela.”-Vitória se despediu da irmã com uma abraço e um beijo. “-Vá lá em casa conhecer tua sobrinha, tu nem teve tempo de vê-la.”-Vitória falou dentro do abraço de sua irmã.
“-Uma amazona faz o que tem que fazer. Cuida bem delas e desculpa pelo que falei antes. Que a Deusa te acompanhe. Ahow!”-Sabra deixou um beijo na testa de Vitória e foi embora com AnaLu.
Nos despedimos da tribo e voltamos para nossa casa. Hoje aprendi um pouco mais sobre minha esposa mas as palavras de Sabra sobre a guerra estar próxima, ficaram martelando em minha cabeça.

Dra. CaetanoOnde histórias criam vida. Descubra agora