A Canção da Guerreira

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Resolvemos que passaríamos a noite em Pedra da Lua por serem muitas horas de cavalgada de volta e os caminhos eram pedregosos e perigosos. Júlia, a líder da aldeia, fez questão de nos mostrar o maior orgulho de sua aldeia: a manufatura de roupas. Elas costuravam lindos vestidos que eram comprados por comerciantes de várias cidades. Era uma aldeia muito próspera.
Júlia nos levou até seu ateliê particular. Parecia uma fábrica de sonhos.
“-Vi! Olha que lindos esses vestidos! Que coisa mais linda! Parecem que saíram de dentro de um sonho!”-Estava encantada com tantos modelos e cores. Todos em estilo vitoriano, as cinturas elegantes eram baixas e minúsculas abaixo de um busto cheio e baixo apoiado por um espartilho.
“-Esses eu mesma desenhei e estou confeccionando para a esposa de um lorde muito rico, da cidade de Westfolk.”-Disse Júlia Pak, orgulhosa de suas criações.
“-Quem sabe a Júlia faz teu vestido de noiva, Ninha.”-Vitória cochichou em meu ouvido.
“-Não, Vitória, deve ser muito caro. Olha que tecido bom.”-Mostrei apalpando o tecido.
“-Júlia, Ana Clara quer saber se tu faz pra ela um vestido de casamento.”-Vitória gritou aos quatro ventos.
“-Verdade, Ana? Tu vai casar? Não sabia que a doutora estava noiva.”-Júlia me perguntou me fazendo corar a face.
“-Estou noiva sim. Mas o casamento ainda vai demorar um pouco. Vou casar com uma rainha então preciso guardar um dinheirinho para o casamento.”-Falei olhando para Vitória.
“-Não acredito!”-Exclamou Júlia.”-Vocês duas vão se casar? Olha, sobrevivi para ver Vitória Falcão se amarrando à alguém.”-Cumprimentou pelo noivado nos abraçando e continuou: “-Precisamos comemorar. Vou mandar prepararem saladas, carnes e bebidas para festejarmos. E, Dra. Caetano, faço questão de lhe dar seu vestido.”-Eu queria pagar pelo vestido mas ela foi enfática em dizer que ficaria ofendida se eu não aceitasse o presente.
A noite correu muito animada. Vitória era muito querida por toda população de Pedra da Lua. Muitas faziam graça dizendo não acreditar que eu havia conquistado a bela amazona. Pra falar a verdade, nem eu sabia como isso havia acontecido. Vitória era o sol, uma força da natureza. Certa vez, a flagrei meditando entre as árvores, lá perto de casa, e vários animais silvestres (cervos, castores, capivaras e até um filhote de jaguatirica) estavam dormindo ao redor dela. Se a Mãe Natureza tivesse uma forma humana, seria Vitória.
Logo cedo, pela manhã, partimos de volta para casa. Vitória quis me mostrar um outro caminho, por onde tinha uma cachoeira mas algo aconteceu.
Chegamos próximo da cachoeira e vimos um pequeno vilarejo sendo atacado. Estava em chamas.
“-Ninha, eu preciso ir lá. Fica aqui.”-Vitória não me conhece mesmo.
“-É claro que vou junto.”-Disparei com Ventania em direção da aldeia antes que ela falasse alguma coisa. Só deu tempo de ouvir um “-Teimosa.”
A tribo de canibais estava saqueando e dizimando os moradores daquele vilarejo. Vitória saltou de Trovão ainda em movimento e abateu duas canibais que atacavam uma moça.
“-Moça, consegue caminhar? Vou tirar você daqui.”-Coloquei a moça em ventania e levei-a para fora da vila. Repeti várias vezes, até conseguir tirar o máximo de pessoas da vila em chamas. Voltei para buscar Vitória.
“-Vitória!”- Gritei galopando pelo vilarejo.
“-Aqui dentro, Ninha!”-Vinha de dentro de uma cabaninha.
Entrei e Vitória estava auxiliando uma moça que entrou em trabalho de parto.
“-Deixa que eu assumo, Vitória.”-Felizmente era parto normal. O bebê já estava com a cabeça para fora. “-Empurra, moça!”-Pedi para ela fazer força e logo a pequena havia nascido. A mãe começou a convulsionar após o parto e veio à óbito.
Entreguei a criança à Vitória e pedi que ela saísse dali, levando a criança para fora por causa da fumaça.
Ainda tentei ressussitá-la, mas não obtive sucesso. Saí correndo antes que tudo desabasse.
Estávamos reunidas com o povo do vilarejo que estava agradecido pela nossa ajuda. Aproveitei a oportunidade e perguntei:
“-Onde está o pai desse bebê? Acabamos de fazer o parto de uma moça, naquela cabana perto do moinho.”
“-Ele é mercador e está em viagem. Voltará somente semana que vem.” Uma senhora me respondeu.
“-Bem, ficarei com a guarda provisória dessa criança até que ele retorne. Eu sou a Drª. Caetano.”-Falei me apresentando.
“-Ah! Todos soubemos da doutora que ajudou a aldeia Lua Sangrenta no surto de Tifo. É um prazer conhecê-la, a senhora é uma heroína.”- Falou outra senhora apertando minha mão.
Vitória havia enrolado a pequena em uma manta que Júlia havia lhe presenteado. Estava dormindo embalada pelos braços de Vitória.
“-Bom, avisem o pai da menina que minha clínica é no vilarejo rural de Northfolk.”-Montamos em nossos cavalos e partimos.

Chegando em casa, corri até o celeiro ordenhar minha vaquinha.
“-Vitória, tenta dar pra ela o leite na colher. Vê se ela vai tomar. Se não conseguir, vamos ter que procurar uma ama de leite pra ela. Isadora ainda está amamentando, talvez ela não se negue.”-Falei pensativa. Vitória, com toda calma, aprontou o leite e deu à pequena. Ela sorveu faminta.
“-Olha, Ninha! Ela tá tomando! Graças à Deusa! Vai dar certo, Ana!”-Vitória me falou com o sorriso que não cabia no rosto.
“-Vi, eu vou até o mercado comprar pano para as fraldas dela. Vou passar na casa do Reverendo e falar com Isadora pra ver se ela tem roupinhas que não sirvam mais.”-Montei em Ventania e fui atrás de coisas para a recém nascida.
A noite chegou e com ela, as cólicas da pequena.
“-Vi, faz um chazinho de camomila pra ela. Acho que tá com cólica.”-Falei enquanto massageava a barriguinha. Os gritos eram estridentes. Ela tinha pulmões ótimos.
Os dias passavam e Vitória se apegava cada dia mais à pequena. Ela praticamente morava lá em casa, o que era muito agradável. Uma noite cheguei em casa, sem fazer barulho, e vi a cena mais linda: Vitória de pé, em frente ao fogão mexendo nas panelas com a pequena no colo, conversando:
“-Hum! Será que esse papá vai ficar bom? Tu tá gostando do cheiro? Será que a Ninha vai gostar do papá?”- A pequena só fazia barulhinhos com a boca. Me derreti vendo aquilo, mas fiquei um pouco preocupada. E se o pai procurasse a criança? Não queria ver Vitória sofrer.
“-Hum! Mas que cheiro bom!”-Falei anunciando minha chegada.
“-Oi, Ninha, chegou cedo.”-Vitória me deu um beijo e me entregou a pequena.
“-O que vocês fizeram de bom hoje?”
“-Passeamos pelo campo e colhemos essa flores pra ti.”-Me mostrou os girassóis dentro de um vasinho em cima da mesa.
“-Que lindas! Obrigada. Obrigada tu também, pequena.”-Falei cheirando a bochecha gordinha. Ela abriu a boca, ensaiando um sorriso.
“-Ninha, tu não acha que a gente tem que dar um nome pra ela? Tadinha, a gente só chama ela de nenê, pequena...tava pensando em chamar de Maria. Era o nome da minha vó.”-Me falou com os olhos brilhando.
“-Vamos te chamar de Maria então, tu gosta?”-É claro que não respondeu, mas deu um bocejo em troca.
Aquela noite foi a pior. Maria não queria dormir de jeito nenhum. Gritava e não era fome, nem fralda, nem cólica. Era sono mas não se entregava. Já era madrugada e eu andava de um lado para o outro com ela no colo balançando:
“-Shhh, dorme nenê...ô, Maria, me ajuda. Dorme bebê...”-Não sabia mais o que fazer, então Vitória me salvou:
“-Me dá ela aqui, Ninha.”-Entreguei Maria e ela se encaminhou até a sala, sentou com perninhas de índio no meu tapete de urso, balançando a pequena começou a cantar:
“Minha cor
Minha flor
Minha cara
Primeira estrela
Letras, cinco
Uma estrada
Não sei se o mundo é bão
Mas ele ficou melhor
Quando você chegou
E perguntou:
Tem lugar pra mim?”
Peguei o violão abandonado por AnaB aqui em casa e tirei alguns acordes, acompanhando-a:
“Espatódea
Gineceu
Cor de pólen
Sol do dia
Nuvem branca
Sem sardas
Não sei quanto o mundo é bão
Mas ele está melhor
Porque você chegou
E explicou
O mundo pra mim”
Vitória terminou de cantar e maria ressoava em seu colo. Deixou um beijo na testa da pequena e colocou-a em nossa cama. Maria dormiu tranquilamente o resto da noite.
Os dias caminhavam rápido e já estávamos no mês de Abril. Maria já estava completando dois meses quando ouvimos batidas na porta:
“-Boa noite, gostaria de falar com a Drª Caetano.”-Um homem bem apessoado retirou seu chapéu.
“-Sou eu mesma. E o senhor quem é?”
“-Meu nome é Paulo. Minha esposa faleceu durante o ataque em nossa aldeia. Algumas anciãs disseram que a senhora está cuidando de minha filha.”-Senti o chão ruindo abaixo de mim.
Vitória estava atrás de mim, com Maria no colo. Me virei e vi a luz de seus olhos se apagarem.
“-Vitória...ele veio buscar Maria.”-Falei com lágrimas em meus olhos.
Vitória foi até o homem, deixou um beijo na testa de Maria que dormia em seu colo e perguntou ao homem.
“-Como vou saber se tu é o pai dela mermo?”-Disse com a voz embargada, abraçando a pequena contra o peito.
“-Ah, sim, desculpe.”- O homem nos mostrou várias fotografias com a mãe de Maria. Os dois felizes com Maria no ventre de sua esposa e continuou: “-Muito obrigada por cuidarem da minha filha. Vocês deram o nome de Maria para ela. Eu gostaria de acrescentar seu nome, se me permite. Ela vai se chamar Maria Vitória.”-Vitória entregou Maria à seu pai e passou correndo para o quarto.
Me despedi de Maria e entrei para ver como Vitória estava: arrasada em prantos, sentada na cama com a bonequinha de pano que fiz para Maria em suas mãos.
Sentei ao seu lado lhe abraçando e colocando sua cabeça em meu peito.
“-Pode chorar, minha guerreira, bota essa tristeza pra fora.”-Acariciei seus cabelos, deixei um beijo em sua cabeça e disse:”- Eu vou te dar uma família, eu prometo.”

Dra. CaetanoOnde histórias criam vida. Descubra agora