A Corrida

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Vitória e eu acordamos cedo, antes de meu pai. Vitória pôs-se a fazer nosso café da manhã e eu estava na mesa da cozinha estudando, como de costume.
“-Tu sabia, Vitória, que a descoberta do fogo foi a maior evolução tecnológica na era das cavernas?”-Comecei.
“-Aé? O fogo é? Pensei que fosse a roda.”-Rebateu ela.
“-Não. Foi o fogo mesmo. Por que daí os primitivos começaram a cozinhar as comidas que faziam. A carne crua não é boa e pode até matar por causa dos protozoários, mas cozida estimula o cérebro. A proteína da carne é muito importante, sabia?”
“-Ah! Eu sabia que tinha alguma coisa por trás disso tudo. Não adianta, NaClara, não vou comer carne. Pode dizer o que quiser. Eu pego a proteína de outros alimentos.”- Não acredito que Vitória não come carne. Sempre que posso fico provocando ela com esse assunto. Ela não arreda pé.
“-Bom dia, meninas. Acordaram cedo. Qual o assunto em pauta agora pela manhã?”- Meu pai curioso, quis saber.
“-Tô explicando aqui pra Vitória a importância da proteína da carne no cérebro do ser humano, mas ela não quer saber de comer carne.”-Expliquei.
“-Ah, filha, se ela não gosta tudo bem. Cada um tem suas preferências. Tu não tem essa mania estranha de não misturar as comidas?”-Meu pai foi decisivo.
“-Obrigada, seu Edmilson. Pelo menos sei que tenho alguém do meu lado.”-Me olhou estreitando os olhos.
O café foi bastante animado com meu pai e Vitória sempre me questionando sobre algum assunto. Eles estavam se dando muito bem. Fiquei muito preocupada em saber a reação do meu pai em relação à Vitória, mas meu pai sempre fez de tudo pelo bem dos filhos. Acredito que ele estava se acostumando com a ideia. Com dona Mônica acho que vai ser um pouco mais complicado, mas não quero pensar nisso agora.
“-Pai, tu quer ir conhecer minha clínica?”-Perguntei animada.
“-Claro, fia. Quero ver onde tu faz tuas mágicas.”-Meu pai sempre engraçadinho.
“-Sabe seu Edimílson, lá na vila as pessoas chamam a Ana de “A mulher que cura”.-Vitória falou com orgulho na voz.
“-Verdade, filha? Que coisa mais linda!”-Meu pai disse com lágrimas em seus olhos.
“-Só faço o que vim pra fazer nesse mundo. E gosto muito.”-Falei emocionada. “-Mas vamos terminar esse café pra gente passear com papai, Vitória!”- Falei ansiosa.
“-Rumbora.”-Falou Vitória já tirando as canecas e pratos da mesa.
Terminamos de tirar a mesa e nos aprontamos para sair. Fomos até o celeiro pegar os cavalos.
“-Pai, tu pode montar nessa égua linda aqui. É minha, a mãe de Vitória que me deu.”
“-A mãe de Vitória, é?”-Meu pai falou fazendo graça. Tenho certeza que corei na hora.
“-Vou te dar uma cela, Ana. Essa é usada lá da aldeia. Vou providenciar quando voltar pra casa.”-Disse Vitória examinando a cela e as ferraduras da égua. “-As ferraduras são novas.”
“-Não precisa de cela nova, Vitória. Não tem problema nenhum com essa.”
“-Também quero te dar um presente e já tá decidido.”-Vitória é mais teimosa que uma mula empacada.
Montamos nos cavalos, Vitória e eu em Trovão e meu pai, na minha montaria.
Chegamos na vila e estava um rebuliço no centro próximo ao mercadinho. Tinha uma aglomeração de pessoas distribuindo alguns panfletos sobre uma corrida de cavalos.
“-Vitória, olha! Vai ter uma corrida! Vamos participar?”-Perguntei animada.
“-Ana, acho que as regras de vocês não permitem índios na corrida. Ano passado já teve essa corrida. Não pudemos participar.”-Falou parecendo conformada.
“-Pois eu vou participar e vou ganhar. E vou te dar o prêmio.” Falei decidida.
“-Calma, filha. Vamos lá ver as regras primeiro.”-Meu pai falou cauteloso.
Descemos dos cavalos e fomos até a mesa de inscrições que estava no meio da rua mesmo. Alí proximo já haviam se inscrito Tiago, o dono do Saloon, Guto, o barbeiro e Vítor, o rapaz do telégrafo. Haviam também muitos cowboys de outras cidades com seus cavalos magnificos.
Me aproximei da mesa para me inscrever.
“-Boa tarde, senhor. Gostaria de inscrever meu cavalo para corrida.”-Falei ansiosa.
“-Quem vai correr pela senhora?”-Ele perguntou.
“-Eu mesma. Vim me inscrever.”-Falei naturalmente.
“-Não, senhora, mulheres não são permitidas em corridas de cavalos.”-Me falou na maior tranquilidade.
“-Mas porquê? Minha égua voa como uma ventania! É um pecado deixá-la de fora!”-Falei indignada.
“-A senhora pode arranjar alguém para montá-la pela senhora.”- Ele me falou.
“-Desculpe moço, isso não vai acontecer.”-Virei as costas e saí.
Já estava irritada por toda essa coisa, de por ser mulher não poder fazer certas coisas, e Tiago cruza meu caminho.
“-E aí, doutora? Não conseguiu inscrever  esse pônei que ganhou das índias?”-Falou e Guto deu uma gargalhada.
“-Não consegui pra tua sorte. Ela ia te fazer comer poeira.”-Revidei.
“-Quem sabe numa próxima encarnação então.”-Disse debochado e saiu dando risada.
“-Ai, que raiva! Isso não é justo, pai. Por que não posso correr? Tem sempre um porquê. Porque sou mulher, porque sou solteira. Parece que não importa o quanto eu faça, sempre vai ter um porque.”-Desabafei minha indignação à meu pai.
“-Olha, filha, a sociedade é muito injunsta. Não dá as oportunidades para o indivíduo e sim para a raça ou gênero. Espero que isso um dia mude. Gostaria de estar vivo para ver, mas infelizmente é uma questão cultural. E não se muda a cultura das pessoas da noite para o dia, tu sabe bem, filha.”-Meu pai sempre sabe o que dizer. Mas eu ainda estava incomodada com aquela situção quando tive uma ideia, digamos, inesperada.
“-Pai, tu vai me ver correndo amanhã, eu prometo.”-Falei misteirosa.
Mostrei a vila a meu pai e Vitória nos acompanhou. Não havia muito o que ver, é verdade, mas fomos até a Igreja e apresentei meu pai ao reverendo Simas e Isadora. Meu pai ficou feliz em saber que fiz o parto do bebê do reverendo.
Demos mais uma volta e fomos até onde seria o percurso da corrida de amanhã. Era um percurso parecido com o que Vitória e eu fizemos até os campos floridos: os cavalos correriam pela planície, num percurso de três quilômentros, passariam por um córrego e depois, mais dois quilômetros em linha reta até a chegada. Decorei o percurso em minha cabeça.
“-Filha, tu não precisa provar nada pra ninguém. Não precisa entrar na corrida. Isso vai ser contra as regras. Não sei o que tu tá aprontando, mas a tua cara não me engana. É de quem tá aprontando. A mesma cara que tu fazia quando era criança.”-Meu pai me expondo para Vitória que ria com a mão na boca, tentando disfarçar.
“-Pai, fiquei com meu ego ferido por não poder correr. Vou correr e vou ganhar mesmo que não fique com o prêmio. Esses homens precisam de uma lição.”
Fomos até minha clínica e contei à eles meu plano. Meu pai disse que daria certo. Vitória ficou animada e disse que me ajudaria conseguindo algumas coisas que eu precisaria.
Em casa, já com tudo que precisava, comecei minha tranformação. Vesti as calças e o sapato que Vitória pegou emprestados com Lucas, o ferreiro, a camisa e o terno de meu pai, que trouxe de reserva. Vitória passou um pouco de sua maquiagem escura de guerra e esfumou uma barba  e um bigode em meu rosto. Por último, amarrei todo meu cabelo para cima e coloquei o chapéu de meu pai. Pronto! Sr. Caetano iria montar minha égua. Agora, precisamos de uma história.
“-Já sei, minha filha, você é um primo distante da Drª Caetano que veio comigo para conhecer Northfolk. Você é do oeste e é tímido então, não vai falar nada. Nós falaremos por ti.”- meu pai contou empogado a história que criou para meu personagem.
“-E o nome da égua?”-Perguntou Vitória.
“-Ventania. Pensei nisso quando fui fazer a inscrição.”- Falei
“-É um lindo nome.”-Vitória falou com os olhos brilhando e chegando perto de mim. Me puxou para um abraço e disse: “-Tu é o homem mais lindo que já vi.” Foi se aproximando para me beijar mas fomos interrompidas.
“-Hã-ham!”-Meu pai pigarreou.”-Calma senhoritas, papai ainda está aqui.”- Disse secando o suor da testa.
Nós certamente daríamos tempo à ele para se acostumar.
“-Bom, eu vou fazer a janta.”-Vitória saiu de fininho.
A noite foi descontraída com muitas risadas e histórias constrangedoras sobre minha pessoa. Meu pai também contou a história de como minha mãe pediu ele em casamento.
“-Foi ela que lhe pediu em casamento, seu Edmilson?”-Vitória perguntou admirada.
“-As mulheres da minha família tem coragem, Vitórinha.”-Falei orgulhosa.
“-Tô percebendo.”- Me disse e piscou o olho. Meu corção errou a batida.
“-Foi assim: Ela colocou cartazes de “Procurado” com meu rosto por toda cidade. Tava escrito assim: “Procura-se” bem em cima no cartaz, no meio minha foto e abaixo tava escrito: “Objetivo: Matrimônio. Pago recompensa.”.”-Meu pai terminou de falar e Vitória soltou uma gargalhada.
“-Que pedido maravilhoso! Falou Vitória batando palmas.
“-Maravilhoso? Tu não sabe a vergonha que passei. Mas casei e deu certo.”- Meu pai falou com ternura.
A conversa prosseguiu por mais um tempo até que Vitória disse que precisava ir.
“-Bom, vou ter que ir para minha aldeia hoje. Tenho uma coisa pra fazer lá mas amanhã venho cedo pra ir com vocês inscrever  Caetano na corrida.”- Vitória se despediu de nós e partiu para Corre Ventos. Fico tão confortável com ela aqui comigo que fico triste quando ela tem que ir.
Meu pai e eu jogamos carteado e conversamos uma boa parte da noite. Antes de dormir, meu pai perguntou:
“-Ana, tu tá gostando mesmo de Vitória?”
“-Pai, eu nunca pensei que fosse sentir algo parecido com o que sinto quando tô com Vitória. Ela me deixa confortável, à vontade. Parece que conheço ela minha vida inteira ou mesmo de antes. Não sei explicar o que é isso.”-Falei sincera.
Meu pai me abraçou, me deu um beijo na testa e disse boa noite.
Fui deitar pensando em Vitória.
Logo amanheceu o dia. Era domingo e me permiti ficar um pouco mais na cama. Mas não consegui. Logo uma certa amazona bateu à porta.
“-Bom dia, NaClara.”-Falou ela animada me beijando nos lábios. “-Trouxe tua cela nova, óia.”-Não acredito que ela foi pra casa só pra me trazer a cela.
“-Vitória do céu! Não acredito! É linda!”-Vitória me presenteou com uma cela de couro marrom escuro entalhado Drª Caetano na lateral. Ela adaptou dois alforjes nas laterias da cela para eu colocar medicamentos e minha maleta.”-É a melhor cela pra melhor égua do mundo! Obrigada!”-Agradeci emocionada.
Vitória me puxou pra junto de seu corpo e me beijou intensamente. Um beijo profundo e cheio de paixão. As mãos de Vitória percorriam meu corpo quando ouvimos o barulho de meu pai acordando. Paramos o beijo lentamente, colamos nossas testas e Vitória suspirou.
“-Ninha, quero ser aceita pela tua família logo.”- Falou e sorriu “-Vou fazer nosso café pra gente ir pra corrida.
“-Vou trocar de roupa então.”- Precisava montar meu personagem.
Enquanto tomávamos café, meu pai não parava de rir de mim, parecendo um homem pequeno. Antes de sair, amarrei meu cabelo pra cima, em um coque, e coloquei o chapéu de meu pai. Terminei e rumamos para vila.
Chegamos para fazer a inscrição e todos olhavam para o novo forasteiro, no caso eu.
“-Bom dia, eu vim inscrever meu sobrinho, Caetano. Caetano Falcão.”- Disse meu pai. Corei na hora.
“-Hum, certo. E qual o nome do cavalo?”-O moço da mesa perguntou.
“-Ventania.”-Respondeu Vitória enquanto arrumava a gola da minha camisa.
Tiago que estava ali perto, disse à Maro que viesse até mim oferecer, digamos, “seus serviços”.
“-Oi, moço bonito, tu veio do Oeste, foi?”-Ela me pergutou passando a mão no meu paletó e Vitória me fuzilava estreitando os olhos.
Apenas olhei para Maro e balancei a cabeça negativamente. Eu não podia falar. Iriam reconhecer minha voz. Maro levantou um pouco meu chapéu e me reconheceu mas manteve segredo. Virou as costas e voltou pra perto de Tiago.
“-O moço é tímido, Sr. Iorc. Ele não quer mulher, não.”-Falou ela tentando disfarçar.
Nós começamos a nos alinhar no ponto de partida aguardando o tiro para o começo da corrida.
Vitória montou em Trovão e disse que acompanharia ao longe, só por garantia.

Vitória’s PoV:
O tiro anunciou a largada e eu nunca vi Ana tão animada. Parecia uma criança mas tinha olhos determinados. Essa pequena vai dar trabalho à eles.
Eles começaram o percurso em alta velocidade, passando por pedregulhos, saltando troncos, desviando de árvores até chegarem na planície, onde seria um bom pedaço de linha reta. Tiago mantinha a liderança, seguido de Vítor, o rapaz do telégrafo, mais atrás Guto e depois Ana e os retardatários. Ana não estava feliz com sua posição, pelas caras que fazia. Quando entraram na planície, Ana veio ganhando posições à frente. Vítor ultrapassou Tiago mas não manteve a posição por muito tempo. Tiago ultrapassou Vítor e numa jogada desleal, deu um soco em Vítor fazendo-o cair do cavalo. Os outros competidores passaram e eu fui lá ajudá-lo.
“-Vítor, tu tá bem?”
“-Sim, tô. Só meu orgulho que tá ferido agora.”- Falou passando a mão no queixo para aliviar a dor do soco.
“-Vem, sobe que te levo.”-Vítor subiu em Trovão e continuamos acompanhando a corrida.
Os cavaleiros passaram pelo riacho à toda velocidade e espalhavam água por todos os lados. Se a corrida terminasse agora, Ana tinha conseguido o terceiro lugar. Mas ainda tinha chão pela frente.
Eles entraram na última parte do percurso. Os cavalos aumentaram a velocidade e Ana parecia ter criado asas. Ultrapassou o segundo, buscando o primeiro lugar. Ficou colada no encalço de Tiago que jogava coisas para tentar tirar a concetração dela, mas não se abalou. Ficou ao lado de Tiago que tentava derrubá-la. Acelerei com Trovão mas nem precisava. Ana passou Tiago ficando em primeiro na reta final da corrida. Tiago acelerou, mas não conseguiu. Ana venceu a corrida por um focinho de vantagem.
Todos estavam alvoroçados e animados pela corrida e acho que havia até apostas.
Quando o apresentador da corrida foi entregar-lhe o prêmio, Ana tirou o chapéu e soltou seu cabelo, revelando assim quem era. Houve um burburinho à respeito. Tiago não acreditava ter perdido para uma mulher. Ana só olhou bem dentro dos olhos dele mas não disse nada.
O apresentador disse que não poderia entregar o prêmio à ela por que seria contra as regras. Ana não queria o prêmio. Ela ganhou bem mais que dinheiro nessa corrida. Um rapaz que colocaria um adorno de rosas no cavalo de Tiago, acabou colocando em Ventania. Retirei uma rosa do adorno e coloquei no cabelo da minha pequena.

Dra. CaetanoOnde histórias criam vida. Descubra agora