Vitória’s PoV:
“-Oxi! Mas tu é paiaça mesmo né, NaClara. A gente já se apresentou antes. Só fiquei admirada de tu ser doutora. Tu é muito jovem. E também, eu nunca tinha visto uma mulher doutora.”
“-Ah, Falcão, não fique pensando que existem profissões apenas masculinas. Medicina é meu dom, minha vocação. Sinto que nasci pra fazer isso. Não me vejo fazendo nada que não seja tratando pessoas. Embora eu sofra muito preconceito por ser mulher, me sinto realizada quando ajudo as pessoas.”-Ela falou com determinação. A paixão dela pela profissão era algo notável.
“-Entendi. Sinto que vou aprender muito contigo. Mas agora, enquanto tu conversa com o reverendo, vou ali na rua olhar tua mala. O pessoal por aqui tem medo do Trovão, mas nunca se sabe, né?”- Saí em direção à porta.
Em frente a casa do reverendo estava Trovão pastando calmamente. Em seguida, uma amazona que conheço bem se aproximou de mim.
“-Vitória! Onde tu tava?”-Me perguntou Ana Beatriz, minha irmã caçula.-“-A amazonas estão te procurando. A gente já vendeu os grãos e tá na hora de voltar pra Corre Ventos. Já vai anoitecer e é mais de uma hora de cavalgada até em casa.”
“-Aninha, eu sei bem quanto tempo leva pra chegar. Não precisa me explicar. Podem ir. Vou ficar por que tô ajudando uma pessoa.”-Tentei não me estender muito no assunto mas minha irmã enxerida quis saber:
“Humm...rabo de saia novo, mana? Ha ha ha! Vitória, tu não tem jeito! Deixa só mainha saber disso.”- Essa menina parece que lê minha mente. Ou sou muito previsível.
“Não é nada disso! Vou dar uma carona pra doutora que chegou hoje aqui na vila. Ela não conhece nada ainda. O reverendo disse que ia arrumar um lugar pra ela ficar. Tô com a bagagem dela aqui no Trovão, óia.”- Apontei pro lombo do cavalo.
“-Ahãm...sei...mas juízo heim, Vitória, mainha não vai gostar de saber que tu anda arrastando asa pra uma mulher branca. Depois não reclama que ela fica no teu pé.”-Minha irmã me dando conselho só me deixa mais irritada.
“-Tá, tá bom, Aninha. Obrigada pelo aviso. Diz pra mainha que vou demorar pra chegar. Não precisa dizer o que eu fui fazer. Depois a gente conversa.”-Aninha saiu pisando firme em direção à seu cavalo e foi embora com as amazonas. Pouco tempo depois, Ana saiu da casa do reverendo um pouco abatida. Achei que era o cansaço da viagem mas ela disse:
“-Vitória, obrigada por hoje. Tu me ajudou muito lá dentro. Pode me dar a mala, por favor?”-Eu estava ficando viciada nessa voz de açúcar e nesses olhinhos de cor de jabuticaba.
“-Pra onde tu vai, NaClara? O pastor te indicou algum lugar?”
“-Na verdade, ele disse que todas as pensões estão lotadas e não tem nenhuma casa para alugar aqui na vila. Vou ter que andar e procurar algum lugar pra passar a noite.”-Falou triste.
“-Mas olha que sorte tu tem, doutora. Eu conheço um lugar onde ninguém mora há anos. É uma casa que está na propriedade das amazonas. Não é exatamente na aldeia. É bem no meio do caminho. Daqui até lá levaremos trinta minutos à cavalo. Quer ir?”
“-Claro!”- Falou animada-“Vamos agorinha!”-Ana falou já colocando o pé no estribo.
Cavalgamos tranquilamente pela estrada de chão batido. O sol já estava se pondo dando assim, um colorido especial à paisagem.
“Nossa! Como o céu aqui é lindo!”-Me disse admirada-“Lá em Southfolk, de onde vim, não é assim. Por ser uma cidade muito fria o ano todo, as chaminés das casas estão sempre expelindo fumaça dos fogões e lareiras. O que impede de vermos claramente o céu. O ar é horrível!”
“-Ana, posso te perguntar por que tu veio pra cá? Saiu lá da tua cidade, do conforto da tua casa, pra vir pra uma cidade desconhecida.”-Queria conhecer um pouco mais dela então ousei puxar o assunto.
“-Sabe, Vitória, essa cidade não é totalmente desconhecida pra mim. Morei aqui quando criança. Fui embora, aos onze anos, com meus pais buscar tratamento pro meu problema respiratório porque aqui não tinha nada. Se passaram doze anos e nada mudou por aqui.”-Fez uma pausa e continuou-“Acho que vir pra cá é também um recomeço. Um desafio. Eu quis sair da minha zona de conforto, sabe? Sair do seio de minha família foi doloroso e sinto saudades todos os dias. Mas queria me desafiar. Viver algo novo, entende? Minha mãe diz que eu nasci no tempo errado porque meus pensamentos são muito diferentes da maioria e que eu vou sofrer sendo desse jeito. Mas sabe, Falcão, prefiro sofrer e viver minha vida do que estar confortável vivendo a vida de outra pessoa. ”-Com essa resposta, entendi que Ana Clara não era uma pessoa comum. Só ela pra enfrentar o patriarcado e dizer que estava na zona de conforto. Ela é a pessoa que vai mudar Northfolk e minha vida.
Chegamos na cabana onde Ana Clara iria se instalar e nos deparamos com a casa faltando algumas tábuas nas paredes. Descemos do cavalo e Ana parecia emocionada ao ver a casa. Deu uma boa olhada em volta e viu um pequeno galinheiro e um celeiro na propriedade. Andou mais um pouco ao redor, olhou pro céu que agora estava escuro, fechou os olhos e ficou um tempo em silêncio. A brisa acariciava seus cabelos e eu ali, igual uma idiota, admirando a cena.
“-Vi, obrigada! Tu não sabe como eu tô feliz!” –Havia muita sinceridade em suas palavras.
“-Quê isso, NaClara. É só uma casa e tá meio que caindo aos pedaços mas infelizmente é só o que posso te oferecer no momento.”-Falei em tom de brincadeira.
Ana Clara abriu a porta e vimos a calamidade naquele chão completamente empoeirado. Os antigos moradores deixaram alguns móveis. Então havia uma cama, uma mesa grande com cadeiras e um fogão à lenha. A lareira era embutida na parede e como estava começando a esfriar, fui pra rua cortar lenha para acendê-la enquanto Ana Clara começava a limpeza.
Achei algumas tábuas largas e consertei a parede da casa que estava quase caindo. Terminei de cortar lenha e quando entrei em casa, Ana Clara estava deitada de roupa e tudo dormindo profundamente. O cansaço pegou a bichinha. Era tão linda até dormindo. Fiquei alguns minutos admirando a pequena e acendi a lareira. Por via das dúvidas, resolvi passar a noite aqui com ela. A porta não tinha tranca por dentro. Melhor não deixá-la sozinha hoje.
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Dra. Caetano
FanfictionNo ano de 1867, Ana Clara Caetano retorna à cidade onde nasceu, Northfolk, para trabalhar como médica numa vila rural onde cresceu. Uma das poucas médicas num mundo de médicos, ela mostra-se uma mulher à frente de seu tempo, não só por suas atitudes...