A Decisão de Vitória

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Os dias em Northfolk se passavam e eu seguia confiante na recuperação de Vitória. Ela já conseguia andar alguns passos mas ainda apoiada em algo ou alguém:
"-Vamos, Vi, já estamos quase na porta de casa."-Vitória estava apoiada por mim em um lado e por Agnes em outro. Pedi que ela continuasse mesmo que sentisse dor.
"-Ninha, me sinto um pouco tonta."-Vitória reclamou e paramos, chegando nos degraus da varanda de casa. Sentamos com ela ali mesmo para que descansasse um pouco.
Vitória se remexia ali parada. Queria continuar. Agnes havia feito para ela uma espécie de muleta para apoiá-la quando estivesse mais condicionada, para lhe dar mais independência. Vitória sempre foi orgulhosa e não queria depender de ninguém.
"-Agnes, me alcança a muleta pra eu tentar sozinha."-Ela falou e eu arregalei meus olhos.
"-Vi, vai com calma. Tua ainda tá retomando o equilíbrio."
"-Deixa eu tentar sozinha, Ninha."-Falou já se levantando e se apoiando na muleta.
Ela parou um minuto, ofegante e deu alguns passos somente apoiada no suporte. Suas pernas falharam, por ainda estarem fracas e ela cedeu.
"-Vi! Tu tá bem?"-Claro que Agnes e eu estávamos andando ao seu lado e não deixamos que ela fosse ao chão. A apoiamos novamente e a levamos para sentar nos degraus em frente de casa. Ela levou sua mão ao braço direito que ainda estava machucado e bufou de dor.
"-Droga, Ninha, dói muito."-Falou triste.
"-Calma, amor, tudo à seu tempo. Tu tá indo muito bem. Tua recuperação é incrível. Eu tô muito orgulhosa que tu não desistiu."-Falei afagando seu roto e limpando uma lágrima teimosa que insistia em molhar seu belo rosto. Ela pegou minha mão e deixou um beijo em minha palma.
"-Eu vou ficar boa, Ninha. Tenho coisas para resolver."
Nos dias seguintes, Vitória se recuperava bem porém não tinha confiança para largar a muleta. Ela já conseguia arremessar sua machadinha mas quando caminhava para buscá-la, era sempre apoiada na muleta. Era como se não tivesse segurança em seus passos. Ela tinha medo de que pudesse cair e machucar sua coluna novamente.
Mais alguns dias se passaram e Vitória estava teoricamente curada. Eu disse teoricamente por que seus ferimentos estavam cicatrizados e ela já não precisava mais da muleta. Havíamos substituido por uma bengala. Na minha opinião médica, ela não precisava mais de apoio algum mas se sentia insegura e ainda puxava um pouco sua perna direita.
"-Vi, tu ainda sente alguma dor nas pernas?"
"-Não, Ninha, mas sinto minha perna direita pesada. A muleta me ajuda muito."-Ela dizia segurando sua inseparável muleta.
"-Olha, Vi, eu posso mandar um telegrama pra Letícia e pedir pra ela vir te examinar. Talvez seja cerebral."-Falei enquanto me vestia para ir ao consultório.
"-Não, Ninha, eu tô bem. Não precisa."-Ela falou e foi se levantando da cama quando um garoto, que parecia uma flecha, entrou em nosso quarto:
"-Mãe! Mãe!"-Arthur se jogou no colo de Vitória. "-Eu ví um falcão voando no céu!"-O pequeno falou animado.
"-Arthur, eu disse pra ti não entrar sem bater na porta antes."-Repreendi meu pequeno. Ainda bem que eu já estava vestida.
"-Desculpa mainha, mas ele era muito lindo."-Me ignorou completamente e continuou: "-Mãe, como ele faz pra planar daquele jeito?"-O pequeno curioso quis saber.
"-Bom, ele aproveita a corrente de ar. Ele estica as asas até que sinta o vento à seu favor."-Vitória explicava e os olhinhos tristes se iluminavam com a nova descoberta.
"-Eu queria poder voar."-Ele falou ingênuo.
"-Mas daí iríamos morar em um ninho?"-Vitória brincou e ele riu.
"-As pessoas sonham em voar desde o início dos tempos."-Falei arrumando os cabelos do pequeno que estavam embaraçados pelo vento.
"-Parece tão fácil. Vou construir asas e tentar."-Ele disse assim, como se não fosse nada.
"-Arthur, não acho isso boa ideia. Ícaro tinha asas, lembra quando eu contei a história dele pra ti? Ele chegou perto do sol e morreu."-Falei tentando fazê-lo esquecer essa ideia maluca.
"-Mas ele voôu...Talvez eu consiga construir algum mecanismo com grandes asas...Mãe, tu me ajuda?"-Perguntou à Vitória.
"-Quê?"-Vitória parecia desatenta à conversa.
"-A construir as asas, mãe. A senhora me ajuda?"-Ele perguntou mais uma vez.
"-Claro."
"-Oba! Mainha tem um livro com a figura de uma máquina de voar! Vou buscar pra você dar uma olhada."-Arthur saiu correndo para a sala procurar o livro.
"-Tu não devia encorajá-lo a fazer essas coisas, Vitória, ele pode se machucar."-A repreendi.
"-Isso não vai acontecer, Ninha."-Ela falou segura.
"-Por que não?"
"-Ele não pode construir uma máquina que voa. Ele vai tentar por um tempo e depois vai desistir."-Ela explicou.
Nem bem terminamos a discussão sobre a construção de máquinas voadoras quando ouvimos uma batida na porta. Vitória, levantou da cama, pegou sua bengala e foi até a sala atender a porta. Eu fui logo atrás.
"-Bom dia, Vítor. Como vai?"
"-Bom dia, Vitória. Eu vim te trazer um telegrama. Me parece urgente. É do governo."-Vítor entregou a carta à Vitória e foi embora.
"-O que diz aí, Vi?"-Perguntei curiosa.
"-É um telegrama do Superintendente Hazen. Aqui diz que soldados estão levando índias Pawnees e Utes para uma mesma reserva. Ninha, essas tribos são inimigas. Não podem ficar juntas."-Vitória me explicou e continuou: "-Diz também que estão reunindo todas as amazonas que estão fora de suas tribos e levando para uma reserva no Lago Palmer e depois que estiverem todas assentadas, eu estarei no comando como agente indígena."-Vitória terminou a leitura e ficou pensativa. "-Minha perna tá doendo, Ninha...eu vou me deitar um pouco."-Ela disse e voltou para o quarto.
Aquele dia resolvi ficar em casa. Queria estar perto caso Vitória precisasse conversar. Agnes havia saído para trabalhar e levou Maria até a casa do Pastor Simas para brincar com Theo. Ela fazia alguns trabalhos para Manoela na Gazeta ou consertando cercas de algumas propriedades.
A manhã passou rapidamente e logo já era quase hora do almoço. Comecei a mexer nas panelas enquanto Arthur, sentado à mesa, estudava os mecanismos voadores e desenhava:
"-Olha, mainha, essa máquina voôu por vinte metros antes de..."-Parou de falar de repente.
"-Antes de quê?"-Pedi para ele continuar.
"-Ele caiu num milharal, mas ninguém se feriu."-Tentou justificar. Apenas olhei para ele e sorri de um jeito divertido. Logo, Vitória saiu do quarto e veio juntar-se a nós. Ela pegou uma das folhas de Arthur, um lápis e começou a escrever algo.
"-Eu vou construir uma máquina com asas mais longas e finas. O livro diz que terá menos resistência ao ar. O que tu acha mãe?"-Arthur quis saber a opinião de Vitória. Ela olhou o desenho do pequeno e disse:
"-As asas parecem boas. Mas a máquina não tem cauda."-Observou.
"-Eu ainda não desenhei."- Ele continuou desenhando e Vitória continuava a escrever.
"-Bom, está feito."-Vitória falou. "-Terminei minha carta de demissão. Agora é só entregar á Hazen."-Vitória falou enquanto colocava a carta em um envelope. Me sentei ao seu lado para conversar.
"-Não é melhor pensar mais um pouco, amor?"-Perguntei.
"-Já pensei."-Ela respondeu prontamente.
"-Amor, desde Washita eu tenho me preocupado tanto contigo e com Nayara. Fico pensando se tem alguém preocupado com as outras amazonas que sobreviveram ou com as índias sem tribo. Não tem ninguém por elas, amor. Tu tem certeza que conseguiu ordenar teus pensamentos desde que tudo aconteceu?"-Ela se remexeu na cadeira e disse:
"-Eu sei o que tenho que fazer."
"-Pedir demissão é a solução?"-Tentei fazê-la pensar.
"-Tu viu o que aconteceu, Ninha, e agora eles querem juntas as amazonas que nem sequer se conhecem ou se entendem. Se elas quiserem sair de lá vão precisar pedir algum tipo de passe, ou algo assim e eu teria que manter a ordem e impedí-las que saiam por aí."-Vitória falou irritada.
"-Não, Vi, tu vai garantir que elas irão receber o que o governo prometeu. Uma escola, ferramentas para trabalharem, uma clínica."-Tentei argumentar.
"-Tu sabe que isso não vai acontecer, Ninha."-Falou ríspida.
"-Vitória, tu é a única aliada delas. Tu pode te demitir mas alguém sem simpatia nenhuma por elas vai entrar no teu lugar e ficará no comando. Tu pode ajudar muito só de estar lá. Se puder melhorar a vida de uma só amazona ou criança já terá valido à pena."
"-Tu já sabe como isso vai terminar, Ana. Esses acampamentos são provisórios. O governo não vai parar até que não existam mais índias nesse país. Não posso participar disso e ficar olhando acontecer."-Vitória falou irritada.
"-Então tu vai desistir delas?"-Perguntei olhando em seus olhos. Ela suspirou pesado e perguntou:
"-O que quer que eu faça?"
"-Que rasgue essa carta."-Ela olhou a carta em suas mãos, levantou da cadeira e disse:
"-Preciso sair e tomar um ar."-Pegou sua bengala e saiu pela porta.
"-Mamãe vai ficar bem, mainha?"-Arthur perguntou preocupado.
"-Eu espero que sim, filho. Espero que ela coloque os pensamentos em ordem."-Me levantei e voltei à fazer o almoço.

Dra. CaetanoOnde histórias criam vida. Descubra agora