Capítulo 1

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  Há verde para onde eu olho e isso já começa a pinicar meu nariz. O jardim avança em ondas até parar perto da casa enorme que se sobressai na paisagem paradisíaca, e logo atrás dela, há uma rodovia, carregando carros e pessoas viajando. Mas nesse momento, eu me sinto como uma princesa absorta e alheia ao mundo lá fora. 

  Até, é claro, minha tia vir fungando, os olhos vermelhos de chorar perto do altar. Seus braços macios e flácidos me apertaram num abraço de cumprimento. 

—Estou tão feliz que puderam vir -ela funga de novo, tirando o nariz de perto de mim e olhando para as pessoas ao meu redor. Minha família sorri e se levanta para poder abraçá-la de volta. Eu volto a me sentar, nervosa e com o estômago dando voltas revoltas. Tudo em seu semblante mostra a alegria de uma mãe casando a filha, mas eu sei exatamente quais serão as próximas palavras soltas por sua boca grande.

  Sem ofensas, é claro, mas minha tia tem a fama de falar coisas que não deveria, porque simplesmente não é a hora, ou porque não tem tato algum. E quando ela abre a boca novamente, eu me aperto na cadeira, fechando os olhos de leve. Mas ela não fala sobre.

—A Rafa amou ver vocês aqui, chorou no quarto quando falei que vinham -ri ela, passando o braço pelo ombro da minha mãe, que está vestida num lindo terninho preto e vermelho. Ela sorri alegre, como eu não via há meses, e isso aquece meu coração. Alivio a tensão conforme todos a envolvem na conversa.   

  Meus dois irmãos mais velhos puxam assunto sobre meu tio, sobre meus primos menores, e quando vi, eles mesmo aparecem em volta da mesa, cumprimentando, dando abraços e beijinhos aqui e ali, e noto quando volto a ficar tensa, esperando que qualquer um deles tropece nas palavras e cuspa aquilo que eu realmente não quero ouvir. 

  Então uma mão morna toca a minha e viro a cabeça em direção a ela, minha irmã. Ela sorri pra mim, suave, como se soubesse o que se passa em minha cabeça tão perturbada. 

—Vamos lá dar uma olhada nas flores? -ela indica com a cabeça as ondas de tulipas e rosas que corriam pelo chão afora. Eu me levanto e abro um sorriso enorme. 

—Por favor, sim -nos afastamos da mesa, que ainda não havia sido servida com coquetéis e bebidas. Estou ficando com sede e nervosa. Quando chegamos perto das tulipas verdes, coisa que eu imaginava ser impossível de ser feita pela natureza, solto a mão da minha irmã. —Valeu por me tirar de lá.

  Poucas pessoas no mundo me entendem, e as que fingem entender há  muito foram embora da minha vida. As que sobraram, porém, são aqueles que estão sentados na mesa, que vieram espremidos em vários carros até chegarmos no casamento da minha prima. Não há dúvidas, se eu precisasse escolher apenas algumas pessoas para viver o resto da vida comigo, eu os escolheria de olhos fechados e coração aberto. 

—Eu vi que você tava nervosa, não quis que piorasse -ela sorri fracamente pra mim, tocando algumas pétalas com os dedos magros. Eu assinto, sem ter o que falar. Então lembroda cerimônia e mordo o lábio para não rir.

—Você viu o que estava escrito embaixo do sapato do noivo? -eu nem sequer me dei o trabalho de decorar o nome complexo do rapaz. Minha irmã ergue a cabeça e prende o riso, querendo fazer uma carranca de repreensão, mas mal se mantendo séria.

—Tem quem goste do mau gosto. 

   Eu rio, tampando a boca para o som não chegar ao longe. Minha irmã gargalha baixinho também. Não é todo dia que vamos em um casamento e o noivo pede  "socorro" pelo solado do sapato social. É patético, sim, mas não deixou de me dar crise de riso na cerimônia.

—Será que são naturais ou pintadas? -pergunto em voz alta, mas não espero uma resposta, enquanto toco uma rosa azul do mar. Minha irmã dá de ombros, olhando para trás, nossa mesa. 

Corte de Sombras e MundosOnde histórias criam vida. Descubra agora