Capítulo 22

1.5K 233 88
                                    

Me sentia leve nos braços de Azriel durante aquela manhã. Meu coração batia mais tranquilo do que nunca, minha respiração não falhava sempre que seus dedos tocavam a lateral do meu corpo, como se estivesse mapeando meus defeitos. Eu não me importava. Eu queria que ele fizesse isso e muito mais. 

  Eu disse a ele que o amava, que havia me apaixonado desde que o vira como uma pessoa real, não fruto de drogas pesadas ou de uma doença terminal. Eu o amava com meu coração, desde muito antes de contar de onde vinham as marcas que agora maculavam minha pele, que um dia foi lisa. 

  Ainda conseguia ouvir os gritos vindos da minha própria garganta quando tudo aconteceu naquela noite. A gritaria, a briga, o fogo, meu pai se jogando em mim, dizendo que eu precisava descobrir minha verdadeira vida. E então eu estava pegando fogo. Gritando e chorando, até que desmaiei, e quando acordei depois de uma semana, estava numa cama hospitalar, com minha mãe segurando minha mão tão fortemente que pensei que meus dedos estivessem se esfarelando. 

  Nossos olhares se encontraram, mas não havia nada a ser dito. As palavras "seu pai faleceu" estava em seus olhos azuis, nas sombras abaixo deles, me mostrando que ela não havia dormido muito. Estava no cheiro queimado dentro das minhas narinas. Eu vomitei o que não tinha na barriga naquele dia. 

  E foi assim por dias, semanas e meses. Sem palavras que pudessem descrever meu pai como um homem ainda vivo. Antes disso tudo acontecer, eu tinha uma vida boa, estava feliz por estar construindo um amor e uma família. Mas a notícia da perda do meu filho ou filha veio dois dias depois de acordar. 

  Tudo que eu tinha, que amava, foi destruído pelo fogo, inclusive minha lateral direita. As marcas de fogo que lamberam minha pele e me derreteram do peito pra baixo até a metade da coxa me impediam de dormir às vezes. 

  Às vezes eu só gritava. Não de dor. Mas de ódio, raiva, de saudade. Sempre tive o controle de tudo ao meu redor, mas agora sequer tinha isso. Apenas um vazio onde podia me enfiar e chorar, enquanto me recuperava da dor e deixava meu corpo se curar sozinho.

  Em seis meses a cicatrização já havia começado, e eu me coçava o tempo inteiro, implorando por algum alívio. Eles me dopavam com algum remédio pra dormir, mas eu precisava acordar hora ou outra, pra me alimentar, agir como um ser humano tentando sobreviver. Mas eu não queria. 

  Meu pai... Meu melhor amigo, já não existia mais. Fui obrigada a usar uma sonda, a dormir por dias, para que meu sofrimento fosse soprado como um pó no vento. Em um ano estava recuperada, de forma límpida, o que deixou muitos médicos orgulhosos, como se eu tivesse me esforçado para estar ali, numa cadeira de rodas, viva, indo embora pra casa.

  Meses em fisioterapia para recuperar o movimento da perna  e a movimentação do tronco e braço. Quando finalmente fiquei em paz em casa, tomando remédios, o pior começou. Eu não dormia. Me negava a fechar os olhos como havia feito naquele dia. Sabia que meus medos se tornariam reais no breu, e eu definitivamente não queria isso. 

  Eu não gritava. Não falava, mas comia e me alimentava da forma correta. Minha mãe sempre dizia que meu corpo precisava estar forte pra se recuperar por inteiro. Então eu comia, e quando não o fazia, dormia o dia todo. Me afundando numa tristeza feroz, cuja intensidade até removia minha dor física e mental. Sentir nada era uma benção. 

  Até que numa noite, onde acabei me entregando ao sono, sonhei com ele. Meu pai, sorridente como sempre era, acariciando meu rosto com seus dedos cheios de calos por causa do piano que amava tocar. Senti seu hálito fantasmagórico em meu rosto quando ele beijou minha testa, e sussurrou tão baixo que poderia ser inaudível, mas eu ouvi. Jamais esqueceria as seguintes palavras: "A aventura está lá fora, minha pequena. Vá viver um pouco". 

Corte de Sombras e MundosOnde histórias criam vida. Descubra agora