Capítulo 26

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   Acordei três horas depois, com cachos surgindo na ponta dos cabelos, meu corpo quente como um forno por causa das cobertas. Mas me surpreendeu sair da cama e notar o ar frio no quarto. Agora fazia sentido a razão de tantos cobertores. Estava congelando lá fora, sequer nenhum sinal do dia aquecido que tomou conta da paisagem. 

   Vestida com suéter e shorts, eu fui pra sala, onde vi minha mãe com Gabe, ambas comendo bolinhos fritos de espinafre. Provavelmente uma especialidade da minha tia. Minha prima, como sempre, exibia sua beleza com tanta naturalidade que era quase um crime estar no mesmo ambiente que ela e não se ajoelhar e implorar perdão por respirar o mesmo ar. Os cabelos cacheados castanhos brilhavam dourados nas pontas, por causa da lareira acesa, crepitando, deixando o ar denso e quente. 

—Olha só se não é a bela adormecida -ela sorri, se levantando do sofá, correndo pra me abraçar. Seus braços me seguram por todos os lados, e afundo meu rosto em seu pescoço, inalando o cheiro de casa. Da minha casa. O lugar que realmente pertenço. —A viagem foi boa?

—Uma maravilha, querida -responde minha mãe, sorrindo, enquanto nos afastamos. —Estávamos falando sobre as aulas de equitação que você pediu -minha mãe fala e eu sorrio pra Gabe.

—Quando começamos?

    Ela joga os cachos para trás, sorrindo ardilosa. 

—Amanhã, se estiver disposta a machucar essa bunda numa sela. 

    Eu rio, achando graça, porque é o que vai mesmo acontecer. A primeira e ultima vez que andei a cavalo, não conseguir me mexer direito por uma semana inteira. 

—Ponho um travesseiro na calça -respondo, me jogando no sofá cheirando a lavanda. Talvez seja algum perfume, ou simplesmente o cheiro do tecido. Vai saber, meus tios tem dinheiro para fazer os dois. Mas Gabe, sentada ali, do meu lado, tirando os tênis branquissimos, não parece se dar conta disso. Apenas Rafa, sua irmã, parece dar valor ao dinheiro ou a propriedade. Gabe nunca exibiu nenhuma afeição por tudo aquilo. 

   É ótimo vê-la de novo. Corada, saudável, sorridente como me lembro. Da última vez, no casamento, ela estava enfeitada como uma princesa, mas aqui, está com roupas rasgadas e simples. 

—Acho que vou ir tomar um banho -diz minha mãe, se levantando e beijando o rosto de Gabe. —Nada de beberem todo o vinho que sua mãe me deu. 

   Assim que a sombra da minha mãe some no corredor, Gabe sorri como um gato e vai até a adega pequena na cozinha e tira de lá uma garrafa. 

—Acho que uma garrafinha não engloba tudo, né?

  Eu rio, negando com a cabeça. Nos sentamos lado a lado, enquanto ela liga a TV. Passa um desenho, mas não me importo com isso, é bom estar aqui, ao lado da pessoa com quem posso mostrar todos meus lados, que não mentirá pra mim. 

—Seu pai me disse que você que planejou esse chalé. Não sabia que tinha um lado arquiteto dentro de você. 

  Ela ri, abrindo a rolha da garrafa com os dentes. 

—Não tenho. E não fui eu quem planejou a casa. 

   Viro pra ela, arqueando uma sobrancelha. 

—Alguma chance de ser um espírito de algum ancestral seu?

—Pois saiba que ele também seria seu - a garrafa solta um *pop* baixo, e o aroma do vinho entra em meu nariz, me fazendo salivar de sede. 

—Mas ficaria honrada com esse espírito arquiteto, sem dúvidas -comento, pegando a garrafa e sorvendo um gole.  Doce, azedo no fim. Perfeito. 

Corte de Sombras e MundosOnde histórias criam vida. Descubra agora