Capítulo 73

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 Já dormi num hotel uma vez. Eu e minha família costumávamos ficar na casa de parentes quando viajávamos. Sempre nos meus avós, nos meus tios, em qualquer lugar onde poderíamos dormir sem pagar. Mas daquela vez fomos para uma cidade onde não tínhamos nenhuma família pra nos abrigar. 

  Meu pai, mais do que feliz por mudar a rotina das viagens, pagou três quartos no total. Um para meus pais, obviamente, um para Maia e Andrei - na época os dois não se desgrudavam, estavam entrando na puberdade, ambos se vestindo como emos descolados e mal humorados -, e um para Lucian e eu. 

  O hotel não era tão fantástico, mas com meu irmão do lado, fazíamos daquele lugar um castelo mágico. A primeira coisa que fizemos foi desfazer a enorme cama de casal e jogar as cobertas no chão, fizemos um labirinto de cobertores e travesseiros, e nos arrastávamos no chão de lá pra cá.

  Na terceira noite, nossos pais entraram para nos dar boa noite e viram a cena. Tudo revirado, nós dois borrados com o batom que pegamos da minha mãe. Tínhamos 10 e 8 anos. Éramos jovens e inconsequentes, e amávamos os batons da nossa mãe. Sempre cores clássicas e que nunca saiam da sua boca. 

—Não acredito nisso - ralhou meu pai, colocando as mãos na cintura, do jeito que sempre fazia quando estava com raiva. —Olha isso, Mara! O que vou falar pro hotel? Vamos fazer o check out amanhã. 

  Eu me lembro de ficar jogada no chão, agarrada a Lucian e ele a mim, os olhos arregalados, encarando minha mãe. Mas ela não pôs as mãos na cintura como meu pai, ela começou a rir. Riu tanto que meu pai ficou vermelho do que parecia ser vergonha, e logo começou a rir também.

—São nossos filhos, amor, o que esperava? - minha mãe disse simplesmente, sorrindo para nós dois no chão, com tanto amor nos olhos que eu senti ele tocando minha pele. Na época eu não sabia que isso era possível. Sentir tanto só com 8 anos. 

—Eles tem o sangue do seu irmão - falou meu pai, nos puxando do chão com cuidado. Ele tirou uma sujeira do meu rosto, deixando um rastro de vermelho no dedão. 

  Minha mãe sorriu saudosa do outro lado. Meu tio. Ela nunca falava dele. 

—Rhys era mesmo bagunceiro, mas com certeza o Lucian puxou você quando era criança, não é, amor? - minha mãe se agachou na frente do meu irmão, que era menor do que eu naquela época, mesmo sendo mais velho. 

  Rhys. Aquele nome. Não sei como nunca pensei nisso antes. Acho que o tempo conseguiu apagar esse pequeno detalhe da minha memória assim como as ondas somem com as marcas na areia. Ou com as conchas que vêm de noite e somem pela manhã. 

  Depois de nossos pais nos ajudarem a limpar o quarto, nós dois fomos postos na cama, debaixo de um coberto macio - o mesmo que brincávamos, mas não tivemos a chance de dormir propriamente neles. Nós tínhamos nos enfiado no armário, dentro da banheira larga do banheiro, nos deitado no próprio chão. 

  Mas agora estávamos sendo deitados com cuidado sobre os travesseiros. O cheiro de amaciante atingiu meus sentidos de criança, multiplicando a sensação por mim. Meu pai ajeitou meu cabelo para trás da orelha e sussurrou:

—Você puxou mais a mim, sabia? Não deixa sua mãe saber disso, ela é ciumenta - ele beijou minha testa, com tanta suavidade que eu quis repetir o momento. Eu amava ser beijada na testa por ele. Isso se seguiu por anos, os beijos na testa, as piadinhas internas, as carícias lotadas de amor nos meus cabelos. 

—Sabia - eu ri baixinho, beijando seu rosto. Ele acariciou minha cabeça como sempre e me cobriu até os ombros.

  Minha mãe beijou meu rosto, diferente dele. Ela sempre costumava beijar todos nós, todos os dias, em lugares diferentes. Uma vez eu fui beijada no cotovelo, com ela dizendo que me daria sorte. Eu, com 7 anos, ri.

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