Tudo que consigo ver é céu azul e árvores verdes e vívidas. E lá em cima, três pares de asas, voando e rodopiando como ioios distantes. É difícil manter a cabeça inclinada pra trás, a fim de não perder nenhum detalhe, mas é pior não assistir enquanto minha mãe está batendo suas asas acima da minha cabeça, o rosto suado pelo esforço físico que a prática pede.
Rhys e Feyre estão lá, a apoiando, enquanto ela bate as asas e cai no ar, então um deles atravessa e a puxa para o mesmo ponto, no meio do ar.
Já faz quatro horas que estou sob esse sol do inferno, provavelmente torrando o restante que tenho de paciência. Gostei da ideia deles terem me chamado para participar do treino da minha mãe, mas ficar sentada aqui, em cima de uma pedra meio lascada nas beiradas, capaz de se afundar na minha bunda e jamais sair, não parece tão agradável agora.
Foi interessante, porém, as dicas de Rhys sobre ela precisar se equilibrar enquanto ainda estavam no chão. Foi útil pra mim, mesmo sem ter asas gigantes pra precisar sustentar durante todo o dia. Não sei se isso é bom ou ruim. Eu adoraria poder voar, mas ao mesmo tempo parece uma responsabilidade muito grande de se ter. No meio de uma guerra, eu seria a primeira a atacar.
Esse pensamento me dá calafrios, cruzo os braços, olhando pra cima, esperando que o que Helion -que ainda sequer vi, mas Feyre disse que ele está na Casa do Rio- disse seja apenas uma suposição. Quero dizer, não há coisas incríveis em meu mundo, nada de armas matadoras de feéricos, ou extraterrestres. Mas temos bombas nucleares. Sempre achei idiotisse a criação de algo assim. Eles literalmente criaram uma bomba capaz de explodir o mundo que vivemos. É patético! Mas pensando melhor agora, talvez bombas humanas funcionem aqui tão bem quanto flechas de freixo.
Apoio a cabeça nas pernas e fecho os olhos. Ainda estou cheirando um pouco de suor da noite passada, e meus neurônios ainda parecem abalados demais para eu conseguir perambular por essa floresta e passear com os seres daqui.
O barulho de asas poderosas me faz suspirar de alívio. Porque finalmente acabou o treino, vamos poder ir embora, e irei tirar essa roupa suada e molhada nas costas.
Ergo a cabeça, já sorrindo para ver a alegria no rosto da minha mãe, mas não são eles que estão na minha frente. Apenas Azriel me encara do ponto onde pousou, as asas tão esticadas que tocam as árvores dos dois lados da clareira onde estou sentada. Ele parece apenas um ponto, se comparado com elas.
—Rhys me pediu pra trazer algo pra você comer -ele estica uma sacola de papel em minha direção, que apareceu em sua mão somente agora, encolhe as asas e se senta na raiz de uma árvore não muito longe de mim.
Abro a sacolinha e sorrio ao ver uma garrafa de água, queijos cortados em cubinhos, um lindíssimo pedaço de torta de alguma fruta, e o que parece ser um picolé.
—Você acabou de me salvar de cair morta de fome -suspiro, tirando a garrafa e a abrindo. O gole que dou refresca toda minha alma. —Obrigada -olho pra ele.
Azriel engole em seco, franzindo a testa pra mim, mas assente.
—Não está gostando de ver sua mãe reaprendendo a voar? -pergunta ele.
Eu dou de ombros.
—É interessante, mas aposto que seria mais se eu estivesse lá em cima também. Não tem graça daqui de baixo. O máximo que consigo ter é um torcicolo -resmungo, pegando um pedaço de queijo e enfiando na boca. Perfeito!
—Também não é tão interessante lá em cima -ele olha para o céu e ri. —Aposto que os três vão sair de lá como se tivessem levado uma surra.
Sorrio com isso, olhando para minha mãe, que mais uma vez cai, e Feyre atravessa as duas de volta ao ponto de partida.
—Foi ruim pra você assim também? -pergunto, ainda olhando para o céu. Pelo silêncio dele, sei que está pensando na resposta.
—Um pouco -sua voz parece distante, então o encaro, pedindo por mais. Posso não confiar a ele meu coração, mas gosto de ouvir quando ele fala de si mesmo. Parece tão raro, que quando ele o faz, preciso prestar toda a atenção.
—Uau, quantos detalhes -brinco, mordendo um queijo.
O sorriso que ele me dá, enquanto estreita os olhos, me faz rir por dentro.
—Não tem detalhes. Só foi difícil. Passei anos sem usar minhas asas, então demorei um tempo a mais do que o normal pra aprender.
Meu sorriso some, e um silêncio cai sobre nós.
—Você estava falando sério? -sua voz me faz erguer a cabeça, confusa.
—Sobre o que? -pergunto, arqueando a sobrancelha.
—Sobre ter saído do emprego e o seu chefe... -ele passa a mão no cabelo, parecendo contrariado. —Eu ouvi um pouco da sua conversa com o Helion, não foi minha intenção.
Não sei porque, mas sinto que é mentira. Mas se fosse, Azriel estaria estribuchando de dor por causa de nossa barganha nesse exato minuto.
Respiro fundo e umedeço os lábios.
—Estava falando bem sério.
Nossos olhares se encontram, e o que vejo em seu olhar é algo que nunca vi antes. Em ninguém, nem mesmo em mim mesma, não importa o quanto estivesse com raiva. Mas Azriel parece borbulhar em puro ódio.
—Quando? -ele diz com os dentes trincados. Eu engulo em seco, desviando o olhar, nervosa. Eu definitivamente não quero falar sobre Gabriel agora, por mais que saiba que ele foi demitido e pagou uma multa exorbitante. Ainda não é o suficiente.
—No dia seguinte que fui embora daqui -respondo, tentando não olhar para ele, mas falho. Ele parece um Deus da Morte de fato, e não sei se como deveria reagir, mas encantada não deveria estar no topo.
—Ele...?
Fica subentendido, e eu me vejo balançando a cabeça, com histeria.
—Não -meu rosto cora quando acrescento o restante. —Eu meio que soquei a cara dele no meio do restaurante.
As sobrancelhas dele se erguem, e a última coisa que eu esperava acontece. Ele ri. Um riso de verdade, não iguais aqueles que me deu desde que cheguei. É sincero, engraçado, cheio de humor. Meu peito aquece conforme passo meus olhos por seu rosto sorridente, os olhos com lágrimas de riso nos cantos, os olhos brilhando, a garganta oscilando, os ombros balançando.
É uma merda amar alguém.
—Eu nem estou surpreso -ele diz, enxugando os olhos. —Apenas me diga que fez do jeito certo.
Eu sorrio, assentindo.
—Polegar pra fora. Fiz certinho.
Nós dois sorrimos um para o outro, compartilhando uma lembrança que temos em comum. Como poderia esquecer de quando soquei aquela garota por ele? Pisco, voltando para a realidade, e ele parece fazer o mesmo, porque um silêncio esquisito cresce entre nós.
Quando estou prestes a perguntar como estão as coisas com seu trabalho, três pares de asas entram em minha visão periférica, e minha mãe está arfando, colocando a mão no estômago.
—Vocês deveriam construir aviões em Prythian. Voar com asas é terrível -ela fala.
Atravessamos os quatro para a Casa do Rio. Não passa despercebido pra mim que é Azriel que toca minhas costas, me levando para longe.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Corte de Sombras e Mundos
RomanceOBRA INSPIRADA EM ACOTAR DE SARAH J. MASS Numa festa de casamento, a última coisa que você espera é dar de cara com um personagem que não existe na vida real. Quando isso acontece com Sol, no casamento de sua prima, é só o começo de coisas estranha...