DEZENOVE

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  - O que eu faço? - perguntei, encarando a clareira em nossa frente.

O vento gélido corrompia o tecido de couro que me cobria, o deixando tão frio quanto. Não quis de alguma forma esgotar o suprimento de energia que tinha ao me esquentar, se é que existia algum limite para o uso. Não quis arriscar. Raence, embora não vestisse seu sobretudo costumeiro, não parecia ser afetado pela temperatura baixa. Não quando andou normalmente até uma das árvores que rodeavam o pequeno campo e colocou a mão descoberta sobre ela.

- Vê? - perguntou, cavando com a unha curta a fina camada de gelo que começava a se estender pelo tronco. - Geada!

- Sim, eu sei o que é isso.

- Ótimo. - Me encarou com os olhos duros, nada gentis. - Descongele a árvore.

Analisei-a até o topo, onde a neve ainda muito estreita começava a se acumular. A árvore era gigante, realmente imensa. Precisaria de muito calor para aquecê-la por inteiro, ainda que não estivesse completamente congelada. Dei alguns passos hesitantes até ele, a grama sob meus pés úmida pelo tempo. Raence não fez questão de desviar os olhos de mim, acompanhando cada movimento meu como uma águia. Quando levantei as mãos para tocar a madeira, em movimentos ágeis, Raence as segurou, me mantendo um pouco mais perto do que deveria de seu corpo.

- Sem encostar nela. Já sabemos que isto você consegue.

- Pensei que teria que treinar mais, afinal ainda não é fácil para mim!

- Estamos treinando.

- Sim, mas não deveríamos ir por partes?

- Já que sabe como treinar sozinha, não sei o que estou fazendo aqui. - ironizou, soltando minhas mãos.

- Não seja rude - reclamei.

- Então não seja intransigente comigo.

Soltei o ar com força, o ignorando e passando a concentrar-me na árvore. Lembrei de algumas coisas que ele tinha me dito nas vezes em que tive de acessar o calor dentro de mim, lembrei da sensação fervente e foi mais fácil daquela vez. Consegui, de alguma forma, um atalho até o ponto mais quente em mim e consegui levá-lo ao meu corpo inteiro. Então meu problema se tornou projetar. Abri os olhos, encarando o tronco à minha frente, os batimentos acelerados, meus lábios pinicando como se queimassem lentamente.. Pela visão periférica vi os olhos negros e profundos de Raence refletindo o brilho quase dourado que irradiava da minha pele, fazendo suas íris cintilarem.

Árvore. Era na árvore que eu tinha que me concentrar. Comecei a pensar no calor como um vento alaranjado, aprisionado dentro de mim. Pensei em como seria quando ele saísse. Desenhei a madeira envolta pela brisa quente, a geada derretendo, virando água e indo ao chão, as folhas pingando sobre nossas cabeças, até nos molhar.

- Lembra de como foi quando deixou sua energia vir até mim? - Raence perguntou, a voz baixa e firme. - Como largou cada fio de controle que tinha? Você foi ensinada a vida inteira que tinha de ser contida, que tinha que impor limites a tudo. Rosealyn, é tudo ao contrário. Você não tem que se conter, você não pode! Sua energia é forte, entendo que deve assustá-la, eu já senti, mas é apenas a sua essência, quem você é de verdade, sem todas as suas regras. Esqueça-as. Permita-se viver da forma que você realmente quer. Permita-se ser você. Jogue suas barreiras, seus limites fora, esqueça tudo o que lhe foi dito antes. Apenas liberte-se.

Uma lágrima involuntária escapou de meus olhos fechados e logo evaporou ao ter contato com a pele de minha bochecha, senti suas palavras no fundo da minha alma, trazendo lembranças de tudo o que me foi negado antes. Vi meu cabelo preso, minha voz silenciada, minha vida nas mãos de outras pessoas. Me vi enclausurada em uma jaula cor-de-rosa. O sangue corria furioso em minhas veias. Então lembrei-me de que não tinha mais que ser daquele jeito. Eu podia me vestir de acordo com o que eu quisesse, podia falar quando quisesse, soltar ou prender meu cabelo de acordo com o meu gosto. Minha vida era minha, não mais deles.

O Diadema Da Coroa [CONCLUÍDO]Onde histórias criam vida. Descubra agora