capítulo cinquenta e três;

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G A B R I E L

— Vai querer algo em especial para o almoço? — minha mãe gritou da cozinha assim que eu entrei.

Segundos depois ela apareceu segurando uma bacia na mão esquerda enquanto a outra misturava o conteúdo. Havia um pano de louça pendurado em seu ombro, e o avental branco que cobria seu tronco estava sujo de algo que parecia chocolate.

Eu sacudi a cabeça, murmurando um "não" e fechando a porta atrás de mim. Atravessei a sala, parando no meio do caminho quando ela se colocou na minha frente.

— O que foi? — A espátula que ela segurava apareceu no meu campo de visão, apontada para o meu rosto enquanto ela franzia os olhos.

— Nada. — Dei de ombros.

— Sua cara diz o contrário — acusou. Eu ri sem muita vontade, desviando do seu corpo para continuar meu caminho.

— Vou querer macarronada. — Parei na porta do meu quarto com a mão na maçaneta, olhando para ela no fim do corredor. — Pode ser?

Ela balançou a cabeça em concordância, me dando um sorriso fechado antes de se virar e voltar para a cozinha.

Eu entrei no meu quarto e encostei a porta, indo até a minha cama que ainda se encontrava desarrumada. Me joguei nela, sentindo minha nuca afundar na fronha e relaxar na maciez.

Minhas têmporas latejavam um pouco, e aquele frio desconfortável no meu estômago me acompanhava desde que ela me mandou embora.

Tudo bem. Eu não deveria tê-la beijado apenas para provocar seu ex namorado idiota que vivia no seu sapato feito chiclete, mas aquele cara realmente me dava nos nervos. Aquele olhar que ele me deu quando me reconheceu? Eu conhecia. Foi o mesmo da festa. Era um que dizia: eu não estou preocupado com vocês os dois, seja lá o que estiverem fazendo.

Naquela noite, eu estava blefando bastante quando falei que estava transando com a sua então "namorada". Aquilo o abalou por um segundo, obviamente, mas não o suficiente. Eu gostaria de saber por que ele tinha tanta certeza; por que mesmo depois de ter confirmado suas suspeitas hoje, ele ainda me encarava como se dissesse que não iríamos a lugar nenhum; como se ela já pertencesse a um.

Eu não sei por que aquilo me incomodou tanto; talvez porque eu não sabia como caralhos a relação deles funcionava e aquilo talvez fosse verdade. Mas não era da minha conta. Muito menos problema meu. Eu e Daphne fodemos apenas uma vez, e se ela decidisse voltar para o cara que botou um belo chifre em sua cabeça, quem seria eu para impedir?

Não tínhamos nada.

Peguei em um outro travesseiro, pressionando-o contra a minha cara enquanto soltava o ar com força. Voltei a inspirar devagar, sentindo o meu ritmo cardíaco acelerar quando reconheci o perfume no tecido. O aroma já estava sumindo, mas deixava claro a presença dela ali.

Praguejei, lançando o objeto para longe de mim e encarando o teto.

Não tínhamos nada, sim, então por que eu me importava, caralho?

Ergui meu tronco, coçando a minha nuca e analisando o quarto. Meus olhos pararam no setup a minha direita e eu ponderei.

Melhor lugar para tirar o stress impossível.

Me sentei em frente ao computador, ligando o mesmo e iniciando o jogo.

" deu de choro por hj né, parça? cola no discord pra gente ir x1 sem perder a amizade", respondi um dos tweets do Moreno.

Coitado. Me achou em um péssimo dia, porque agora eu estava prestes a mostrar por que me chamavam de rei no joguinho.

(...)

— Gabriel, a comida vai esfriar! — Minha mãe apareceu na porta (pela milésima vez?), me avisando.

— Já vou — respondi, ainda vendo as mensagens rolando ali no chat descontroladamente após o resultado do x1.

Eu ganhei, obviamente.

— É isso ou eu venho puxar você pelas orelhas! — ameaçou e eu ri, enviando uma última provocação para o moreno antes de sair e deixar ele e os caras zuando no Discord.

Tirei o fone, me levantando, e só então meu estômago decidiu roncar, me alertando da fome. Eu tinha passado umas duas horas jogando e nem tinha reparado no tempo.

Cheguei na cozinha e me sentei, vendo minha mãe vir até mim com um bolo de chocolate nas mãos, colocando ele sobre a mesa.

Eu arqueei as sobrancelhas, salivando ao ver a cobertura.

— Hm... Hoje é Natal e não estou sabendo?

Ela riu, puxando a cadeira para se sentar.

— Engraçadinho. Faz tempo que eu não fazia, não é?

— Muito tempo — concordei, colocando o macarrão no meu prato. — Café da manhã reforçado, bolo de chocolate... Está bem Masterchef hoje, huh? — provoquei e ela riu.

— Só estou feliz de ter você em casa.

— Uhum... — eu brinquei, colocando uma garfada na boca. — E aí, como está se sentindo em relação a cirurgia?

— Ansiosa — disse. — Muito ansiosa. Parece que foi ontem que descobrimos sobre a remissão.

— É — eu concordei, franzindo o cenho ao perceber. — O tempo realmemte passou rápido.

Acredito que o fato do câncer não ter progredido nos deu essa impressão. As sessões de quimo correram bem, e ela estava muito mais acostumada à medicação. A remissão foi de parcial à total — o que permitiu que se confirmasse a cirurgia —, e ela tinha até decidido raspar totalmente a cabeça. Então, é... até foram bons meses.

— Na verdade... — Minha mãe disse, pausando por um segundo para mastigar a comida e me olhando com hesitação. — Eu venho tendo essa sensação estranha. Desde a semana passada.

— Hum? — Eu empurrei a pasta garganta abaixo, devolvendo o copo para a mesa.

Minha mãe encolheu os ombros, desviando os olhos.

— Sei lá. É como se fosse um pressentimento ruim — explicou, mexendo no prato. — Eu apenas sinto... que algo vai acontecer.

Eu a avaliei, pousando o garfo.

— Você só está nervosa. Isso é normal.

— Você acha?

— É claro que eu acho — sorri, dando de ombros. — Antes a cirurgia era um plano distante e agora está bem na sua porta. É a ansiedade falando. Mas nada vai acontecer. Você vai estar nas mãos de um ótimo profissional.

Ela arrastou o canto da boca em um sorriso pequeno, me fitando.

— Você tem razão.

— E eu também estarei lá. Desde o início até o fim da cirurgia. Não vou a lugar nenhum. Quando perceber, tudo terá acabado.

O sorriso dela se alargou um pouco mais. Minha mãe estendeu a mão, apertando a minha por cima da mesa.

— Com você falando assim , já nem tenho mais medo.

Eu ri, apertando sua mão de volta.

Pode ter — Pisquei. — Eu estarei lá sendo corajoso o suficiente por nós os dois.

Secrets (loud bak)Onde histórias criam vida. Descubra agora