capítulo quarenta e seis;

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D A P H N E

— Entra! — eu falei alto o suficiente para que a pessoa que deu as duas batidas ouvisse do outro lado. Observei a cabeleira do moreno espreitar na porta antes de empurrar a mesma e entrar. — Achei que não viria hoje — comentei, vendo uma sacola plástica na mão dele.

Me virei e ajeitei os travesseiros, afofando-os enquanto ouvia a porta fechar e seus passos se aproximarem.

— E por que achou isso? — Gabriel questionou, curioso, e então deixou o que trazia na cabeceira. Seus olhos foram de mim até a televisão de frente para a cama, e sua testa franziu instantaneamente. — Ia ver sem mim?

Sextas à noite haviam se tornado o nosso dia para assistir série. Na verdade, para assistir a série que ele me recomendou. Eram cinco temporadas de em média dez episódios cada, mas tenho certeza de que se não fosse o nosso trabalho e a falta de tempo que ambos temos, já teríamos terminado faz tempo.

— Ouvi seu carro sair quando estava comendo. Isso foi lá pras oito da noite, agora são duas — pontuei, subindo na cama. — Não achei que fosse voltar.

Nas últimas semanas ele andava bem misterioso. Se não sumia no final da tarde só para aparecer no dia seguinte, ficava trancado por tempos no escritório com PlayHard e saia todo estranho.

Apesar de sermos amigos, eu é que não me meteria nos seus problemas. Acho que se ele quisesse compartilhar, falaria.

— Isso não justifica o fato de que você ia me trair e ver sem mim — ele rebateu, se sentando ao meu lado e apoiando as costas nos travesseiros.

Revirei os olhos, soltando uma risada preguiçosa mas fazendo careta quando uma pontada surgiu no meu estômago.

Desgraça de cólica.

— Se existe alguém mais dramático que você, eu desconheço.

— Não é drama, é um código universalmente aceite — ele garantiu, me olhando como se estivesse explicando algo óbvio a uma criança. — Se você começa a ver série com uma pessoa, não pode simplesmente decidir assistir um episódio sem ela.

— Mas isso não faz sentido no nosso caso. A série não é nova pra você.

— Não importa.

Em um outro momento eu teria continuado com sua birra, mas a dor na lombar me incomodava e tudo que eu queria era apenas deitar e relaxar.

— Tem chocolate aí? — eu perguntei quando dei play e ele concordou, me entregando o saco de plástico com algumas goluseimas. Quase gemi de felicidade quando vi o pacote vermelho.

— Gorda — ele me insultou, recebendo um dedo do meio como resposta.

O bom de assistir com ele era que mesmo que já tivesse visto, não dava spoiler nem fazia comentários no meio (o que era uma coisa que me incomodava, não me pergunte por quê) do episódio, apenas no fim. Talvez porque ele já devesse ter repetido aquilo tantas vezes que já não era surpresa.

— Então agora eu sou uma má pessoa por gostar dela ter morrido? — ele foi sarcástico, mastigando o salgadinho. — A mulher só queria o dinheiro dele.

Eu suspirei, um pouco triste.

— Mas ela meio que fazia bem pra ele. Na verdade, era a única coisa que ele tinha.

O garoto rolou os olhos.

— Se eu fosse o Walter, teria feito o mesmo.

— Claro que teria, você é um insensível — ataquei. — O Walter só se preocupa com os negócios. Isso está me estressando.

— Óbvio que ele só se preocupa com os negócios. A família dele está em causa.

— Então quer dizer que você faria qualquer coisa, até machucar uma pessoa que não tem nada a ver, só por causa da sua família? — perguntei. — Isso é ridículo.

Gabriel absorveu minhas palavras; a velocidade da sua boca diminuindo na medida em que sua testa se enrugava. Ele quebrou o contato visual, analisando o nada, meio pensativo.

— Tecnicamente, ele não a machucou — disse, vagamente, ainda sem olhar pra mim. — Só não deixou que ela interferisse no bem estar da família dele.

Eu arqueei uma sobrancelha, ainda inconformada, porque o personagem teve a chance de salvar alguém mas não fez por puro egoísmo.

— Sabe que isso não faz dele uma pessoa menos pior, não é?

Gabriel enfim me encarou, fitando o meu rosto em silêncio por tanto tempo que eu me perguntei se havia resquício de chocolate ali.

Balançando a cabeça como se espantasse uma ideia, ele voltou a atenção para o pacote em suas mãos. 

— É, eu sei — declarou, distraído. — De qualquer forma, o Walter não tem culpa se a namoradinha do cara resolveu encher o cu de heroína.

Eu bufei, voltando a atenção para a TV quando o outro episódio começou.

(...)

Despertei ao ouvir o barulho de uma porta fechando. O quarto estava completamente escuro. O cobertor até o pescoço — que eu não me recordava de ter colocado — protegia o meu corpo do ar condicionado (que eu não me recordava de ter ligado).

Ainda sonolenta, eu me lembrei que estava vendo série com Gabriel antes dele começar a falar algo e sua voz começar a soar como um zumbido.

Após constatar que ele não estava mais ali, eu voltei a fechar os olhos, não demorando a cair no sono novamente.

Secrets (loud bak)Onde histórias criam vida. Descubra agora