Capítulo 31

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Nathan

Gelado. A água desce como facas, rasgando a carne das minhas costas.

Gelado. Tenho esperança de que tudo que estou sentindo desça pelo ralo, mas obviamente é inútil. Eu definitivamente não desejo essa sensação a ninguém, passar anos mergulhado numa realidade que num piscar de olhos cai por terra e de repente você não reconhece mais a sua vida.

Gelado. O mar de mentiras em que estive enfiado chegou ao fim, mas não me sinto nem um pouco aliviado. Por mais que tenha me libertado daquelas redes que me prendiam no escuro, não sinto que estou na parte clara.

O que você faz agora? Como recomeça?

Gelado.

Água gelada, peito gelado, relações geladas... Como construir uma família do zero já tendo todos os integrantes de uma? Lá em baixo tem duas pessoas que se conheciam melhor do que ninguém e agora são dois estranhos com memórias dolorosas.

Não deixo de pensar que posso ter sido muito duro com minha mãe, que a situação dela acaba sendo a mais tensa de nós todos.

É a irmã dela, a irmã que ela ama e dedicou a vida para tentar ajudar, a pessoa em quem ela mais confiava e que a traiu. Eu nunca senti tanto orgulho quanto sinto da minha mãe, pela resistência dela, a perseverança.

Do lado de cá eu vi diversas vezes ela ameaçar querer procurar meu pai, entender o que houve, o por quê de tudo e ser desencorajada em seguida, pela Erika. Depois que meus avós morreram, ambas ficaram devastadas, mas minha mãe sempre parecia mais quebrada e agora eu sei o porquê.

Tento manter na cabeça que as memórias durante uma crise de personalidade são apagadas, como se nunca tivessem existido, e que Erika pode nem se lembrar de tudo que fez. Mas isso tudo parece diabólico demais para não ser pensado e estruturado. E por quê? Por um namoro que não deu certo? Não faz sentido.

Ouço toques na porta e me lembro de que tenho vida além do chuveiro. Embora ainda esteja um pouco atordoado, me sinto mais calmo, e saber que meu pai está com minha mãe agora, me deixa mais tranquilo.

Acredito que eles tenham muito para conversar entre si. Chego na porta enrolado na toalha e vejo o rosto dele do lado de fora, dou espaço para que ele entre e troco de roupa no banheiro.

Me encosto na sacada, tentando deixar a mente vazia, mas definitivamente não consigo.

Ricardo: Como você está?

Nathan: Sinceramente? Não sei - digo sincero, balançando a cabeça. Ele para do meu lado, sem dizer nada - sei que não estou bem.

Ricardo: Mas vai ficar - ele diz rápido e eu o encaro - você passou por muita coisa ruim, Nathanael. Tente não ser muito duro com ela, nem consigo mesmo. Uma coisa que você vai aprendendo com a idade é que nada fica ruim para sempre, nem bom para sempre. A vida sempre tende ao equilíbrio, e acho que nossa conversa hoje foi o primeiro passo para uma balança positiva - sinto uma pontinha de empolgação na voz dele e isso me deixa curioso. Algo aconteceu enquanto eu me retirei da cozinha - convidei Marta para almoçar, e mesmo que ela não tenha aceitado agora, não disse um não definitivo.

Uma faísca de alegria. Uma coisinha atoa que me traz algo muito bom. Nunca imaginei os dois juntos, mas sempre imaginei minha mãe com alguém que a amasse e a tratasse de forma decente. E parece que esse alguém apareceu. Felizmente, essa pessoa é ele. Pela primeira vez não me importo que seja ele, eu até prefiro. Sei que mesmo com todo o baque que tomamos hoje, o clima entre nós três irá melhorar.

Ricardo: Nathan, posso pedir só um favor? - concordo suavemente com a cabeça, receoso do pedido - pode, por favor devolver o meu caderno? - solto uma risada alta, acompanhado dele. Pela primeira vez sinto que pode haver nós, eu e ele, na mesma frase.

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