Alienação parental

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    A volta de Mary do hospital fez Miguel sair em disparada para abraçar a irmã.
    _ Maaaana!!! Vem ver!!! O alicerce da casa nova já tá pronto! Veeeeem!!!
    Puxou a irmã pela mão,  eufórico... Foram até onde despontavam enormes cubos de pedra-ferro, cuidadosamente empilhados, formando pilastras extra reforçadas. Sobre elas,as primeiras vigas, sobre as quais seria colocado o assoalho de madeira da casa nova.
    _ Nosssssa!!! Que grande vai ser a casa!
    _ Mana! Mana! O pai falou que vai ter um porão grandão, pra gente brincar. Ahhhh, e um sótão grandão também!!!
    Mary não entendeu nem a metade do que Miguel falou, pois o menino estava tão feliz com a volta da irmã, que não parou de falar um minuto.
    _Vem, mana! Vamos! Vou te mostrar!
    Mary e Miguel exploraram todo o alicerce da construção.
    _ Vem! Vamos andar por cima das vigas, que nem aqueles tios do circo fazem!
    Arnaldo acompanhava as crianças à distância, com o olhar. Estava preocupado com Mary. Ela ainda estava meio fragilizada, pelo uso da medicação forte durante a internação hospitalar. Mas resolveu confiar, e saiu, deixando as crianças brincar.
    _ Aaaaaai!!!
    Arnaldo ouviu o grito de Mary, acompanhado do grito de Miguel.
    _ Maaaaana!!!
    Mary caíra enquanto corria sobre uma das vigas. Com a perna toda ensanguentada, tentava se manter em pé, mordendo os lábios para não chorar.
    _ Fica aí, mana! Vou chamar o pai!
    Arnaldo já estava ao lado de Mary, erguendo-a nos braços.
    _ Vamos lá, minha nega! Mal você chega do hospital e já quer voltar, é? Vamos ver essa perna...
     O pai levou Mary até o interior da casa, fez assepsia do local machucado e um curativo.
    _ Pronto! Tá pronta pra próxima!!! Essa passou perto! Se o machucado fosse um pouco ao lado, acertaria uma veia maior e perderia mais sangue ainda...
    Mary, recuperada da lesão na perna, pipocava ao redor do pai...
    _ Meeu papaaaaai... Meu paizinho...
    Enroscava-se nas pernas do pai, e saía correndo pátio afora... Irene acompanhava a filha com os olhos arregalados... No rosto, um ar de reprovação... Acendeu mais um cigarro, e soltou longas baforadas, como se quisesse expelir a raiva pela filha estar tão feliz perto do pai.
    Arnaldo sentiu-se incomodado com o jeito de olhar de Irene. Sentiu que algo não estava bem. Resolveu indagar o motivo à esposa. A resposta foi como se fosse uma facada:
    _Não quero que a Mary fique tão perto de ti. Tu é homem e pode"abusar dela"!
    _Santo Deus, Irene!!! Mary é minha filha, e só tem 4 anos! Como pode pensar que eu tocaria em minha própria filha???
    _ Tu é homem, e nem o Miguel nem a Mary deveriam ficar perto de ti. Tu vai" f... " eles!!!
    Arnaldo estava transtornado pelas palavras de Irene. Virou-se e saiu, para que Irene não notasse as lágrimas em seus olhos. Como poderia ele tocar com segundas intenções numa criança? E  seus filhos? Foi até perto do galpão das vacas, caiu de joelhos, olhou para o céu...
    _Deus... Só quero meus filhos felizes... Mais nada... Te agradeço por sempre estar comigo, mas está difícil... Difícil entender a cabeça de Irene... Peço que me faça compreender...
    O choro copioso do pai chamou a atenção de Miguel, que na sua infantil inocência, abraçou o pai...
    _ O que foi, paizinho?
    Arnaldo enxugou os olhos, como a querer esconder o pranto...
    _ Nada não, filho. Uma dor aqui no lado, na barriga, está me incomodando.
    A mentira fez Arnaldo erguer-se e sair dali, deixando Miguel sem resposta. Odiava ter que inventar algo para os filhos, porém, a situação não exigia outra atitude. A alienação parental estava empurrando o amor da família para escanteio.
    _ Miguel! Mary! Já aqui!!!
    Era Irene, em tom imperativo... As duas crianças sentiram que algo não estava bem. A mãe acendeu mais um cigarro, ainda envolta pela fumaça do último que fumou.
    _ O que foi, mãe?
    _ Se vocês continuarem a"dar trela"pro véio, vou levar vocês pra longe daqui !!!
    Mary e Miguel se entreolharam, com lágrimas nos olhos. Até então, não tinham imaginado sua vida longe daquele sítio, e sobretudo, longe do pai. Saíram de perto de Irene .
    _ Vem, maninha. Vamos andar de carrinho de lomba!
    Era o macete de Miguel para distrair Mary. Ela amava as corridas de carrinho de lomba com o irmão. Mal eles sabiam que a alienação parental estava para ser o estopim para quebrar mais ainda a harmonia da família. Miguel e Mary sentiam-se mais unidos, a cada dia que passava. E, em contrapartida, Arnaldo e Irene sentiam-se cada vez mais distantes. As brigas tornaram-se frequentes e violentas, tanto em palavras como em ações. A construção da casa e seus acabamentos foram mais motivos para brigas que para momentos de paz.
    _Preciso ir ao banco, pagar parte do empréstimo que fizemos para construir a casa. Ela está quase pronta. A colheita desse ano foi boa e vai dar para quitar uma boa quantia.
    _ Eu tinha planejado de viajar, e visitar minhas primas de Santa Catarina. Quero uma parte do dinheiro da venda dessa colheita.
    _ Você sabe que o empréstimo precisa ser pago. E as crianças precisam de roupas melhores. Miguel vai entrar na escola esse ano, e só tem roupas remendadas.
    _Miguel indo pra escola ou não, eu vou visitar minhas primas.
    Irene ajeitava as panelas no fogão à lenha, já bufando.
    _Pensa bem, Irene. Se a gente não pagar essa dívida, poderemos perder as terras. Dei as terras como garantia na hora do empréstimo.
    _E eu com isso? Tu que fez o empréstimo e eu fico sem visitar minhas primas? Nunquinha!!!
    _Pense no Miguel e na Mary...
    Arnaldo, já sem argumentos, encarou com firmeza o rosto enraivecido  de Irene. Fato que desencadeou uma reação inesperada na mulher, já colerizada, que segurou firme um caneco no qual fervia água. Sem hesitar,jogou o conteúdo do caneco no rosto de Arnaldo, que gritou de dor, segurando o rosto queimado entre as mãos.
    _ Já falei que não vou mudar de ideia. E não adianta tu usar o Miguel e a Mary pra me convencer a não viajar à Santa Catarina. Eu vou e pronto!
    Arnaldo saiu gemendo de dor, pela queimadura no rosto, à procura de socorro.  Irene nem olhou. Resmungou qualquer coisa e acendeu mais um cigarro. Longas baforadas formavam um ar carregado de um cheiro forte de nicotina.
    _ Miguel!!! Mary!!! Quero falar com vocês!!! Aqui, já!
    Prontamente, as crianças cerreram...
    _ Falei com "o véio"... Quero viajar pra Santa Catarina e ele não quer que eu vá. Semana que vem começa a aula do Miguel, e depois eu vou sim. Tenho direito de viajar.
    _Como o Sr conseguiu se queimar no rosto,Sr Arnaldo?
    O médico que atendeu Arnaldo estava pasmo.
    _ Fui abrir uma panela que estava fervendo, e o vapor me pegou.
    O Dr olhou novamente para o rosto de Arnaldo , parecendo incrédulo. Mas nada argumentou.
    _ Aqui está uma pomada para queimaduras, e fique longe de panelas de água fervente.
   

   
   

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora