Uma carona especial

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     Irene inclinava o corpo e tentava a todo custo  pegar as laranjas que estavam no galho da laranjeira, à sua frente, porém, ao aproximar-se, parecia que as frutas não existiam. Suas mãos passavam pelas laranjas sem tocá-las. O galho da laranjeira parecia tão real, mas suas mãos tocavam apenas as pilastras do viaduto. Olhou para o colchão ao seu lado, onde a criança adormecida lhe parecia ter um rosto mais do que familiar.
   _ Eu vou pegar pra ti, filha! Vi que tu tá tão branquinha, fraquinha... Deve tá com muita fome... Tá tão pequena e magrinha, com olheiras... Nem consegue levantar da cama...
    E novamente seus olhos pareciam focar nas laranjas à sua frente. E repetidas vezes Irene estendeu as mãos na direção das frutas, porém, no momento que suas mãos as tocariam, nada havia além das rudes pilastras.
    _ Espera  só um pouquinho mais, Mary... Vou pegar um cesto e mudar de posição em cima da laranjeira. Assim, se eu conseguir pegar o galho, fica fácil de alcançar elas antes que caiam. Tu precisa comer... Tá com olheiras... Tá branquinha... E esse galho da laranjeira tá lotado de laranja madurinha!
    E mais uma tentativa frustrada de colher as referidas frutas. As laranjas apareciam aos olhos de Irene, e em seguida, desapareciam como que por encanto.
    _ Tu espera só mais um pouquinho, filha... Ou eu colho essas laranjas pra ti, ou não me chamo...
    Irene deixou a frase incompleta quando, num ímpeto, sentiu seus pés escorregando. Olhou o chão e viu que estava prestes a cair em um profundo e escuro poço, que parecia crescer a cada pulsar do seu coração.
    _ Mary! Aguenta aí que eu já vou te trazer comida! Se eu não conseguir colher essas laranjas, vou procurar outra coisa!
    Irene sentia-se escorregando para as profundezas daquele estranho vácuo aos seus pés. Tentou em vão agarrar-se às bordas do poço, mas sentiu seu corpo deslizando através da terra solta, para dentro daquela imensidão escura e fria...
    _ Mary! Maryyyyyy!!!
    Irene despertou do sonho que tivera, ouvindo seus próprios gritos. Seus olhos azuis arregalados pousaram de repente na criança deitada à sua frente, que dormia serenamente. Irene, no auge dos seus devaneios, vira no rosto de Ângelo, o rosto de Mary.
    _ Não entendo... No outro dia eu vi o rosto do Miguel no Ângelo... Hoje eu vi o rosto da Mary... O que Deus ainda quer me mostrar?
    Irene deitou-se novamente sobre o papelão que lhe servia de colchão, mas a dor incômoda da ferida nas costas não a deixaram adormecer novamente. Ficou ali, sem sono, olhando para Ângelo. Parecia que ele se duplicara nos instantes em que a dor a fizera contrair-se, surgindo aos olhos de Irene, ali, os rostos de duas crianças distintas: Miguel e Mary, deitados lado a lado, sob o barulho constante daquele viaduto. Parecia que o tempo a levara de volta àquela velha casa cheia de cupim, quando as crianças eram pequenas... Na época que a simplicidade da roça não tinha dado lugar às traições, ao abandono, ao luxo e à indiferença...
    _ Quantos anos... Meus filhos não se vêem a cinco anos...
    Duas grossas lágrimas desceram pelas faces de Irene, que, pela primeira vez, parecia realmente sentir a ausência de Miguel e Mary.

                       *

    Após averiguar alguns fios de arame farpado partidos pela ferrugem ou arrebentados pelos animais, Arnaldo e Juvenal voltaram até a casa de Tina.
    _Vamos ter que refazer boa parte da cerca, ou logo o gado e os cavalos vão parar na lavoura de algum vizinho.
    _ Bah! Logo agora, que tenho que segurar as pontas! Logo vou começar a fazer as radioterapias! O dinheiro do café colonial e da rifa preciso guardar pra não faltar comida ou remédio pros meus filhos. Não posso nem aceitar encomendas, pois não tenho mais a padaria. O fogo estragou quase tudo...
    Arnaldo pousou a mão calmamente no ombro de Tina.
    _  Calma, Tina! Vamos fazer assim... Eu tenho alguns rolos de arame de segunda mão que não vou precisar por enquanto.  São arames bons ainda. Vamos dar uma ajeitada na cerca com esse arame, até que dá pra fazer uma cerca nova.
    _ Se isso segura os bichos no potreiro, pode fazer! Pelo menos até que eu consiga voltar a trabalhar e produzir. Depois, a gente refaz toda a cerca.
    _ Fica tranquila, Tina! Eu e o Juvenal vamos quebrar esse galho por enquanto!
    _ Assim que eu puder, vou pagar pelo arame e pelo serviço. Vamos anotar tudo que te devo.
    _Quando eu precisei de ajuda pra cuidar do meu filho doente, tu e o Claudio foram minhas âncoras, ou meu barco teria afundado... Não me deve nada!
    Após uma série de reparos, a cerca do potreiro ficou perfeita com o trabalho de equipe de Arnaldo e Juvenal.
    _ Maís uma coisa que aprendi na vida, Arnaldo! A uns anos atrás, antes do acidente, eu nunca pensaria que um dia eu ajudaria a arrumar uma cerca de potreiro! Minha vida era só caminhão, cargas e estradas!
    _ Os caminhos de Deus nos surpreendem, meu amigo! O nosso tempo não é o tempo de Deus... E tomara que essa maré de dificuldades da Tina passe logo, porque ela não merece passar por tudo isso! Ela e Claudio sempre se preocuparam em ajudar os outros, e agora, é ela que precisa de nós. E muito!
    Dois meses passados, e Tina, após deixar Claudino e as manas aos cuidados de Teresinha, estava preocupada.
    _ Estranho... Deve ter dado problemas no carro do Arnaldo... Não posso perder a consulta! Vou começar as radioterapias semana que vem...
    Deve ter dado algum problema com o carro, Dona Tina. Daqui a pouco ele deve estar aqui.
    _ Vou indo a pé até a cidade, Teresinha. Se ele ainda vier, diga que já fui. Se algum conhecido passar por mim, talvez eu consiga uma carona.
    _ Pode deixar, Dona Tina....
    _ E deixe a " Dona" pra outra pessoa, Teresinha! Somos tão próximas que parecemos até irmãs!
    Teresinha deu uma risadinha.
    _ Irmãs... Eu sou de cor e tu é branca...  Isso não se explicaria...
    _ E daí? Poderíamos ser de pais diferentes, não acha? Ou irmãs adotivas... Isso Deus explica!
    Teresinha olhou para Tina com admiração.
    _ Sabe de uma coisa? Ninguém teve tanta consideração por mim, assim,  até agora... Mas vái... Deixa eu te dar um abraço e vai pegar a estrada. Quem sabe, alguém conhecido te alcança. Se o Arnaldo aparecer, eu digo que tu já foi indo.
    Tina saiu estrada afora, esperando não perder a consulta médica, pois um atraso certamente geraria uma nova marcação. E o tempo era curto para começar a fazer o tratamento de radioterapia. Olhou o relógio de pulso e , fazendo as contas para o tempo que ainda levaria para chegar ao destino, sabia que à pé não conseguiria.
    _ Deus... Se for a tua vontade, ajude-me a chegar em tempo!
    Tina mal falara, e uma moto diminuiu a velocidade, andando ao seu lado. Evitou olhar, pois o capacete do piloto não lhe permitia reconhecê-lo. Apressou os passos, até que uma vez feminina a fez parar:
    _ Professora Tina! Não precisa ter medo! Sou eu!
    A condutora da moto tirou o capacete, revelando sua identidade.
    _ Liane! Uma das minhas alunas mais aplicadas! A quanto tempo!
    _ Pois é, profe... Eu tô trabalhando como merendeira numa creche lá no centro. Tá precisando de carona? Tenho um capacete no baú da moto...
    Tina olhou-a e sabia que tinha sido mandada por Deus. Olhou para o céu e silenciosamente murmurou:
    _ Obrigada, Deus... Obrigada, Liane... Se não fosse você eu iria perder minha consulta pra encaminhar minhas radioterapias.
    Tina colocou o capacete e em alguns minutos estavam chegando ao centro de Igrejinha.
    _ Pronto, profe! Agora vai chegar até antes da hora...
    _ Muito obrigada, Liane... Não sabe o quanto me ajudou!
    Liane olhou para Tina com os olhos rasos d'água.
    _ Eu quero te ajudar mais, profe, por tudo que me ensinou!
    _ Mas já me ajudou, me dando carona... E isso não tem preço...
    Liane hesitou antes de falar.
    _ Eu sei, profe... Mas... Quero ajudar mais...
    Ao olhar surpreso de Tina, Liane abriu a mochila, retirou de lá a carteira, e entregou-lhe um maço de dinheiro.
    _ Isso é tudo que tenho na carteira hoje, mas eu juro que eu gostaria de ter mais, pra te ajudar... Sei que a senhora tem os filhos pra alimentar, e tem que fazer as radioterapias pra curar esse câncer logo!
    Os olhos de Tina encheram-se de lágrimas, pois Deus tinha colocado a pessoa que um dia ela ensinara com tanto carinho, para ajudá-la nesse momento tão difícil. Sua voz quase não saiu.
    _ Não pode fazer isso, amada! Tu tem tuas gêmeas também... Vai te fazer falta.
    _  Posso fazer e vou fazer, profe! Eu gostaria de ter como te ajudar mais! Eu sei que com esse dinheiro não vai dar pra fazer muita coisa...
    _ Estou sem palavras, Liane... Que o bondoso Deus abençoe você sempre, amada.
    _ E eu quero te ver ficar boa logo, profe! Esse é o preço da minha carona!
    Tina sorriu.
    _ Então tenho que ficar boa mesmo... Ou vou ficar em dívida com você!
    _ E dívida é sagrada! É que nem promessa! Sério... Vai lá, profe... Não era a senhora que sempre dizia "Bola pra frente, ou não tem mais jogo!"?Tem mais três jogadores no teu jogo... As manas e o pequeno Claudino.
    _ Verdade. O jogo não pode parar! Meus filhos dependem de mim!
    _ Agora tenho que correr, ou as criancinhas da creche ficam sem a profe delas também!
    Liane abriu os braços e as duas selaram com um abraço aquela amizade tão especial.
   
   

                      
   
   
   

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora