Pretinha e Cisco

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    A casa de Edelvina ficou de pernas para o ar, após a faxina de Irene. A filha andava de um lado para o outro, à procura de objetos pessoais que Irene mudara de lugar ao "organizar a casa".
    _ Eu não me acho dentro da minha própria casa! E pensar que ela quer voltar, e fazer faxina aqui de novo... Isso me assusta!
    A moça parou de repente, com o dedo em riste, erguendo as sobrancelhas.
    _ Já sei! Vou fazer um ritual um pouquinho diferente daqueles que costumamos fazer. Aí, quem sabe, os orixás se revoltem e ela desiste de vir fazer a faxina pra pagar o trabalho.
    _ Até que a ideia não é má... Mas, eu nunca fiz um estrago nos meus rituais... Vai que...
    Saltitante, Eliane sorria e gesticulava, imitando o jeito corcunda de Irene.
    _ Vamo fazer só a metade do trabalho... Assim, a cura dela não vai acontecer... E... Ela vai pro beleléu! Simples assim... E ela vai ficar assim... Assim... E assim!
    _ Então, o que nós tamo esperando? Tranquei a galinha na gaiola ontem à noite. Vai lá buscar ela, que preparo o resto!
    _ Mas eu tô curiosa. O que tu vai fazer pro ritual não agradar os orixás?
    _ Ainda não sei, mas eu vou achar um jeito desse ritual dar errado, e essa chaminé ambulante nunca mais querer fazer faxina pra mim!
    Edelvina abriu a gaveta, pegou o azeite de dendê, milho e o cordão.
    _ Já sei! Vou deixar de colocar milho e água pra penosa! Assim, o sacrifício vai morrer de fome e sede. Os orixás vão se revoltar e tirar a Irene do nosso caminho! Ninguém vai desconfiar que ela foi pro beleléu por um trabalho mal feito!
    Eliane sorriu, maliciosa.
    _ E, de quebra, a gente fica livre pra sempre daquele traste! Não suporto nem o cheiro dela... Parece até que tá apodrecendo viva...
    Edelvina abriu a garrafa de azeite de dendê, fazendo uma careta.
    _ Vai ver que tá podre mesmo... Não viu as feridas nas costas dela?  Ela usa bastante roupa pra disfarçar, mas o cheiro passa... Vai lá, na gaiola grande do galpão, e pega a bichinha do sacrifício pra mim!
    A moça saiu do recinto, enquanto Edelvina separava o cordão e o azeite de dendê  para o ritual. Ao voltar, Eliane parecia estar travando uma verdadeira luta com a pobre galinha.
    _ Ela me bicou! Essa cria do Dianho! Não vou segurar ela nem mais um minuto!
    _  Dá ela aqui! Pode deixar ela comigo, que eu dou o banho nela!
    Edelvina prendeu as pernas da pobre ave e começou a banhá-la,  da cabeça aos pés, com o azeite de dendê, esfregando repetidas vezes para impregnar completamente o óleo nas penas.
    _ Tem que tá tudinho as penas encharcadas pelo azeite. Olha... Assim!
    A pobre galinha arregalava os olhos a cada toque das mães de Edelvina. Parecia que ela pressentia o seu cruel destino.
    _ Prontinho! Agora, que ela tá prontinha, vamos fazer o resto na única encruzilhada que eu conheço, perto daquela casa onde tem os bonecos!
    Eliane hesitou, tentando mudar o lugar do ritual, pois não queria revelar que foi ali que roubou a galinha.
    _ Mas...  Por que precisa ser ali? Não tem outro lugar?
    _ É o lugar perfeito! Tem que ser ali!
    Edelvina e a filha levaram  a pobre galinha até o lugar escolhido. A pobre ave, presa com uma pata a uma pedra, através de um cordão, deixaram ali apenas um pote de azeite de dendê.
    _ Nada de água nem de milho, guria. Se o sacrifício tiver sede, vai tomar azeite de dendê! É o que manda o ritual! Se ela tiver fome, que coma pedras! Assim, a Irene vai...
    Edelvina girou por várias vezes, sacudindo ombros e quadris, proferindo alguns sons estranhos.
    _ É pra agradar os orixás, filha! Eu tenho que fazer minha parte certinha, ou vai recair tudo em dobro em cima de mim.
    Após concluir o ritual, as duas mulheres afastaram-se do local, deixando a pobre galinha ali, presa , sem compreender o que estava acontecendo.
    _ Vamos a um merecido café, agora! Gastei toda minha energia com esse ritual!
    Não muito longe dali, Irene sentiu um tremor percorrer o corpo, sacudiu os ombros e desmaiou. Macega, que a tudo assistia, prensou ser uma brincadeira da mulher.
    _ Tu tá achando que eu vou acreditar que tu tá desmaiada? Me poupe! Quando tu terminar o teu show, me avisa, tá?
    Na encruzilhada, instintivamente, Pretinha parecia  despertar de um transe. Tentou sacudir as penas grudentas e começou a bicar freneticamente o cordão que prendia sua pata, até rompê-lo. Olhou ao redor... Ela conhecia bem aquele local, pois era próximo à casa de Tina, onde costumava ciscar para caçar minhocas e insetos.
    _ Chico! Eu tenho a impressão de que ouvi a Pretinha...
    _  Tu tá é ouvindo coisas, mana!Ela sumiu faz mais de uma semana! Algum gato-do-mato deve ter levado ela... Tem muito bicho do mato por aí, comendo galinhas!
    _ Ainda bem que botamos os ovos que ela tava chocando na chocadeira, e conseguimos salvar ao menos um... O Cisco vai crescer e vai ficar bem parecido com ela, eu acho...
    _ Mas... O Cisco é amarelinho... Será que as penas dele vão mudar de cor? A Pretinha não tem nenhuma pena amarela!
    _ Dá pra ver que tu é da cidade, Chico! Os pintinhos mudam a cor das penas quando crescem.
    Francisco tocou no ombro de Lenir, ergueu as sobrancelhas, em sinal de silêncio.
    _ Psiiiiu... Acho que eu também tô ouvindo coisas, mana... Deve ser muita saudade da Pretinha... Parece mesmo o cacarejar dela!
    Lenir tirou Cisco de cima do ombro, desenrolando um fio de cabelo que se enroscara no bico do pequeno pintinho, que piava a cada toque.
    _ Não precisa ter medo não, Cisquinho... Não quero te machucar! Só quero desenrolar o cabelo que tá enroscado no teu bico!
    Naquele momento, Lenir foi interrompida por um cacarejar bastante familiar. Seus olhos encontraram no chão, sem acreditar, a galinha que desaparecera .
    _ Olha, Chico! A mamãe do Cisco voltou! Pretinha!!!
    A alegria transparecia nos olhos e na voz dos jovens. A pobre ave, tentando andar, sentiu as pernas fracas e  parou. Parecia pedir socorro.
    _ Me ajuda aqui, Chico! Pega o Cisco que eu tenho que dar um banho na Pretinha! Acho que ela caiu numa caixa de gordura! Tá que não consegue caminhar! Coitada!
    Lenir colocou detergente e água morna em uma bacia, mergulhando Pretinha e esfregando repetidas vezes as partes mais impregnadas de azeite de dendê.
    _ Coitada... Bota o Cisquinho na chocadeira e traz mais água morna e detergente. Temos que trocar essa água, que tá pastosa, de tanta gordura!
    Francisco esfregou o nariz.
    _Que cheiro ruim, esse! Onde será que ela tava? Faz tempo que ela sumiu!
    _ Isso não importa, Chico! O que nós temos que fazer agora é salvar a coitadinha! Troca essa água e coloca bastante detergente na bacia! Assim, ela fica livre dessa gosma que tá matando ela!
    Após uma hora e mais duas trocas de água morna com detergente, as penas de Pretinha finalmente ficaram livres do azeite de dendê.
    _ Pronto! Agora segura ela, que vou pegar o secador de cabelos,  secar ela rapidinho, porque tá quase na hora de buscar as crianças na escola.
    Após secar totalmente as penas da pobre ave, Lenir colocou-a cuidadosamente no interior de uma caixa de papelão com palhas secas, sob a mesa da cozinha.
    _ Pronto, Pretinha! Aqui tu vai ficar quentinha e protegida, até a gente voltar com as crianças. Depois, vamos te apresentar teu filho Cisco!
    Na saída da escola, Lenir olhou com cumplicidade para Francisco, porém, deixou escapar para os dois pequenos:
    _ Temos uma surpresa pra vocês dois! Tá lá em casa...
    Os olhos de Valéria brilharam de repente.
    _ A mamãe voltou pra casa? Ieeeeebbbaaaa!!!
    Tristemente, a moça inclinou-se diante da menina.
    _ Não, meu amor. Eu também gostaria que tua mamãe tivesse voltado. Mas, infelizmente, não é isso... Teu papai telefonou pra gente ontem, e disse que tua mamãe tá muito melhor, e que só precisa fazer mais um procedimento, aí ela volta pra casa.
    _ Proce... O quê? O que é isso, mana?
    _ É uma coisa que só os médicos podem fazer... Mas logo tua mamãe vai tá boa, pra voltar pra casa.
    Claudino abriu um sorriso, saltitando ao redor de Valéria, repetindo:
    _ Então... Foi a minha mamãe que voltou! Eu empresto a minha mamãe pra ti, Valéria... Empresto, sim... Foi ela que voltou! Foi, né?
    Com os olhos marejados, após um breve silêncio, Francisco respondeu:
    _ Infelizmente, não... A Lenice telefonou hoje de manhã, dizendo que a tia Tina continua em coma.
    Os olhos arregalados de Claudino expressaram incompreensão. Querendo entender do assunto, com as mãozinhas na cintura, não segurou as palavras:
    _ Coma?  Não é "cama", Chico? No hospital, as pessoas não ficam na coma. Ficam na cama mesmo, pra ficar boas do dodói! Chicoooo!
    Lenir olhou com tristeza para o irmãozinho., explicando:
    _ Meu amor... A nossa mamãe ainda não acordou depois de ser operada. É isso que o Chico quer dizer.
    As duas crianças entreolharam-se.
    _ Então, se não é nenhuma das nossas mamães, o que é a surpresa?
    Francisco sorriu, piscando.
    _ Mas bahhhh!!! Mas se a gente for contar, não é mais surpresa!
    Claudino fez beicinho, chutando uma pedra.
    _ Tá bom... Eu vou ligeiro, pra chegar antes de todo mundo em casa! Vem, Valéria!
    As duas crianças, de mãozinhas dadas, desataram na corrida, na direção da casa de Tina. Abriram a porta e seus olhos percorreram a cozinha, até encontrar o olhar tranquilo de Pretinha, acomodada sobre as palhas quentinhas.
    _ A mamãe do Cisco! Ela voltou! Ieeeeebbbaaaa! Vamo botá o Cisco junto com ela!
    Lenir, diante da enforia das crianças, interrompeu:
    _ Calma, seus apressadinhos! Ela nem sabe que o Cisco é filho dela. Vamos devagar. O Chico vai pegar o Cisco na chocadeira, aí a gente vê o que acontece.
    Infelizmente, Pretinha arrepiou as penas e desferiu uma bicada nas asas do pintinho.
     _ Foi o que pensei. Ela não viu ele nascer, aí não reconhece o Cisco como filhote dela. É melhor a gente cuidar dele enquanto é pequenininho e indefeso.
    Claudino não compreendeu e resmungou:
    _ Mas... Ele é filho da Pretinha! Nenhuma mamãe pode machucar seu filho! Não tá certo...
    _ Eu sei, mano. Mas ela não sabe que ele é filho dela. Hoje vamos deixar o Cisco na chocadeira e amanhã vamos pedir pro Arnaldo ajudar a gente fazer uma gaiola com "dois quartos"... Um pra Pretinha e um pro Cisco, pra eles ficar pertinho um do outro sem conseguir se bicar, até se conhecer... Acho que vai dar certo!

   
   
    

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora