Diante de Deus

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    Como um furacão, entram na casa duas crianças.
    _Tu não me pega!
    _ Pego, sim, Claudino! E vó fazê picadinho de ti! Tu quebrou a cabeça da minha boneca!
    Lizandra ergueu os olhos na direção dos pequenos:
    _ Epa, epa, epa! Quem vai fazer "picadinho"de quem? E por causa de uma simples boneca?
    Dois pares de olhos arregalados e estáticos pararam imediatamente sobre a figura de Lizandra. Valéria arriscou uma pergunta:
    _ A senhora... Veio trazer a mamãe do Claudino? A tia Tina tinha ido pra cidade...
    Lizandra olhou tristemente para aqueles dois rostos angelicais, sem coragem de falar sobre o ocorrido. Tocou de leve o ombro de Lenice, pedindo:
    _ Vai lá, amada... Pegue teus documentos, umas duas mudas de roupa, pro caso dela ter que ir pra outro hospital... Eu fico com as ferinhas aqui até que venha a Lenir, ou a Dona Teresinha...
   As crianças entreolharam-se tristemente. Pareciam ter compreendido o sentido das palavras de Lizandra. Os inocentes olhos ficaram marejados . Claudino gaguejou:
    _ Ti...tia... A mana tem que í po hospital pá quê?
    Diante da situação embaraçosa, Lizandra tentou amenizar, passando a mão naquelas duas cabecinhas inocentes:
    _ Vou conversar com a tua outra mana e a Dona Teresinha...  Depois, vocês saberão o que houve...
    Claudino não se conteve, sentindo as lágrimas rolando:
    _ Ti...tia...E... Eu sei o que foi... As nossas mamães tão dodói, né? Eu ouvi... Lá fora tinha uma nuvem com asas, que disse que minha mamãe e a mamãe da Valéria tão mu... muito, muito dodói... E que eu e a Valéria é pra nos comportar direitinho...
     Lizandra arregalou os olhos diante da revelação do menino.
    _Como? Uma nuvem com asas, que fala? E... Ela disse que a Dona Teresinha também tá doente?
    Àquelas alturas, Claudino sentia-se menos embaraçado para falar, e parou de gaguejar:
    _ Sim, titia... Parecia um menino com asas, mas como era todo branquinho, a gente achou que era uma nuvem... Porque tinha sumido, quando a gente olhou de novo...
    Valéria completou, sentindo as lágrimas descer pela face:
    _ Sim, tia. Ele disse que minha mamãe também tá muito dodói...Quando a gente olhou de novo pra aquele menino branquinho de asas, ele tinha desaparecido... Acho que ele era...
    Diante das palavras de Valéria, Lizandra ajoelhou-se diante das crianças:
    _ Meus amores... Vocês querem dizer que aquele menino... Parecia um anjinho?
    Os olhos das crianças brilharam  ao responder:
    _ Ssssiiiiiim... Era um anjinho!!!
    Lizandra enxugou de leve a face de Valéria.
    _ Mas, meu amor... Eu realmente vim trazer a notícia de que a mamãe do Claudino tá no hospital, mas... A tua mamãe deve estar bem.
    Valéria fez um beicinho.
    _ Anjos não mentem, titia... Se ele falou que a minha mamãe também tá dodói, é porque é verdade!
    Valéria tapou a boca com uma das mãos, arregalou os olhos marejados, segurou a mão de Claudino, puxando o amiguinho na direção da casa de dona Teresinha.
    _ Vem cá, Claudino! Anjos não mentem! E se essa tia veio dizer que tua mamãe tá no hospital, é porque minha mamãe também tá muito dodói!
    As duas crianças, feito raios, adentraram a casa de Teresinha.
    _ Manhêêê!!! Onde a senhora tá?
    Diante do silêncio, Lizandra sentiu um arrepio percorrer todo seu corpo. As duas crianças entreolharam-se.
    _ Ela deve tá no quarto, tia! Vamo vê...
    A cada passo que Lizandra dava em direção ao quarto de Teresinha, ela sentia que aquele silêncio total significava que algo estava errado.
    _ Dona Teresinha! A senhora está aí?
    Ao atravessar a porta do quarto, as duas crianças ficaram estáticas diante da cena. Valéria não segurou o grito, aos prantos:
    _ Manhêêê!
    Lizandra sentiu o corpo paralisar diante do que vira à sua frente. Teresinha se encontrava no chão, imóvel, desmaiada, com ambas as mãos no peito.
    _ Meu Deus!!! Dona Teresinha! Me ajudem aqui, crianças... Vamos tentar fazer ela voltar a si. Peguem um pouquinho de água, numa caneca! E vão chamar o Francisco e as manas. Vamos ter que levar a Teresinha pro hospital também , e agora mesmo!
    Diante de um possível infarto de dona Teresinha, Lizandra sentia o coração rasgar mais uma vez naquele dia.  Sentia que  Deus colocara ela diante de mais uma prova .
    _ Francisco! Ajuda aqui, com tua mãe, que tá passando mal. Acredito que foi um infarto, porque ela tá com as duas mãos apertando o peito... Tem alguém pra ficar com as crianças, pra que tu e a Lenice possam ir comigo até o hospital? A Dona Tina desmaiou lá no sindicato, e bateu a cabeça... Tá sendo atendida no hospital...
    Com a respiração ofegante, Lizandra já não sabia o que fazer. Porém, a voz de Francisco a trouxe de volta à realidade.
    _ A Lenir tá em casa, e meu pai e o Arnaldo estão na rádio. Posso ir com a mamãe sim. Deixa eu pegar os documentos dela, os meus e vamo!
    Teresinha abriu os olhos lentamente, ainda apertando o peito com ambas as mãos. Tentou falar, mas a voz não saía...
    _ Fica calma, Teresinha... Nós vamos te levar pro hospital. O Francisco vai também.
    Hesitante, Teresinha olhou para os lados, e seu olhar parou em Valéria.. Fez um esforço para falar, mas sua voz saiu por um fio:
    _ Mas eu... Não posso ir pro hospital... A Valéria... Ela precisa de mim...
    _ A Lenir vai tomar conta dos dois, enquanto o seu Juvenal e o Arnaldo não sair da rádio. Se realmente é o que eu tô pensando que é, temos que correr, pra salvar tua vida...
    Lizandra sentia as lágrimas queimando o rosto, enquanto a caminhonete que descia asfalto afora, em direção ao hospital de Igrejinha, parecia voar... Lenice e Francisco, no banco traseiro da caminhonete, com lágrimas nos olhos, seguraram Teresinha.
    _ Já chegamos... Vamos ligeiro, ou a Dona Teresinha vai correr risco de vida.
    _ Como Lizandra havia estado no Pronto Atendimento do Hospital Bom Pastor com Tina, a entrada dela com Teresinha foi rápida. E o diagnóstico não tardou.
    _ Foi realmente um infarto que a Dona Teresinha sofreu, senhora Lizandra. E o fato dela ter sido trazida em tempo pra ser atendida pode ter salvo a vida dela. Vamos encaminhar ela pra um cateterismo com urgência, pra tentar evitar outros problemas de saúde, em decorrência do infarto... Ou até evitar um possível novo infarto...
    Lizandra estava trêmula...
    _ E... Dona Ernestina?
    _ Ela ainda se encontra desacordada, mas foi entubada, pra evitar sequelas no cérebro. Fizemos uma tomografia, e ela apresentou um aneurisma enorme na região posterior do cérebro...
    Os olhos arregalados de Lizandra denunciaram sua surpresa.
    _ Aneurisma?
    _ É uma espécie de nó, formado em decorrência de estresse, na região posterior do cérebro de dona Ernestina. Estamos com tudo encaminhado pra levar ela para o hospital Nossa Senhora Das Graças de Canoas, pois lá é um hospital de referência para esses casos... Alguém da família pode acompanhar dona Ernestina?
    _Sim, Dr. A filha dela veio comigo, e vai acompanhar ela. E o filho de Dona Teresinha veio também, pra acompanhar a mãe.

                          *

    Um lugar amplo, iluminado, com ar puro e uma paz indescritível... Tina olhava ao redor, e só sentia o frescor do ar... A luz intensa que emanava de um vulto do alto era suprema. Ao lado direito daquela luz, um vulto conhecido, branco... Tina sentiu a paz que tanto procurava sentir. Seu coração reconheceu o vulto...
    _ Jesus...
    Olhou para o lado esquerdo, sentindo-se iluminada por outro vulto, dourado... Seu coração parecia identificar...
    _ Mas... Eu não sou católica... Nunca acreditei em Santa Maria... A mãe de Cristo...
    Uma voz longínqua parecia adentrar em cada sentido de Tina.
    _ Não é a igreja nem a religião que fazem a fé, filha...
    Instintivamente, Tina olhou para baixo, procurando ver seu corpo, seus pés... Pois se sentia flutuando... Estranhamente seus olhos não visualizaram nada. Sentiu então que apenas seu espírito estava ali, na presença de Deus, de Jesus e de Maria.
    _ Mas... Como?
    Tina tentou não olhar, talvez para convencer a si mesma que estava sonhando. Mas ao "voltar a ver" seu olhar encontrou Teresinha, abraçando uma criança, chorando.
    _Teresinha...
    Teresinha sorriu.
    _ Eu vim encontrar meu filho, que está aqui a muito tempo... Que saudades do Alessandro...
    _ Mas... Esse lugar é... O céu...Se nós estamos aqui...
    Teresinha sorriu, abraçando a criança.
    _O bondoso Deus permitiu que eu abraçasse meu menino mais uma vez... Vou deixar na vontade de Deus, de voltar pra abraçar a Valéria, o Francisco e o Juvenal...
    Uma sensação de torpor tomou conta de Tina. Parecia que a luz se distanciava e se aproximava repetidas vezes... Uma voz longínqua parecia se afastar e aproximar-se...
    _ A anestesia fez efeito, Dr. Diego .Podemos iniciar o procedimento na paciente...
   

   

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora