Fiorella e Gioconda

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_ Tu não pode dormir aqui de novo, Pedrinho... Agora, que voltou à vida, eu me sinto na obrigação de te guardar com minha vida! Minhas filhas Gioconda e Fiorella vão ficar felizes de ter mais alguém em casa.
_ E... Quantos anos elas têm?
_Gioconda tem 22 anos e Fiorella 20. Elas são um pouco diferentes das outras moças...
Mary olhou para Vincenzo temerosa. A convivência com Léo a fizera desconfiar de tudo e de todos.
_ Diferentes?
_ Calma, bambino! Assim que chegarmos em casa, tu vai conhecer elas.
A caminhada até a casa de Vincenzo não foi tão longa quanto imaginava. Algumas quadras e já estavam diante de uma velha casa de madeira. À frente um jardim de geranios vermelhos e um pequeno gramado.
_ Venha, bambino! Não tema...
Mary abraçava a mochila, como se esta lhe protegesse de qualquer mal. Seus passos lentos denunciavam que estava com medo.
_ Onde estão suas filhas?
_ Devem estar na cozinha... Passam o dia lá...
Vincenzo pisou na soleira da porta da cozinha e Fiorella o recebeu com um abraço:
_ Papá!!!
Em seguida, o olhar de Fiorella pousou em Mary, que apertava cada vez mais a mochila ao peito, olhando temerosa para o interior da casa, onde se escutava, ao som de um velho rádio, músicas italianas.
_ Esse é Pedrinho, Fiorella. Arruma um banho quente pra ele e um bom prato de comida.
Mary limitou-se a olhar Fiorella, pois àquelas alturas, após passar a noite sobre uma lápide fria e solitária, um banho quente e um prato de comida a fariam muito bem. Fiorella bombardeou Mary com perguntas... As palavras saíram atropeladas pela pressa de falar:
_ De onde tu veio? Onde tu mora? Quantos anos tu tem? Parece que te conheço, mas não lembro de onde...
Vincenzo interveio:
_ Não liga pras perguntas delas, Pedrinho! Elas ficam sozinhas o dia inteiro e quando chega alguém, elas enchem a visita de perguntas!
Fiorella conduziu Mary ao banheiro e voltou à cozinha. Quando Mary voltou, estranhou que Fiorella estava sozinha com o pai.
_ E a outra moça?
_ Gioconda? Deve tá por aí, pela casa...
Mary arriscou...
_ Deve estar lendo um bom livro, ou escrevendo cartas ou receitas culinárias...
Fiorella arregalou os olhos:
_ Lendo? Escrevendo?
_ E porque não?
Mary tirou o pequeno livro sagrado da mochila e mostrou-o a Fiorella:
_ Olha, ganhei de presente! É o livro da"vida"! Quer ler?
Fiorella, acanhada, baixou os olhos, e em tom triste:
_ Eu e a minha irmã não sabemos ler... Muito menos, escrever...
Mary ficou pasma, diante da resposta de Fiorella:
_Como assim? Não foram à escola?
Vincenzo explicou, com a voz embargada:
_ Elas foram à escola, sim. Quando a mãe delas era viva... Só tinha uma escolinha pequena, a três quilômetros daqui... Mas não chegaram a passar da primeira série... Como Paulina estava sempre muito doente, elas faltavam muito para cuidar da mãe...
Mary parecia não entender como moças de 22 e 20 anos não foram alfabetizadas ainda.
_ Tá, e porque não continuaram a estudar depois que a mãe delas virou anjo?
Vincenzo sentou-se sobre um banquinho mocho próximo ao fogão à lenha e olhou para Mary com surpresa, por estar diante de uma criança com ideias tão maduras.
_ Nós até tentamos, mas a professora não aceitou mais elas por não estarem mais em idade escolar. Alegou que elas estariam"tirando o lugar"de duas crianças em idade escolar. Sugeriu que eu pagasse uma professora particular para elas. Se eu tivesse dinheiro eu pagaria, mas sempre ganhei pouco como zelador... As famílias mais abastadas até contratam professoras particulares, mas...
Mary sentiu-se consternada diante das revelações de Vincenzo.
_Professora particular? Só por isso não podem desfrutar de uma boa leitura? Tive uma ideia!
Vincenzo ergueu os olhos em direção à Mary... Sua expressão era de esperança, pois realmente, daquela criança poderia vir a solução de qualquer problema.
_ Que planejas, angelo mio?
Mary sentou-se no chão da cozinha:
_ Vou explicar, seu Vincenzo! Quando o senhor for trabalhar, vou ajudar o senhor lá no cemitério... E à tardinha, quando voltarmos, eu vou ensinar a Fiorella e a irmã a ler, escrever e fazer cálculos...
Gioconda, que até então encontrava-se no quarto, saiu timidamente:
_ Isso é vero? Tu vai ensinar a gente? Mas a professora falou que nós éramos muito burras pra aprender...
Mary ergueu os olhos, de um jeito desafiador:
_ Prometo que em pouco tempo vocês duas vão estar lendo, escrevendo cartas e histórias e fazendo cálculos!
_ Pra que aprender a fazer cálculos? Não precisa... Nosso papá é que faz as contas aqui em casa!
Vincenzo interveio:
_ Sempre falei que não sou eterno, que posso morrer amanhã, Gioconda! Vai que...
O zelador ergueu os olhos e fitou o teto... Nesse momento sua expressão tornou-se incrédula... No olhar do velho zelador pareciam refletir a imagem de Paulina, observando com carinho a criança sentada ao chão.
_ Paulina... Tu que trouxe Pedrinho pra cá... Dio e tu...
Vincenzo voltou-se à Mary.
_ Agora tudo faz sentido, Pedrinho! Tu veio com uma missão!
Mary sentia-se incomodada em ser chamada de"Pedrinho", porém, quando ia abrir a boca para dizer que não era Pedrinho, sua voz não saiu, mesmo que tentasse seguidamente... Ficou ali, estática, com a mão à própria garganta...
_ Não tenha medo, bambino! Dio te trouxe pra nós. Eu e as minhas filhas vamos te dar guarida. O cemitério não é o melhor lugar pra ficar... As noites de outono são frias... Chove muito...
_ Mas eu não posso ficar aqui, Vincenzo. Tenho que pagar a comida e a moradia que vocês vão me dar, e eu não tenho dinheiro.
Os olhos do zelador encheram-se de lágrimas, pela lição de humildade daquela criança.
_ Sendo assim, trabalho de equipe pra tudo, de amanhã em diante! Amanhã, não, porque é sábado, segunda-feira em diante... Tu me ajuda a arrumar os vasos do cemitério de dia, e de tardinha, quando voltarmos, tu ensina elas um pouco. Mas fique claro que não quero te ver fazendo nada pesado, porque tu ainda é um bambino, capiche?
Mary sorriu e rodopiou num abraço com Gioconda:
_ Entendi sim, seu Vincenzo! Só coisas divertidas, como arrumar os vasos das lápides e ensinar a Gioconda e a Fiorella a ler, escrever e calcular!
Gioconda olhou para Mary com carinho:
_Papá tem razão... Deus e nossa mãe te trouxeram pra cá pra nos trazer felicidade, Pedrinho. A gente ia ter um irmãozinho, ou uma irmãzinha, mas Deus levou os dois quando ela ainda esperava ele nascer.
Vincenzo completou:
_Paulina sempre teve a saúde frágil, e queria muito ter um menino, mas...
Mais uma vez Mary sentiu que fora Deus quem a colocara naquela casa, naquela missão, pois sentia que naqueles corações faltava a leveza de um sentimento chamado"alegria"... Tornou a girar com Gioconda pela cozinha.
_ Pois vamos cantar e dançar pra agradecer a esse Deus que alegra nossos corações... Nós estamos todos reunidos agora: Deus, vocês e eu, pra estudar todas as noites ao som do rádio e acordar todas as manhãs com o som dos passarinhos...
Vincenzo interrompeu com um largo sorriso:
_Mas primeiro vamos jantar. Estou com uma fome...
Gioconda iluminou o rosto:
_ Oba! O papá voltou feliz! E com fome! Normalmente nem quer comer quando volta do trabalho.
Fiorella tocou o ombro de Mary.
_ Isso tudo é por tua causa, Pedrinho. Faz tempo que não vimos papá sorrir.
Mary sentia-se constrangida por não conseguir falar que, na verdade, não era Pedrinho.
_ Eu...
_ Vamos dar graças ao alimento que Dio nos permite ter!
Mais uma vez as palavras morreram na garganta de Mary. Sabia que a oração era um momento sagrado.
Após a janta, Mary ajudou a lavar a louça e arrumar a cozinha.
_ Hoje vamos começar a aula.
_ Como assim? Já? Não temos caderno nem lápis ainda...
_ E alguém pediu caderno e lápis? Temos esses sacos de papel do supermercado... Eu tenho lápis... Uma tesoura...Primeiro, a comida... O que temos na despensa?
Fiorella e Gioconda arregalaram os olhos:
_ Tá com fome ainda, Pedrinho?
Mary caiu na gargalhada após a pergunta inocente de Fiorella...
_ Que nada! Vamos aprender rápido e prático, meninas! Vamos à despensa, onde vocês vão a qualquer hora do dia!
Mary recortou em tiras o saco de papel pardo do supermercado.
_ Temos cola?
As moças se entreolharam:
_ Não...
_ Então, vamos fazer cola. Aprendi a fazer com a professora Sirlei. Tem farinha de trigo?
_ Sim
Mary tirou uma xícara da cristaleira, colocou uma colher de farinha de trigo, foi pingando água quente e mexendo com um garfo, até formar textura de cola.
_ Prontinha!
Tanto Vincenzo quanto as filhas estavam boquiabertos...
_ Vamos pegar essas tirinhas de papel e escrever o nome dos produtos e colar nas estantes da despensa. Assim, toda vez que vão fazer pão, almoço,café ou janta, precisam ler o nome do ingredientes. Vão treinando durante o dia, enquanto cozinham ou fazem qualquer outra tarefa. Garanto que em uma ou duas semanas estarão lendo!
Gioconda suspirou desanimada:
_ Duas semanas? A professora não conseguiu ensinar em 5 anos. Fazia a gente encher folhas e folhas de"a, e, i, o, u"... Não deu certo...
_ Então, aprenderam a escrever, ou como diz a professora Mara"aprenderam a teoria"... Agora, vamos à "prática"...
Mary foi anotando item por item da despensa nas tiras de papel, indicando onde deveriam colar cada nome.
_ Ali, o AÇÚCAR... Ali, o SAL... Seu Vincenzo... Fiz com letras grandes pro senhor aprender também, já que não usa óculos...
Após etiquetar todos os alimentos, Mary observou:
_Perdão se coloquei regras na despensa, seu Vincenzo... Mas assim, cada vez que entrar, vai ler ao menos uma palavra. E de noitinha, quando voltarmos do"campo santo",vai ser divertido e fácil ler ou escrever. O segredo é praticar...
Vincenzo ergueu as mãos::
_ Graziela, Dio... Grazie, Paulina...

*

Do outro lado de Caxias...
_ E agora? Tenho esse memorando da escola pra Irene assinar, e não sei como ela assina. A assinatura do meu velho eu já sei de cor... Mas a da megera...
Léo segurava o memorando que falava sobre a falta de Mary na escola naquela tarde. Sabia que, se entregasse, Irene notaria a falta da filha.Dobrou o papel e colocou-o no bolso.
_ Vou fazer de conta que não sei de nada... Vou buscar a janta dela, pra megera pensar que a princesinha tá no quarto...
Léo entrou na sala de jantar e preparou o prato, como se fosse levar à Mary... Valderez observou o filho:
_ Alguma coisa errada, Léo?
_ Não, pai... Vou levar a janta da minha irmãzinha, e vou levar a minha também. Assim, posso deixar vocês e a vovó conversar à vontade sobre assuntos de adultos.
Léo deu uma piscadinha para Valderez e se retirou, levando a bandeja com dois pratos servidos.
_ Meu filho está crescendo... E se tornando um cavalheiro...
Irene arregalou os olhos:
_ Cava... que diabo é isso? Tem alguma coisa a ver com um cavalo?
Lili dirigiu à Irene um olhar fulminante:
_ Não , sua caipira... Ele está se tornando um homem... E que homem bonito! Meu neto é o máximo! Os outros homens não vão ter nenhuma chance de arrumar mulher perto dele!
Diante da voz altiva de Lili, Irene estremeceu. Arregalou os olhos ao ouvir a última frase da sogra... Sentiu como se a palavra"chance"estivesse ecoando repetidamente em todo seu corpo como um trovão. Uma fisgada repentina nas costas provocou uma careta de dor em Irene. Valderez notou a reação da esposa:
_ O que foi? Se contorceu toda...Parece até que levou um tiro!
_ Dor... Ai... Nas costas...
As palavras saíram entrecortadas pela dificuldade de respirar, tamanha a intensidade da dor. Lili, imponente como sempre, não perdeu a oportunidade e apontou para a barriga de Irene:
_ Se alguma coisa acontecer com meu neto, eu...
Lili não chegou a concluir a frase, pois Valderez interrompeu:
_ Mamãe...
Lili ergueu-se da cadeira, sentindo-se afrontada:
_ Então, essazinha caipira aí tá pensando que não precisa cuidar do meu neto na gravidez? Ela mesma me disse que já esteve grávida e que"deu um jeito"... Disse que tinha tido uma"cria do diabo" que deixou com o pai... O que quer que eu pense? Na minha casa não, caipira!
Valderez notou que as duas mulheres estavam prestes a partir para a violência física:
_ Amanhã é sábado, não tem consultórios médicos atendendo. Mas semana que vem vamos procurar um bom médico pra ver o motivo dessa dor.
_ Aqueles médicos são todos uns mentirosos... E as enfermeiras também... Quando fui tirar os pontos na cirurgia da pinta, nas costas, eles disseram que tavam infeccionados, só pra me fazer voltar e consultar de novo. Querem mais e mais dinheiro, só pode!
Lili emendou:
_ Nisso eu até concordo! Médicos só arrancam dinheiro dos pacientes. Cada pessoa deveria ter uma farmácia inteira em casa, aí os médicos nem precisariam existir! Eu sim, tenho sempre um estoque bem variado de remédios em casa. Dependendo de mim, os médicos morreriam de fome ou mudariam de profissão!
Valderez interveio preocupado:
_ Você tá fazendo o pré natal? Já procurou um obstetra?
_ Pré... O quê? Obs... O quê? Que diabo é isso?
_ Toda mulher grávida precisa fazer uma bateria de exames durante a gravidez, e precisa ser examinada por um obstetra, que é um médico que trata apenas de gestantes...
Irene, mais uma vez, mostrou sua plena ignorância quanto se trata de educação:
_ Nunca fiz bateria de nada e não vou fazer agora! E esse médico daí... Esse tal de obst...não sei quem... Não vai botar a mão em mim não!
Lili tapou a boca para não rir, tamanha a asneira que Irene falara. Chegou a esquecer a pose altiva que costumava ter.

*

Lenice estava inquieta:
_Paiê... É verdade que o seu Juvenal vai visitar a família amanhã? Eu posso ir também?
_ A Lenir ainda precisa se cuidar. São ordens médicas! E eu não costumo levar só uma... Regras de família... Dessa vez vou levar o Miguel e o Arnaldo. Assim saem um pouco mais.
_ Ahhhh, paiê! Isso não vale! Na aula eu tô indo sozinha, sem ela... Porque essas regras não valem na hora de ir pra escola?
Claudio deu uma risadinha e abraçou a filha.
_Mas na escola tu não tá indo sozinha... O Miguel vai contigo. Imagina se ele passa mal no caminho e a grande enfermeira de plantão... Ou seja, você, não tá junto com ele? Já pensou?
_ Verdade, pai... O Mig é um irmão pra gente, e eu não posso deixar ele ir sozinho.
_Quando a mana estiver liberada pelo doutor para passear, levarei as duas.


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