A colônia de minhocas

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    _ Paiê!!! O Mig tem um vidro bem grandão, parece que foi um aquário, sei lá...
    _ É... E enquanto a gente tava pescando, ontem, tivemos a ideia de fazer uma coisa diferente com o vidro do Mig!
    Claudio ergueu as sobrancelhas, puxando um leve sorrisinho. Quando a conversa das manas começava assim, dava o que falar...
    _ Mmmm... E eu, a mamãe e o Arnaldo podemos participar desses planos do trio invencível? Ou são tão secretos que vieram de outro planeta?
    A maneira simples e sincera do diálogo de Claudio com as filhas sempre dera bom resultado, pois assim as meninas sentiam-se abertas a conversar com os pais sobre qualquer assunto. Havia uma confiança mútua.
    _ Não, pai! Não é secreto! A gente tava catando minhocas no monte de adubo orgânico, sabe?
    _ Sei... E então?
Lenice deu uma cutucada em Lenir.
    _ A gente teve uma ideia... Mas ainda não deu pra fazer... Queremos criar uns bichinhos, com o vidro do Mig. Podemos?
    _ Bichinhos? E qual bichinho caberia num vidro? É impossível criar um bichinho de estimação em um vidro... Mesmo que o tal vidro seja grande. Bicho precisa de ar , alimentos e ambiente adequado pra viver...
    _ Mas pai... A gente não vai judiar dos bichinhos. Ao contrário! Vamo cuidar bem deles.
    _ Outra coisa, meninas! Deus fez os bichos domésticos para viver com as pessoas. Nenhum bicho doméstico merece morar dentro de um vidro!
    _ Não tamo falando de bicho doméstico, paiê!
De repente, o semblante de Claudio ficou sério...
    _ Bichos silvestres também não podem ser aprisionados, minhas filhas! Eles morrem sem liberdade! Deus fez eles pra viver livres.
    As manas se entreolharam:
    _ Bom, a gente não tá falando exatamente de bichos silvestres...
    _ Posso saber, então? Eu conheço tanto bicho, mas um que não é doméstico nem silvestre...
    _ Se a gente contar, deixa a gente criar? Promete? O Mig ajuda a gente! Ele tá sempre aqui... E hoje, quando ele passar aqui pra ir pra escola com a gente, o pai dele já vai trazer o vidro junto!
    _Hoje o Arnaldo e eu vamos aproveitar que eu tenho uma entrega de erva mate em Caxias, e visitar a família do Juvenal de novo. A gente vai levar umas coisas pra eles. A mulher dele teve um nenê que teve um probleminha e ficou no hospital. Parece que já fez uma cirurgia. E eles têm mais um menino, um pouquinho mais novo que vocês...
    _Paiê! Lembra do saco de doação de brinquedos? Tá cheiinho! Pode levar também!
    _ Depois da aula de hoje, Miguel vai ficar aqui. Mas eu quero que ajudem ele, se ele se sentir mal... Aí vocês poderão preparar direitinho a casinha do bicho de vocês.
    _ Sim, pai. Pra nós é como se ele fosse o mano que papai do céu levou pra ser anjinho dEle! E a mãe dele abandonou ele quando viu que ele tava doente. Vamo cuidar bem dele.
    Toda vez que as filhas falavam sobre seu irmão, o bebê que Tina perdera, o assunto tocava o coração de Claudio. Uma sombra de tristeza passou em seu olhar...
    _ Tá certo, meninas! Mas quanto ao vidro, eu não vou permitir que vocês maltratem bichinho nenhum, tá? Quero conversar com o Miguel também...
    As meninas fizeram um gesto usual delas quando Claudio pedia algo... Como se fossem duas mini-militares, o gesto de continência ao pai:
    _ Pois não, Capitão!
    Claudio não segurou o riso... As duas saíram em disparada.
    _ São duas figurinhas!
    Porém, Claudio sentiu curiosidade em saber que bicho misterioso os três pretendiam criar dentro de uma caixa de vidro.
    _ Tina!! Tu sabe alguma coisa sobre criar um bicho dentro de um vidro? As manas estão em polvorosa, falando que elas e o Miguel vão criar um bicho dentro de um antigo aquário. Isso não vai dar boa coisa...
    _ Elas só me falaram que o Arnaldo vai trazer um vidro pra elas! Não disseram pra quê!
    _ Ahhhh, falando em Arnaldo, hoje eu e o Arnaldo vamos visitar a família do seu Juvenal de novo. Vamos levar uns mantimentos e produtos de limpeza. Vimos que estão precisando de ajuda. A esposa vive de casa pro hospital, onde o nenê tá... Parece que já fizeram uma cirurgia nele. Ela tá se virando com as vendas de umas peças de crochê que ela fez.
    _ Ela faz crochê também? Que maravilha! Vou mandar umas linhas pra ela. São tão caras... E ela vai ter mais lucro nas vendas!
    _ Um dia levo tu e as meninas junto lá. Além do nenê, ela tem um menino com autismo, da idade das manas.
    _ Mais um motivo pra gente ajudar ela! Se eu mandar as linhas, ela não precisa comprar. E pode ganhar seu dinheiro com o próprio trabalho de crochê.
    _ É por isso que te amo, Tina! Teu coração é de ouro.
    _ Depois, o Juvenal não terá como trabalhar de caminhoneiro, depois que sair do hospital... Vai ter que procurar outro trabalho.
    _ Pois é, Tina... Eu já andei pensando, mas temos que esperar a perna dele ficar boa. Parece que deu uma infecção grave ali também.
    _ Eu sei que tu e o Arnaldo vão descobrir em que serviço ele pode se encaixar melhor, sem deixar que o fato de estar cego de um dos olhos prejudique ele.
    _ Não sei ainda. Só sei que, infelizmente, o serviço de caminhoneiro ele vai ter que largar! Perdeu um olho, e uma perna está prestes a ser amputada... Para a perna tem prótese, mas o olho... Pra dirigir, vão barrar ele!
    _Mas ele terá que descobrir em que ramo ele teria capacidade de trabalhar, do jeito que ele tá.
    _Olha, no outro dia, quando a gente foi visitar o Juvenal, ele tava todo animado... Tava imitando aqueles famosos locutores de rádio... Tava segurando a colher da sopa, como um microfone, e num vozeirão... Parecia aqueles locutores profissionais... Talvez ele "dê pra coisa"!
    _ Deus sabe, Claudio!
    _Paiê!!! Manhê!!! O tio Arnaldo e o Mig tão vindo!
Lenice e Lenir pareciam dois furacões porta adentro...
    _ E ele tá trazendo a caixa de vidro pra gente fazer nossa colônia...
    _Colônia?
As manas se entreolharam, e Lenir explicou:
    _ Sim, pai. Lembra que o senhor prometeu que a gente poderia criar as...
    _ As...???
    _ Minhocas!
    _ Minhocas?  Minhas f1ilhas vão criar minhocas?
_ Claro, pai! Vamo fazer uma colônia de minhocas! O Mig vai preparar a terra delas e depois vamos catar mais umas. O Léuri , a Sílvia e a Roberta nós deixamos no balde de terra da pescaria.
    _ Meninas!  As minhocas precisam comer!
    _ Claro, paiê! Vamo colocar folhas e cascas todos os dias!
    Arnaldo e Miguel chegaram em tempo de ouvir o resto da conversa.
    _Eu sei direitinho como vamo fazer a colônia de minhocas! Minhoca é comigo mesmo!
    _ Agora, nada de minhocas! Vocês vão é pra escola! Eu e o Claudio vamos até Caxias hoje. Vamos visitar a família do Juvenal...
    _ Pena que temos aula, pai... A gente ia gostar de conhecer as crianças dele.
    _Da próxima vez, se não tiverem aula, vamos levar vocês junto. Garanto que o Francisco iria gostar de vocês.
    _ Verdade. Apesar de ser da cidade, ele é muito educado e tímido.
    _ Deve ser por causa do probleminha que ele tem. Lembra que dona Teresinha falou que ele é autista?
    _ Artista? O Francisco é artista? Ele canta ou faz filme?
    _ Não, Miguel! "Autista"é quem tem"autismo"... Uma condição um pouquinho só diferente que vocês... As pessoas autistas são um pouquinho diferentes no comportamento... Elas não são tão"malucas" como vocês...
    Lenice colocou a mão no queixo...
    _ Diferentes, como? Elas têm quatro braços?
    Lenir não perdeu a carona para fazer piada:
    _ Não, né... Dããã!!! Elas têm o cabelo arrepiado que nem ouriço!
    Claudio explicou:
    _ Não, manas... Eles não são fisicamente diferentes... Só o comportamento e as atitudes deles são. Uma pessoa autista é mais fechada, e quando ouve uma expressão ele interpreta ela de uma maneira mais literal... Por exemplo: se eu falar que a "Lenir chutou o balde e saiu da jogada", quero dizer que a Lenir xingou e se afastou, mas o Francisco entenderá que a Lenir chutou um balde de verdade como se estivesse jogando com uma bola de futebol e saiu do jogo...
    _ Aaaa, agora entendi! Os autistas não são diferentes... eles são mais realistas?
    _ A maioria deles é muito inteligente, porque eles se concentram mais nas coisas de que gostam mais.
    _ Então vamo gostar de brincar com o Francisco, paiê! Queremos conhecer ele!
    _ Um outro dia, manas... Hoje vocês têm aula... Vamos deixar vocês três na escola antes de ir pra Caxias.
    Arnaldo interveio:
    _ E juízo depois que voltarem da aula, jovenzinhos! Não quero saber de vocês maltratarem bichinhos... Se fizerem a tal colônia de minhocas, façam direitinho!
    _ Deixa com a gente, pai! Somos especialistas... Bom... Vamo tentar ser!
    Arnaldo e Claudio deixaram as crianças na escola. Mais recomendações:
    _ Juízo, crianças! Boa aula!
    Três raios cortaram o pátio da escola, em direção à sala de aula.
    _ Esse trio... Vamos?
    A  caminhonete de Claudio cortava a distância até Caxias. O assunto dos dois homens era a preocupação com dona Teresinha e as crianças, pois Juvenal estava prestes a ter a perna amputada e o bebê estava para ter alta do hospital.
    _ Vamos ajudar no que pudermos, até Juvenal conseguir um emprego.
    Teresinha ajeitava nas sacolinhas as peças de crochê que fez durante os dias anteriores. Eram encomendas de três professoras da escola onde atuava como auxiliar de cozinha antes de Alessandro nascer. Em uma caixinha reservada, mais uma dúzia de pequenas bíblias, que levaria até as crianças que fariam aniversário no mês.
    _ Dona Teresinha! Ô de casa!!!
   Teresinha entreabriu a porta e reconheceu Arnaldo e Claudio.
    _ Seu Claudio!Seu Arnaldo! Que bom rever vocês! Francisco hoje não está em casa. Está na escola. Daqui a pouco irei buscar o nenê, que tá de alta do hospital. E na volta do hospital, vou buscar o Francisco"...
    Claudio e Arnaldo descarregaram as provisões que haviam trazido para ajudar Teresinha.
    _ Aqui, minha esposa mandou umas linhas de crochê para a senhora trabalhar em suas peças... E minhas filhas mandaram uma sacola cheiinha de brinquedos para teus filhos.
    _ Vamos levar você, dona Teresinha! Tanto ao hospital como até a escola. Como podemos deixar a senhora carregar esse peso?
    _ Mas que maravilha, senhores! Que o bondoso Deus abençoe vocês sempre!
    Teresinha saiu do hospital, carregando com orgulho o pequeno Alessandro.
    _ Agora, vamos levá-la até a escola onde quer deixar as encomendas!
    As crianças da escola estavam agrupadas no pátio, por ser horário do lanche. O diretor Júlio recebeu-os com alegria.
    _ Mas que maravilha, dona Teresinha! Saudades do seu café... Mas que guri lindo!
    _ Eu trouxe as peças de crochê que as professoras encomendaram. E as bíblias dos aniversariantes do mês. Esses são dois amigos do Juvenal. Eles o salvaram de um acidente que quase levou ele.
    _É um prazer conhecer os amigos do seu Juvenal. Sou Júlio.
    Arnaldo fixou os olhos em um grupo de crianças que estavam lendo em um cantinho do pátio. Lembrou-se de Mary...
    _ Mary... Ela amava livros...
    Arnaldo parecia mergulhado no tempo. Ficou com o olhar fixo na garotinha de cabeça baixa no cantinho, que estava mergulhada dentro de um livro com um avião na capa. Mas estava de cabeça baixa... Parecia querer entrar dentro do livro para fugir do mundo...
    _ Pode ser Mary... Mary gosta de aviões...
    Mas logo meneou a cabeça, como se acordasse de um transe... A menina estava cabisbaixa, triste...
    _ Mary tem longas tranças... E tá sempre rindo, feliz...
     Aquela menina tinha cabelos bem curtinhos e estava toda encolhidinha. Logo descartou a esperança de encontrar Mary ali, tão perto...
    _ Seria sorte demais!
    O sino bateu e as crianças correram até as suas respectivas salas de aula. Teresinha entregou a caixinha com as bíblias ao diretor Júlio.
    _ Entrega para os aniversariantes do mês? Temos que ir, por causa do nenê. Ele acabou de ter alta no hospital.
    _ Claro, dona Teresinha. Eles vão amar!
    Arnaldo estava quieto demais, ao lado de Claudio.
    _ O que houve, homem?
    _Pareceu-me ter visto Mary... Deve ser a saudade da minha filha... Ainda não me conformo que Irene levou ela de mim.
    Teresinha ouviu o que Arnaldo falou...
    _ Nós temos uma aluna chamada Mary... Foi a primeira a ganhar a bíblia!
    _ Mas não acredito que seja ela, a minha Mary. Aqui em Caxias... Bem capaz!!! Eu acredito que Deus, um dia, vai me trazer ela de volta!
    _ Confia em Deus, Sr Arnaldo! Se ela for a tua Mary, Deus a trará de volta pra ti!
   
   

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