Os "mosqueteiros"

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O dia começou bem diferente para Irene. Ângelo despertou extremamente feliz. Segurava com carinho a pequena caixa dourada, pois ele parecia entender perfeitamente o que ela significava. Irene lembrou-se do que acontecera na noite anterior.
_ Uma "caixinha de vida" ... Ninca pensei nisso...
O pequeno Ângelo olhou-a com carinho. Os olhos de Irene ficaram marejados diante daquela expressão tão sincera do menino.
_Tua mamãe não tá aqui, Ângelo. Ela veio aqui só pra me ensinar como...
Irene pausou a frase, porém, continuou:
_...como encher minha caixinha de vida, e não de coisas ruins!
Irene acendeu um cigarro e deu algumas tragadas. Ângelo ficou ali, olhando a fumaça, até engasgar com ela. A tosse do menino a fez lembrar do vulto de luz da noite anterior, que lhe falara sobre confiar o pequeno Ângelo sob seus cuidados. Olhou para o maço de cigarros, ainda pela metade, em seguida, para a caixinha dourada nas mãos da criança, e decidiu:
_ A partir de hoje, isto não vai mais fazer parte da minha vida! Quero merecer o perdão de Deus. Sei que o perdão dos meus filhos não mereço...
Ângelo abriu um sorriso no rosto. Irene sentia que aquele menino tinha algo de especial.
_ Tua mãe me ensinou que temos que ir cedinho até o lixão, pra conseguir achar as melhores sucatas... Venha. Deixa a caixinha aqui, pra não estragar! Se Deus quiser, vamos conseguir uma boa quantia e comprar comida boa pra nós!
O pequeno Ângelo olhou-a, repetindo uma das palavras de Irene:
_ Deus...
Ao ouvir o menino repetir a palavra em claro tom, Irene pegou Ângelo cuidadosamente, como Maria o fazia, saindo em direção ao lixão.
_Sim... Se Deus quiser...
A primeira caçamba de lixo chegou carregada. Irene deixou Ângelo em lugar protegido e correu para a primeira leva de resíduos ali depositados. Entre diversos recicláveis, estava um pequeno colchão. Certamente descartado por alguém que tinha crianças. Puxou-o para perto do menino.
_ Olha, Ângelo! Hoje de noite tu não vai mais precisar dormir no papelão! Achei um colchão bem macio pra ti!
Ângelo, olhando para o céu, que ostentava um azul límpido, exclamou:
_ Foi Papai do Céu que mandou!
Irene ficou pasma diante da frase do menino. Olhou para o céu e respirou fundo. Uma fisgada de dor cortou-lhe as costas, mas não parou. As refeições do dia dos dois dependiam dos recicláveis que conseguiria recolher e vender.

*

_Precisamos fazer uma contação de histórias especial esse sábado, porque o assunto que vamos "jogar na história"vai depender das crianças.
Teresinha sorriu:
_ Como vai fazer se aparecer uma pergunta... Vamos dizer... Picante?
Tina olhou-a de relance, enquanto amassava uma estranha mistura.
_ Deixa comigo, Teresinha! Tenho um plano infalível!
_ Agora me deixou curiosa! O que está amassando? Tem cheiro de vinagre... Não conheço nenhum doce ou salgado que leve vinagre ns receita!
_Essa mistura faz parte do meu plano de sábado. Estou preparando uma máscara. Ela leva jornal velho embebido durante 24 horas numa solução de água, sal e vinagre. Agora, eu tô endurecendo a mistura com farinha de trigo... Depois, as crianças mesmas vão fazer o molde da máscara.
_ E não vai estragar? Digo... Não vai pegar mofo?
Não, porque o sal e vinagre não vão deixar os fungos do mofo nem chegar perto da máscara!
_ Se eu tô começando a entender, vai ter boneco novo na história de sábado.
_ Acertou em cheio, Teresinha! Sabe aquele filme que passou na TV, sobre aquele homem da máscara de ferro?
_ Eu só vi que eles gostaram muito. Mas por que essa história?
_ Porque eu olhei os cadernos das manas e vi que a professora delas deu lição sobre a França e Luiz XlV. E eu conheço bem a história.Vou pedir pras crianças fazerem um boneco do homem da máscara de ferro, e pedir que eles se vistam de mosqueteiros. E as crianças vão se divertir um bocado, de jeito leve e lúdico...
Teresinha olhou admirada:
_ Nossa! Quanta criatividade, Tina! Até parece que tu é uma professora... A professora Mara fazia bonecos para a turma do Francisco, na escola onde eu trabalhava. E ela falava muito nesse "jeito lúdico"de entrar no mundo das crianças.
Tina sorriu:
_ Pois minha amada... Vou te contar um segredinho meu: Já fui professora... Trabalhei durante dezoito anos com crianças. E contei várias vezes essa história pros meus alunos. Não existe criança no mundo que um dia não tenha brincado de ser um mosqueteiro!
_ E por que parou de dar aula? Já vi que tu tem o maior jeito com essas coisas...
_Eu trabalhava numa escola aqui pertinho, que foi desativada dois anos antes das manas nascerem.
_ Mas, pelo teu jeito, não foi só "um trabalhinho", como professora! Isso tá no teu sangue...
_Chorei muito pelos meus alunos, quando desativaram a escola onde eu trabalhava. Afinal, foram dezoito anos com os filhos dos agricultores todos, na minha jornada diária!
Teresinha olhou admirada:
_ Dezoito anos? Então... Quantos anos tem agora?
Tina sorriu:
_ Teresinha... É indelicado perguntar a idade de uma mulher...
Teresinha ficou embaraçada.
_ Perdão, Dona Tina...
_ Já disse pra deixar a palavra"Dona"no lado de fora dessa padaria, Teresinha. Mas...em resposta à sua pergunta...
Teresinha olhou para Tina, curiosa.
_ Eu tenho 44 anos. Tive as manas com 32... Eu jamais pensei que teria um filho, estando com 44 anos. Mas isso é um segredo nosso, tá?
O sorriso carinhoso de Teresinha demonstrava a admiração pela patroa.
_ Tá, amada... Uma última pergunta, se me permite!
_ Pergunte!
_ Por que não continuou a dar aula em outra escola?
_ Entre trabalhar numa escola lá do centro ou ajudar o Claudio no trabalho do campo, decidi ficar ao lado dele... E não me arrependi. Passei anos maravilhosos ao lado do Claudio. Realmente construimos uma vida juntos!
_ E teve as meninas...
_ Sim... Elas são meus maiores tesouros, pois enquanto eu trabalhava como professora, eu não tinha coragem de tentar uma gravidez, pois não queria deixar o nenê em mãos estranhas.
_ Aí resolveu ter um filho...
_ E Deus me abençoou duplamente com a chegada das meninas. Nasceram de oito meses, mas era porque realmente não tinha mais lugar pra elas crescerem dentro do meu ventre...
_ Deve ter sido uma gravidez tranquila...
_ Até certo ponto, sim... Só quando elas ficavam com fome dentro da minha barriga, eu levava cada chute nas costelas!
_ E agora, Claudio te deixou mais um tesouro...
Tina passou a mão com carinho na própria barriga.
_ Esse nenê vai ser a melhor coisa que o Cláudio me deixou, além das manas.
_ Só Deus mesmo, pra conduzir tudo assim, direitinho... Ele sempre sabe o que deve fazer!
_ Falando em "conduzir"... Pode chamar as crianças? Elas estão no galpão da lenha. Elas têm mais um boneco pra fazer!
_ Mas é claro. Assim esses "mosqueteiros" vão se abrir pra caixa de perguntas!
_ É esse o objetivo! Se souberem que tem um boneco na história, vão perguntar qualquer coisa que esteja causando dúvida na cabecinha delas.
Quando Teresinha voltou com as crianças, elas já estavam em polvorosa:
_ Mãe, mãe, mãe! É verdade mesmo que a gente vai fazer um boneco novo? Mais um pra nossa "República dos bonecos"!
Teresinha olhou com cumplicidade para as crianças. Piscou um olho e sorriu:
_ Esses pequenos chantagistas conseguiram me fazer confessar o motivo pelo qual fui chamar eles! Já falei do boneco do filme pra eles.
_ Não tem problema, Teresinha! Eles já conhecem a história de Luiz XlV e do homem da máscara de ferro. Assim já saberão como fazer o boneco... Eu confio na criatividade de vocês. Eu tô fazendo a mistura pra vocês fazerem a máscara!
_ Só deixa a massa pronta, mãe. O resto nós vamos fazer! Podemos usar aquela capa de chuva preta estragada do pai? Vai servir direitinho!
Tina sorriu diante da criatividade das crianças.
_ Acho que assim o homem da máscara de ferro vai ficar mais parecido com o Darth Vader, do filme "Star Wars"!
_ Que nada, mãe! O Darth Vader é um vilão mau e o homem da máscara de ferro é um prisioneiro do rei da França. Já vimos os dois filmes e sabemos quem é mau e quem é vítima!
Lenir completou:
_ É, mãe... A professora de história, quando falou da França, disse que o homem da máscara de ferro era um filho "fora do casamento"do rei Luiz XlV! E pra esconder ele do povo, mandou colocar uma máscara de ferro no rosto do próprio filho e colocou ele na cadeia!
Lenice cutucou Lenir:
_ Não, mana... Lá eles não chamavam de "cadeia "... Era uma tal de "Bastilha"!
Teresinha interveio:
_ Tô vendo que esses jovenzinhos amam ver filmes desse tipo!
Tina baixou os olhos, tristemente:
_ É uma herança do Claudio. Ele amava assistir com as filhas.
Lenice reclamou:
_ Quanto à capa de chuva estragada do pai, podemos usar?
_ Claro que podem. E como ele é um personagem que é um prisioneiro, podem deixar ele bem feio!
_Que nada, tia Teresinha! Nossos bonecos, quanto mais feios, mais interessantes ficam!
Tina lembrou as crianças:
_ Ahhh... E não esqueçam de colocar perguntas ou dúvidas na caixa de vocês. Vai fazer parte da história de sábado!
_ Ieeeebbbba! Os mosqueteiros vão entrar em ação, agora mesmo!
Tina colocou a mão no queixo.
_ Bahhh... Acho que escolhi o boneco errado! Temos cinco crianças, e são quatro mosqueteiros, com o Dartanhã... Não lembrei que convidei a Pérola e a "mãe emprestada"dela pra vir no sábado, participar da contação de histórias...
_ Mãe emprestada?
_ Odeio o termo"madrasta"... Por isso falei assim!
_ Mas então, como vai fazer?
_ Já sei! Uma das crianças será o rei Luiz XlV, que aprisionou o homem da máscara de ferro! Vai dar uma história completa!
Francisco, que estava sentado no degrau da padaria, entrou na conversa:
_ Não pode ser uma rainha? Eu quero ser um mosqueteiro!
_ Pode ser uma menina sim, Chico,! A história é nossa... Não tem que ser igual àquela da França!
Francisco falou baixinho, com os olhos marejados:
_ Eu tô com saudades da Mary... Ela fazia dupla comigo nas apresentações da escola. Mas ela tá longe agora... Tá na Itália...
Lenice interrompeu o amigo:
_ Chico! A professora de história falou que a França é pertinho da Itália... Quem sabe, ela já não foi passear na França?
Lenir contrariou a irmã:
_ Bem capaz, Lenice! Se a melhor amiga do Chico foi pra Itália, como vai passear na França? Tem que ter muito dinheiro!
Tina interrompeu:
_ Alguém quer ajudar a gente? Estamos precisando de um pouco de lenha pro forno. Essas bolachas precisam estar prontas até amanhã.
_ É pra já, mami! Vamo, Chico! Trabalho de equipe!
As crianças correram em direção ao galpão da lenha. Teresinha não pôde deixar de comentar:
_ Essas meninas colocaram o Francisco nos eixos! Lá em Caxias ninguém dava muita importância da presença dele. Ele ficava sempre enfurnado nos cantos, se escondendo.
_ Por isso que Deus trouxe vocês pra cá, Teresinha. Foi pra ajudar o Francisco.
_ E pra ajudar o Juvenal. Lá ele jamais ia achar alguém como seu Claudio!
Tina baixou os olhos, sentindo duas grossas lágrimas brotar. A partida de Claudio ainda era muito recente.
_ Perdão... As crianças...
Na porta da padaria, as crianças notaram as lágrimas de Tina.
_ Aqui tá a lenha, mãe! Ué... Tá chorando... Se machucou?
Tina desviou o olhar, para não mostrar a dor que sentia no coração.
_ Não, filha... Senti a presença do seu pai, muito forte... Só isso...
Lenir tocou o ombro da mãe.
_ Mas o paizinho tá aqui, mãe. Eu converso com ele toda noite antes de dormir. Ele faz a oração de dormir com a gente sempre, antes que pegamos no sono!
Após a revelação da filha, Tina teve que se apoiar na mesa onde pincelava bolachas com glacê. Apertou o peito com a mão. Sentindo falta de ar, procurou a janela. Teresinha notou a reação de Tina e cochichou para as crianças:
_ A mãe de vocês ainda tá muito fragilizada com tudo isso, crianças. Vocês já fizeram o dever da caixa com as perguntas?
_ Hummm... Algumas, já...
_ Pois então, vamos pensar em construir o boneco pra nossa República, pra contação de histórias de sábado?
_ É mesmo, tia Teresinha! Vamo, Chico... Vamo chamar o Mig pra ajudar! Podemo, mãe?
Tina, que até aquele momento estava sentindo-se meio entorpecida, concordou:
_ Claro... Mas caprichem no boneco e nas perguntas!
Lenice bateu continência e as crianças saíram.
_ Sim, capitã!
Tina, mais uma vez, apoiou-se na mesa.
_ Elas sempre chamavam o pai de "capitão"... Ele tá mais presente que antes na nossa vida.

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