O fio da morte

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Após recusar a mão, que durante um longo tempo aquele vulto de vestes azuis lhe estendera, Irene, naquela calçada em frente ao hospital de onde fugira, arregalou os grandes olhos azuis. Tentou falar, porém, a fraqueza a impediu. Tentou erguer a mão, porém seus braços pareciam travados pela ação dos sedativos. Alguns movimentos involuntários das pernas pareciam esboçar uma certa reação do seu corpo. Diante dos espasmos de dor, seu pensamento foi à procura de algo:
_ Eu quero morrer... Não aguento essa dor... Deus... Quero morrer!
Uma fração de segundo... O ambiente de luz e de paz que envolvia o vulto parecia refletir nos enormes olhos azuis de Irene. A vida parecia estar presa a ela por um fio, entre gemidos de dor intensa... Ali, um rosto de longas tranças sorriu... Diante da dor e do desespero, seu pensamento encontrou apenas um nome:
_ Mary! Tu morreu e tá no céu! Me ajuda... Quero ir pro céu também...
Aquele rosto aproximou-se lentamente, e Irene ouviu uma voz conhecida:
_ Não... Teu momento não é agora... Tem alguma coisa no teu caminho, que a senhora precisa resgatar para ter a paz que teu espírito tanto precisa...
Irene sentiu que algo queimava em seu coração, que parecia recomeçar a pulsar. Tentou fixar os olhos naquele rosto, porém, sentiu-se cair, como se fosse estar escorregando para um abismo. Seu pensamento procurou as palavras:
_ Quero ficar em paz! Quero teu perdão! Maryyyyyy!!!
Irene sentiu-se presa de repente.
_ Aqui... Vamos atar pernas e braços e aplicar um sedativo. Assim, ela não terá uma segunda chance de fuga do hospital.
Irene sentiu como se aquele fio que ainda a ligava à vida fosse envolver seu corpo todo como se fosse um casulo.
_ Me solta! Quero ir pro céu! Eu quero morrer! Não quero mais sentir dor!
_ Vamos aplicar o sedativo e levar ela de maca de volta para o hospital!
O grupo de segurança e enfermagem reconduziu Irene ao hospital.
_ Tarefa cumprida! Vida salva!

*
Em Florença, uma província da Itália...
_ Assim, Dona Francesca. Foi assim que a Angela explicou. Vamos fazer igualzinho. Um exercício extra vai ajudar a senhora. Quem sabe, logo conseguirá caminhar também, assim como eu. Graças ao bondoso Deus a cirurgia e as fisioterapias me ajudaram a voltar a caminhar.
Albertina acompanhava cada movimento que Mary fazia para repetir a sessão de fisioterapia que Angela costumava fazer com Francesca.
_ Mas que moça aplicada! A maioria das moças da tua idade nem iriam ficar perto de uma cadeirante.
Mary ergueu os olhos para a velha enfermeira, sem parar de massagear Dona Francesca.
_ Posso te contar um pequeno segredo, Albertina?
Ao aceno afirmativo da enfermeira, Mary engoliu seco e começou gaguejando:
_ E... Eu tenho um irmão, sabia?
O olhar de Albertina denunciava surpresa. Mary continuou seu relato.
_ Eu mal lembro dele... Mas eu lembro que ele caiu de uma árvore, quando foi salvar nosso paizinho, que tava se suicidando...
Duas enormes gotas escorreram pelas faces de Mary. Porém, ela não parou.
_ O Miguel caiu e bateu a barriga... Parecia morto, e minha mãe...
A curiosidade estava eminente no rosto de Albertina, diante do relato de Mary.
_Minha mãe falou que ele tava fingindo, que não iria ajudar, porque não queria mais ele como filho... Que não iria cuidar de um filho aleijado... Só porque ele talvez iria ficar numa cadeira de rodas... Isso doeu aqui!
Os soluços do choro atrapalharam as mãos de Mary, que esfregava o peito, como se ele queimasse. Albertina parecia não acreditar. Mary, com os olhos banhados em lágrimas, dirigiu-se à Dona Francesca, que parecia compreender o drama da moça, cujas faces banhadas por lágrimas pareciam queimar.
_ Desculpa, Dona Francesca... A senhora não deveria ter escutado essa história triste... Mas é verdadeira.
Uma fração de segundo, e a mão de Francesca tocou de leve a mão trêmula de Mary. A moça sobressaltou-se.
_ Dona Francesca! A senhora mexeu a mão! A senhora me fez um carinho! Isso quer dizer que...
Um breve silêncio fez Mary enxugar as lágrimas e abrir um sorriso.
_Se o bondoso Deus quiser, e a senhora fizer o tratamento certinho, a sei que pode ficar curada!
Mary rodopiou alegremente ao redor de Francesca. Os olhos dela brilharam intensamente, ao pensar na perspectiva de cura de Francesca.
_ A senhora vai ficar curada! Eu sei... Eu sinto!
Albertina, que tudo acompanhava em silêncio, sentiu duas lágrimas de emoção brotando em seus olhos. Tentou falar, mas apenas conseguiu respirar fundo e olhar para o céu. Seu pensamento procurava as palavras silenciosamente:
_ Obrigada, meu Deus! Obrigada, meu Pai!
Mary, ajoelhada diante da cadeira de Dona Francesca, ergueu os olhos para o céu:
_ Deus... Eu sei que é a tua vontade que deve ser feita! Mas a alma bondosa de Dona Francesca me ajudou a parar de sofrer nas mãos do Léo e da minha mãe. Agora, eu senti que tua vontade é de que ela fique boa.
Um ímpeto fez Mary colocar ambas as mãos no peito.
_Essas pessoas especiais aqui me ensinaram que minha alma e meu espírito a ti pertencem desde o meu nascimento...
Um breve gesto a fez enxugar as lágrimas de Francesca, que teimavam em cair. Porém, sua "conversa com Deus"ainda não terminara.
_ Meu coração e meu espírito a ti pertencem, meu Deus. Pois foi o Senhor que me levou até o túmulo do Pedrinho, à casa do Vincenzo e até aqui, porque eu sei que a minha missão é aqui, com a senhora!
Albertina, que escutava tudo em silêncio, sentia mais uma vez as lágrimas escorrerem pelas faces.
_ Agora entendi, meu Deus, o motivo pelo qual tudo aconteceu desse jeito. E eu vou ajudar a senhora a ficar boa. E nós ainda vamos passear de mãos dadas pelos parques de Florença!
Os olhos de Francesca brilhavam mais e mais, a cada frase de Mary, que não parava.
Vou encaminhar a senhora para um médico especialista e vamos fazer de tudo pra ajudar. O resto vamos deixar pra Deus, que é o "Grande Médico" de todos!

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora