_ Lamento _ Sr Júlio... Preciso da transferência escolar do Francisco. Vamos nos mudar de Caxias.
_ É mesmo? E posso saber o que fez a senhora mudar de ideia?
Teresinha baixou os olhos, tristemente:
_ Olha, Sr Júlio... Eu errei muito, e pretendo não errar mais. Só isso! Meus erros custaram caro.
_ Muito bem, dona Teresinha. A documentação de transferência estará pronta amanhã mesmo.
_ Obrigada, Sr Júlio.
_ Disponha sempre. Ahh, como está seu braço, dona Teresinha?
_ Começou a sarar feito milagre, assim que eu me arrependi e pedi perdão a Deus por não ter cumprido minhas promessas.
Francisco, que até aquele momento estivera em silêncio, resolveu contar as novidades :
_ Sr Júlio... Onde eu vou morar tem um cavalinho, sabia?
_ Cavalinho? De verdade?
_ Sim. Eu vi quando ele nasceu! Tava mole que nem uma geleia! Aí damos o nome de "Geleia"pra ele!
_ É mesmo? Então me comta... O que mais tem lá onde tu vai morar?
_ Tem o Canela, que é o papai do Geleia... Tem vacas, galinhas, peixes...
_ Espera aí, Francisco... Então tu vai morar num paraíso!
_ Aaahh... Esqueci... Tem também o Mig...
Júlio coloca a mão no queixo, pensativo:
_ Mig? Que bicho será esse?
_ Não, não, Sr Júlio... O Mig é um menino que não tem mais mãe. Ele mora lá perto das manas!
O diretor Júlio mostrou-se interessado:
_ Manas? Tu tem irmãs lá?
Francisco ficou sem graça com a pergunta do diretor. Dona Teresinha, então, sentiu-se mais sem graça ainda:
_ Não, Sr Júlio. Lá tem duas meninas. Elas são irmãs iguaizinhas, iguaizinhas. Por isso todos lá chamam elas de manas
_ É mesmo? E como elas são? São legais?
_ Elas são muito parecidas com a Mary, quando ela ainda tinha tranças. E uma delas... Acho que é a...
Francisco colocou a mão no queixo, pensou, mas resolveu não arriscar:
_ Bom. Nunca sei quem é quem, das duas. Elas são iguaizinhas... E elas curaram minha dor de dente!
_É mesmo? Como foi isso?
Francisco contou ao diretor o episódio do chá de folhas de batata doce.
_ As manas brincaram de dentista, mas curaram meu dente! Tava doendo muito!
Júlio mostrou-se sério:
_ Que maravilha!Agora, tu vai ter duas amigas
Francisco estava animado:
_ Siiiim! E uma delas vai dançar comigo no CTG.
_ Mas então, Francisco, esse lugar realmente vai te fazer feliz. Vai ter amigos de verdade, tua família vai tá unida e vai aprender as tradições gaúchas.
Teresinha emendou:
_ E eu vou fazer o que eu sempre gostei: doces, pães, bolos...
_ Será que não tem um lugar e um emprego pra mim lá também?
Francisco parecia não ter mais freio nas palavras:
_ Tem sim, Sr Júlio! As manas estudam numa escola muito bonita! O senhor pode trabalhar lá!
O entusiasmo do menino atingiu até o diretor...
_ Quem sabe, eu não vá morar praqueles lados também? Como se chama esse lugar?
_ Igrejinha.
_ Tá... Agora não entendi! Vocês vão morar numa igreja?
Teresinha deu uma risadinha e explicou:
_ Não, Sr Júlio! Nós vamos morar num município chamado Igrejinha!
_ Com um nome desses, o lugar deve ser divino, não?
_ Na verdade, eu não conheço... Francisco já foi até lá e gostou muito.
_ Fica pertinho da capital... Seu marido poderá fazer as terapias com mais facilidade.
_ E fará. Ele voltará a andar, se Deus quiser.
_ Muito bem, dona Teresinha. Amanhã a documentação de transferência do Francisco estará à disposição. Quando se mudarão para Igrejinha?
_ No final de semana. O seu Claudio e seu Arnaldo ajudarão na mudança.
Júlio piscou para Francisco:
_ Veia se capricha nas danças cauchescas, que, assim que der, vou até lá assistir tuas danças!
Francisco ergueu a mão:
_Combinado!*
Valderez, a caminho de uma clínica médica de renome, não esperava que, no trajeto que percorreria, houvesse uma barreira policial. Os veículos estavam sendo parados um a um para revista.
_ Mas que diabo é isso agora? Não posso parar... Se me pegam hoje, que tô com "mercadoria", tô perdido!
Com experiência em fugir de barreiras policiais, o homem tomou a decisão de fugir.
_ Querendo brincar de pega-pega com o grande Vavá? Hoje não!
Girou o volante, fazendo um balão, retornando ao trajeto de origem. O que não esperava, que ali houvessem, naquele dia, equipes treinadas em perseguição policial.
_ Não vão me pegar!
Valderez, de certa forma, gabava-se das inúmeras vezes em que despistou policiais.
_ Tá prá nascer o pé-de-porco que vai parar o grande Vavá!
Inúmeras sirenes, cada vez mais sonoras e próximas, eram um desafio para o grande chefe do tráfico. O pé firme no acelerador mostrava que ele não pararia.
_ Essas sucatas policiais não são páreo pro carrão do ano do grande Vavá!
Diante de um cruzamento, com uma carreta atravessando a pista, Valderez teve que reduzir a velocidade, ou a colisão seria inevitável.
_ Logo agora esse filho da mãe tem que atravessar aqui?
Com um reflexo rápido, pisou no freio. Cercado pela polícia, sua fuga foi frustrada.
_ Ora, ora! Que mundo pequeno!Vejam quem tá fugindo da polícia!!! O grande Vavá!!!
Valderez tentou mais uma cartada:
_ Quanto querem pra "esquecer que me viram"? Sei que um policial ganha uma miséria...
_ Tentativa de suborno? Deve ter alguma coisa ilegal dentro do carro... Vai saindo, com as mãos na cabeça!
Valderez sentiu que naquela ocasião o seu dinheiro não o livraria. A tentativa frustrada fez piorar ainda mais sua situação. Após uma revista minuciosa em Valderez, os policiais passaram a revistar o carro.
_ Mmmm... Carrão bem equipado, Sr Vavá... Pena que dessa vez o pegamos recheado de entorpecentes!
Diante da descoberta de produto ilegal no interior do carro, Valderez não teve argumentos para evitar a prisão.
_Terá direito a um advogado, Sr Vavá... Enquanto isso, vai passar umas férias aqui no xadrez.
Ao ser conduzido ao interior do presídio, alguns detentos cochichavam entre si...
_ Ora, ora, ora... Olha só quem deu o ar da graça...
_ Vejam só... O grande galo virou franguinho...
_ É por causa desse cara que eu tô aqui...
_ Carne fresca...
As risadinhas entre os detentos demonstravam que Vavá podia até ter algum poder no tráfico, mas que ali ele era a minoria. Limitou-se a ficar em silêncio. Portanto, os cochichos continuavam:
_ Chegou a hora da desforra! Esse cara não pode ver a próxima luz do dia!*
_ Fiorella! Gioconda! Seu Vincenzo! Hoje eu quero fazer a janta... Deixam?
Mary estava eufórica. Rodopiava cozinha afora. Na mão, uma colher de pau, que lhe servia de microfone:
_ E agora, o cardápio de hoje! Vou preparar uma deliciosa polenta, acompanhada de um delicioso molho de porpetas!
Gioconda completa:
_ E pra acompanhar, vou fazer uma deliciosa salada de radiche!
_ Hoje, quero mostrar que vocês duas me ensinaram direitinho como cozinhar! Assim, posso fazer umas comidas deliciosas pra dona Francesca!
Vincenzo e as filhas entreolharam-se. Não sabiam ao certo o estado de saúde de dona Francesca. Só sabiam que ela ficara tetraplégica, em decorrência da queda do avião que ceifara a vida de Pedrinho e de seu esposo.
_ Depois de jantar, quero fazer uma oração junto com vocês, que são como se fossem minha família. Quero agradecer a Deus por Ele ter me deixado morar com gente tão especial como vocês! Aprendi muito com a Gioconda e a Fiorella! E com seu Vincenzo também!
Vincenzo interrompeu Mary:
_Nós que queremos agradecer a Dio por ter trazido tu pra nós, bambino... Ops... Bambina!
_ É verdade, papá!
Mary ergueu a colher de pau:
_ Então, tô indo ao preparo de uma bela polenta! E ao molho de porpetas! Quem me acompanha?
Mary saiu rodopiando na cozinha, seguida por todas as instruções de Gioconda no preparo do jantar.
_ Me diga, Mary... Tu não vai esquecer de nós, né?
Mary ergueu a colher de pau:
_ Eu prometo solenemente que nunca, nunca vou esquecer de vocês!
As risadas encheram o ambiente. Gioconda avisou:
_ Agora, vamos jantar, que tá tudo prontinho!
Vincenzo deu uma garfada:
_ Mmmm... Ficou bom demais! Divino!
Após a refeição, Mary pegou seu livrinho sagrado, e a família de Vincenzo reuniu-se a ela para agradecer ao seu Deus. Vincenzo completou:
_ Agora, depois de agradecer a Dio, todos pro ninho! Amanhã cedinho Pedrinho...
Vincenzo parou a frase no ar, e corrigiu:
_ Amanhã cedinho Mary vai pra Itália!
Mary baixou os olhos, pensativa:
_ Eu bem que gostaria de ficar aqui com vocês, mas se a minha missão é cuidar de dona Francesca, eu a cumprirei!
O sono demorou a chegar para Mary. As perguntas foram surgindo em seus pensamentos:
_ Como deve ser dona Francesca? E como deve ser na Itália?
Fechou os olhos e sentiu o tempo voar... Em seu sonho, as brancas nuvens circundavam a aeronave em que estava. Num piscar, seus olhos encontraram o céu azul... O tempo parceiro levou Mary até a terra distante que lhe traria seu destino. Abriu os olhos e encontrou os olhos azuis e expressivos de Francesca. Não sabia se correria para abraçar aquela mulher tão sofrida, ou se ficaria ali, presa ao chão. Resolveu abrir os braços, como se fosse voar... Olhou no fundo dos olhos azuis de Francesca. Viu ali, naquele azul, um céu de felicidade inexplicável. Pela primeira vez em sua vida, viu uma imensidão de palavras num simples olhar.
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INFÂNCIA ROUBADA
RandomHistória baseada em fatos reais. ALERTA DE GATILHOS: contém violência, abusos, suicídio e morte. Não indicado para menores de 18 (dezoito) anos e/ou pessoas sensíveis aos assuntos abordados. Miguel e Mary são duas crianças, irmãos... Após a tenta...